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sexta-feira, 20 de abril de 2018

Da percepção nasce a atenção

[...] Para o homem religioso não existem teorias, nem crenças ou ideais de qualquer espécie, porque esse homem está sempre vivendo com plenitude, no presente ativo. Toda dependência de ideia, toda dependência de padrão, todo ajustamento a qualquer teoria ou crença, é coisa totalmente estranha à mente que busca o verdadeiro.

Ora, para a maioria de nós, certas palavras — tais como "morte", "sofrimento", "conflito'', "oração", "Deus" — estão "carregadas" de especial significado; têm para a mente extraordinária significação, e vivemos sob a influência dessas palavras. Elas nos moldam a vida, obrigando-nos a ajustar-nos, a imitar, a disciplinar-nos de acordo com certo e consagrado padrão. E esta manhã vou empregar uma dessas palavras — palavra talvez para muitos um pouco estranha; para outros, entretanto, que porventura leram algo sobre o assunto, terá ela alguma significação. É a palavra "meditação". A meditação, para a maioria dos Ocidentais, é algo de exótico, estranho, asiático; e para as pessoas, em geral, seja no Oriente, seja no Ocidente, é algo que se precisa praticar quando se deseja encontrar a Verdade ou Deus. Sobre isso vou falar, porque, para mim, uma vida sem meditação é uma vida perdida. Se se desconhece o profundo significado e importância da meditação, torna-se muito superficial o viver de cada dia. Mas, para se compreender o conteúdo dessa palavra, e passar além da palavra, requer-se um pensar muito claro, e uma mente alertada, ativa.

Antes de entrarmos nesta questão da meditação, precisamos ter uma noção bem clara do significado da disciplina. Para a maioria de nós, disciplina supõe controle, ajustamento de nosso pensamento e atividade a um certo padrão "ideacional". Ajustar-se, reprimir, seguir, imitar — tudo isso está implicado na palavra "disciplina".

Peço-vos, agora, acompanhar-me muito atentamente, pois isto vai tornar-se muito difícil, árduo, e, se não me seguirdes bem de perto, ativando ao máximo a vossa mente, vos perdereis completamente no caminho. Necessitareis, com efeito, de vossa energia total, para seguirdes o que este orador vai dizer.

Sucede, com a maioria de nós, que nossa mente foi condicionada por meio de disciplina, moldada por inumeráveis influências, pensamentos, experiências, ações, de maneira que a disciplina se nos tornou uma quase segunda natureza. Começamos a disciplinar-nos na escola e do mesmo modo prosseguimos pelo resto da vida, ajustando-nos às exigências da sociedade, submetendo-nos ao padrão consagrado — moral e social — refreando-nos por medo, ajustando-nos à opinião pública, ao que consideramos correto, etc. Está condicionada nossa mente para buscar a segurança mediante disciplina e, apesar disso, pensamos que pela disciplina seremos capazes de descobrir o que é a Verdade. Mas, por certo, para descobrir o que é a Verdade, precisa o indivíduo estar livre de toda disciplina que lhe foi imposta ou que a si próprio impôs. Só pode verificar-se o descobrimento do verdadeiro quando se está livre de ajustamento e de qualquer espécie de medo; há, então, uma disciplina de natureza toda diferente. Já não é disciplina, no sentido de imitação, repressão ou ajustamento a padrão. E um movimento livre, pois não significa fazer algo pelo desejo de um certo resultado, ou por medo. Deve, pois, ficar claramente entendido que qualquer espécie de disciplina que conhecemos denota desejo de ajustar-nos, de pôr-nos em segurança, e que, atrás desse desejo, está o medo — o medo à insegurança, de não obter o que se deseja, de não descobrir a verdade final, etc. etc.

Outra coisa muito necessária é estarmos apercebidos de quanto estamos condicionados pela sociedade, pelas inúmeras experiências que temos tido — e isso significa que devemos estar totalmente apercebidos de nossa consciência integral, e não apenas de certas partes dela. "Estar apercebido" requer espaço para a observação — isto é, que haja em nossa mente espaço, de modo que possamos observar sem opinião, sem avaliação, sem conclusão. Em geral, nenhum espaço temos na mente, porque nos chegamos a tudo o que observamos com uma conclusão, uma ideia, uma opinião, um juízo, uma avaliação; condenamos, aprovamos ou justificamos o que vemos, ou com isso nos identificamos, de modo que nenhum espaço existe dentro do qual possamos observar.

Por favor, não façais disso uma teoria ou coisa que se tem de praticar, pois isso seria terrível, já que tudo o que se pratica se torna hábito. Infelizmente, quase todos vivemos numa série de hábitos, agradáveis ou desagradáveis — o que é extremamente destrutivo da inteligência. Pela observação de vós mesmos, percebereis a verdade ou a falsidade desta asserção.

Sabeis o que é aprender? Aprender — no genuíno sentido da palavra — não é adicionar. Não é acumular conhecimento se, depois, pelo observar, pelo experimentar, acrescentar o que se aprendeu antes. Quando só se trata de acumular conhecimentos e de adicioná-los ao que já se sabe, nunca há liberdade para observar; por conseguinte, não se está aprendendo. Compreendeis? Se não, discutiremos sobre isso, depois.

Por "percebimento", entendo um estado de vigilância em que não há escolha. Estamos simplesmente observando o que é. Mