É um infortúnio eu ter de
desmentir tantos rumores a mim relativos, porém parece-me isto necessário, porque
os boatos persistem. Portanto, quero dizer, em primeiro lugar, que falo como um
indivíduo fala a outro; não na qualidade de membro de uma agremiação qualquer
que ela seja, nem como chefe de um corpo organizado, nem tão pouco movido pelo
desejo de vos converter a uma forma particularizada de crença, seja ela qual
for. Não é intenção minha vos estimular ou coagir a aceitar qualquer forma de
pensamento especializado, porém, expor, antes, diante de vós certas ideias que
para mim constituem a realidade e a consumação da vida e as quais, uma vez
realizadas, revelam inteireza e, por
tal motivo, tranquilidade e felicidade.
Uma vez mais quero acentuar que
aquilo que digo não deve ser encarado como um ensino vindo do Oriente, dirigido
aos povos do Ocidente. O fato de ter eu a pele mais escura do que vós, não
indica que o que eu diga representa o pensamento do Oriente. Tenho frequentemente
falado na Índia e dizem-me ali que o meu ensino é Filosofia Ocidental; pois
quando falo aqui, dizem que é do Oriente, com todo seu misticismo e
obscuridade. Tenho também ouvido dizer que é o Hinduísmo puro, o Budismo puro ou
a teosofia pura. A maioria das pessoas faz estas afirmações porque experimentam
certa satisfação em poder dizer: “Oh! Nós sabíamos tudo isto antes”. Por essa
forma, evitam o conflito de pensar. Podem assim, sentar-se confortavelmente com
suas velhas formulas tradicionais e aí permanecer, sem cuidar de examinar o que
perante eles é colocado, fazendo-o simplesmente recuar no tempo.
A compreensão do que vos vou
dizer depende de clareza de pensar e da inteligência de cada indivíduo;
inteligência é o resumo de vossas experiências, que vos proporciona, não
somente a razão, porém também essa outra capacidade que se denomina intuição.
Eu vos referirei uma história que
certa vez ouvi relatar na Índia. Determinado indivíduo, veio em busca de um
sábio e pediu-lhe que lhe falasse acerca da verdade. Disse ele ao sábio: “Hoje
estou de lazer. Não tenho grandes coisas a fazer, e, portanto, podeis falar-me
da verdade”. E o sábio respondeu-lhe: “Antes de mais nada, pela abstinência de
alimentos, pelo domínio do corpo, procura tornar pura a tua mente; em seguida
torna-te também branco como a neve; e finalmente, reprime, estritamente todo o
conhecimento. E então, falar-te-ei acerca da verdade”.
Vós todos vindes aqui com uma
grande quantidade de informações, já recebidas, porém não com conhecimento
pessoal, com esse conhecimento profundo
intuitivo, que está liberto da ilusão, de todas as ideias confortadoras.
Vindes aqui repletos de ideias tradicionais, a maioria delas falsas,
apegando-vos a essas falsas concepções. Portanto, rejeitais o que digo, ou
antes, o traduzis conforme os vossos termos tradicionais, permanecendo contentes
com isso.
Eu realizei aquilo que para mim é
a suprema felicidade — não a oriunda
do prazer, porém a dessa quietude
interior que é a segurança da
tranquilidade, a realização da inteireza. Neste estado não existe
progresso, mas sim realização contínua na qual todos os problemas, todas as
complexidades se esvaecem. Essa verdade, essa integridade interna, existe em
todas as coisas, em todo o ser humano; e essa realidade interna jamais está ausente
no que é mínimo como também jamais se exaure no que é máximo.
Para mim, a verdade, essa
integridade de que falo, acha-se em todas as coisas. Portanto, a ideia de que
necessitais progredir em direção à realidade, é uma ideia falsa. Não se pode progredir na direção de uma coisa que sempre está
presente. Não se trata de avançar para o exterior ou de voltar-se
para o interior, porém sim de se libertar dessa consciência que se apercebe a si mesma
separada. Quando houverdes realizado tal integridade, tal realidade,
não tem ela futuro nem passado; e todos os problemas relacionados a estas
coisas, desaparecem inteiramente. Uma vez que o homem haja realizado isto,
vem-lhe a tranquilidade, não a da estagnação, porém a da criação, a do eterno ser. Para mim é a realização
desta verdade, a conquista do homem.
Vós, homens, como indivíduos,
desenvolveis vossos sentidos pela luta social, pela auto-preservação e dais início,
assim, à consciência da separação. Desde a infância, que vos foi incutida a
ideia de que sois uma entidade separada; e desta ilusão surge a divisão entre o
“vosso” e o “meu”, não somente em pensamento como também na emoção, na posse de
bens, em todas as coisas.
Daí surge também a ideia de que
vos deveis tornar algo de grande no futuro e a de que fosteis já algo no
passado; um contraste contínuo. E desta consciência separada surgem a cobiça, a
inveja, o ódio, o sentimento de posse, o cuidar das vaidades, as alegrias
passageiras, as tristezas transitórias e os transitórios prazeres; é esta uma
civilização grosseira baseada na competição, na qual cada um trata de si mesmo,
sem benevolência, sem amabilidade. É um mundo de conflito, de corrupção, de
contenda, que a seu tempo conduz à guerra.
Em virtude deste entendimento de
separatividade, o “Eu” torna-se todo poderoso; desta consciência da separação
nasce o medo. E onde quer que exista o medo, manifesta-se imediatamente o
desejo de buscar conforto, em lugar de entendimento que dissipa o temor. Pois o conforto
adormece o vosso temor inato de perder vossa identidade separada.
O conforto somente produz um
ajuste temporário, não uma harmonia e equilíbrio permanentes; produz um alívio
imediato antes do que um entendimento compreensivo, contínuo; produz o
adiamento do esforço, uma fuga contínua em lugar da luta para compreender o
presente. Por causa deste temor, buscais o consolo no culto, na prece, no
erguimento de imagens, por intermédio de ritos e cerimônias. Esta ilusão da
separação vos leva à preocupação com a morte, e com o que vai acontecer no
futuro, isto é, sobre se tereis de vos reencarnar e sobre o que haveis sido no
passado. Por outras palavras, são o passado e o futuro que empolgam o homem que
se acha atemorizado — jamais a compreensão do presente. Enquanto o presente não for compreendido, o
futuro jamais vos proporcionará seu pleno significado, pois que o futuro, na
realidade, não existe. Todos estes problemas — o de porque nasci,
ou o que acontecerá após a morte, o da sobrevivência da alma, o da
reencarnação, o de como posso tornar-me algo mais e o de como posso adquirir
mais qualidades afim de encontrar a verdade — todas essas coisas nascem da consciência
da separação.
Quando é compreendida a ideia de que a verdade,
essa realidade viva, existe em todas as coisas e há todos os instantes, em toda
a sua integralidade, então não mais existirá o pensamento de progresso, o de
tornar aquilo que é ilusório, o “Ser”, em algo permanente. Em todas
as fases da vida dá-se a acentuação ao indivíduo — não à individualidade, à
qual, tornada plenamente consciente, dissipa a sua própria consciência, porém,
sim, ao engrandecimento do “Eu”.
Observai a maioria das pessoas, e
verificareis que todas pensam que, pelo tornarem-se maiores, pelo ampliarem sua
consciência mediante uma série de experiências, pelo retroceder, pelo avançar e
pelo reencarnar, se estão aproximando cada vez mais da verdade.
Para mim, esta concepção é
inteiramente ilusória, pois que a realidade, em sua inteireza, em sua plenitude,
em sua riqueza, existe em tudo e portanto, é eterna. Aquilo que é permanente, eterno, em tudo, não
pode progredir. Aquilo que denominamos
progresso somente pode ser aplicado a determinado fato, não à realidade.
Nossa preocupação primordial
deverá ser, então, a de por qual maneira cada um se poderá tornar apercebido
desse eterno, dessa viva realidade que sustenta, que nutre e sustenta todas as
coisas e que se
acha em nós próprios. Enquanto criardes um mundo externo e um mundo
interior e vos esforçardes por produzir um ajuste entre esses dois, jamais
encontrareis a realidade.
Quando o homem é consciente de si
próprio como entidade separada, está continuamente buscando o exterior para
encontrar auxílio, para seu sustentáculo, para seu bem-estar; e por essa
maneira cria ele a desordem em lugar da ordem, e por causa dessa desordem surgem
as superstições, as ilusões, as cerimônias.
Trata-se, portanto, da maneira,
do processo mediante o qual cada um pode realizar essa realidade interior que
assegura a tranquilidade da vida, não a estagnação, não a paz que entenebrece,
que destrói, porém sim essa tranquilidade que é a fonte da compreensão viva e eterna.
É somente por meio do esforço
individual que a verdade pode ser realizada, não por meio de associações de
qualquer espécie que sejam. Não podereis, por via de uma instituição, encontrar
a verdade, pois que a verdade habita em vós mesmos e as instituições não podem
ajudar o indivíduo a encontrar a verdade. Não importa quais sejam elas, todas
tendem a tornar-se cada vez mais formalistas e a verdade cada vez mais se distancia
delas. Precisais buscar a verdade por vós mesmos, como indivíduos; visto que
ela mora em vós, não no exterior. Quando o indivíduo houver compreendido a si mesmo, viverá num
ambiente de perfeita harmonia e não contribuirá para a desordem do mundo.
A partir do momento que vós, como
indivíduo, tenhais resolvido vosso problema particular, tenhais realizado a
verdade por vós mesmos, não mais contribuireis para a crueldade, para as
guerras, para a espantosa tirania e desgraça que imperam no mundo.
É importante que cada indivíduo
compreenda, não os adornos superficiais da vida, porém sim o como, pelo
continuamente deixar
de parte essa consciência que cria separação, se pode ele tornar-se apercebido dessa realidade interior que mora em todas as
coisas.
Se quiserdes verificar isto, vós,
como indivíduos, tendes que inteiramente vos desapegar de todos os sistemas
tradicionais, convencionais e socializados, de pensar e de conduta. Verificareis,
então, quão necessário é não confiar, quer em autoridades de tradição, que na
conduta sistematizada. Antes que possais
compreender a verdade, é necessário que vos torneis plenamente conscientes de
vossa própria separatividade e, por esse modo, de todas as qualidades e seus
respectivos opostos. Isto é, tendes que vos tornar tão cônscios de vós mesmos
que todos os vossos desejos, propósitos e conflitos ocultos sejam trazidos à
evidência, examinados e compreendidos por vós. Pelo vos tornardes
intensamente conscientes, consumireis toda a sub-consciência, pois que, quando estiverdes plenamente conscientes de vossas ações, de vossos
pensamentos e emoções, a hipocrisia cessa de existir, cessam as ilusões, os desejos
secretos e as fantasias não mais terão ascendentes sobre vós; e
então, quando estiverdes assim limpos e cheios de
propósito, podereis chegar a essa estado no qual não existem pretensas qualidades
e em que, portanto, não há conflitos.
Quando introduzis o elemento
pessoal em vosso julgamento, inevitavelmente perverteis vossa compreensão.
Necessitais distinguir entre o que é pessoal e o que é individual. O pessoal é
o acidental, entendo eu, as circunstâncias de nascimento, o ambiente no qual
haveis sido criados, vossa educação, vossas tradições, vossas superstições,
vossas distinções de nacionalidade e classe, e todos os preconceitos que por
este processo se desenvolvem. O que é pessoal apenas se relaciona com o
acidental, com o que é momentâneo, posto que este momento possa durar o período
inteiro de uma vida. A educação moderna conduz à perversão do pensamento e o
espírito de nacionalidade, de classe, de tradição aumenta por causa do medo.
Quando ajuizardes de um fato, não o façais partindo do ponto de vista pessoal,
mas julgai-o do ponto de vista do indivíduo que é do Eu.
Pois as qualidades — as virtudes
e os pecados, o bom e o mau, as alegrias e as tristezas — pertencem à consciência
do “Eu”. Quando estou consciente de mim mesmo, invento virtudes e pecados, o
bom e o mau, o céu e o inferno, para me proporcionarem equilíbrio em minha luta
com os opostos.
Enquanto houver essa consciência da separação,
do eu, da personalidade, não pode existir realização da verdade; antes porém, que possais transcender essa consciência, tendes que
vos tornar plena e vitalmente autoconscientes. Isto significa que
necessitais vos tornar conscientes de vós próprios como indivíduos, não como
uma máquina, não como um mero dente na engrenagem desta rude civilização onde
impera a competição.
Antes que vos possais tornar plenamente
conscientes e, por essa maneira, perder a autoconsciência, há três condições a
passar relativas à consciência. Na primeira dessas condições, o indivíduo é
escravo dos sentidos e de seus anseios. Para satisfazê-los, torna-se ele
simplesmente egoísta, dependendo, inteiramente, para sua felicidade, das coisas
exteriores, das sensações e incitamentos e, por esse modo, fica cada vez mais
emanado da tristeza e da dor. Sua conduta é encaminhada pelo egoísmo. Toma cada
vez maiores responsabilidades sobre si e torna-se, por essa maneira, um simples
escravo da ação. Tal homem não tem tempo nem inclinação para a quietude de
pensamento, para a reflexão, para o exame. Pois a verdadeira reflexão cria a
duvida, as investigações que conduzem ao isolamento, ao afastamento, coisa que
ele cuidadosamente evita.
Depois, vem o segundo estágio em
que o homem se
apercebe de suas faltas, de suas falências, de suas ilusões, de suas crueldades.
Tornando-se, assim, consciente de sua própria natureza, tenta ele então
desembaraçar-se, livrar-se do domínio dos sentidos e começa a libertar sua
mente e coração. Começa por diminuir, gradualmente, suas responsabilidades, sem
abandonar sua vida no mundo. A ação, nascida da consciência de si mesmo, na qual existe a
separatividade, é embaraçante, limitadora, um fardo; porém a ação
que é o resultado da liberdade da individualidade é libertação.
O indivíduo que possui agora o forte desejo de libertar-se, começa a disciplinar-se a si próprio.
Esta disciplina não lhe é imposta do exterior, não é o resultado da repressão;
antes, em virtude do seu desejo de ser livre, de realizar a verdade, impõe ele
a si próprio uma disciplina oriunda do entendimento — não oriunda do medo, não
coagido pelas circunstâncias sociais ou pelo ambiente. Ele deseja então
libertar sua mente, seu coração e, por esse modo, viver em harmonia. Impõe a si
mesmo, por isso, uma disciplina maior do que qualquer das disciplinas provindas
do exterior.
Em seguida vem o terceiro estágio
de consciência em que o homem é completamente
senhor de seus sentidos, completamente senhor de seu corpo. Isto não
implica o ser muscularmente desenvolvido, nem que o corpo não sinta dores, nem
tão pouco que ele não morra ou pereça; será senhor de seu corpo, no sentido de
não mais se emaranhar com seus anseios, com suas sensações, com seus
incitamentos.
Começa ele, então, a libertar-se do medo e das ilusões que ele
próprio cria. Uma vez que estejais libertos das ilusões, do temor, de todas
as outras qualidades, tem lugar um retiro
interior nascido da alegria, retiro nascido não do tédio, nem do
retraimento, nem com o intuito de fugir a este mundo de conflito, porém um
retiro interno de alegria em meio da ação.
Quando existir este retiro, a
reflexão e a analise virão dar lugar a uma concentração tremenda; não a
concentração sobre um objeto, porém a concentração na qual não há sujeito nem
objeto, o pleno apercebimento no qual não mais existem contrastes.
Ulteriormente, proveniente deste
retiro, manifesta-se uma harmonia
interior, a equanimidade entre a
razão e o amor — o pensamento
liberto das fantasias e das teorias pessoais, o amor liberto da especialização,
amor que é como o perfume de uma flor.
Quando existe esta harmonia, não
mais se inquire a respeito do futuro e do passado. Não mais terá lugar a
pergunta de –se continuarei “Eu” a viver como entidade separada.
O passado com suas falências e
tristezas, desaparece, e o futuro com suas esperanças, anseios e antecipações, desaparecem também: oriunda destes dois
termos, nasce a harmonia do presente, a qual é a realização dessa inteireza que
existe em todas as coisas. Uma vez que esta haja sido realizada, haverá
tranquilidade, haverá a realidade viva da felicidade.
Jiddu Krishnamurti, 7 de março de 1930, em Londres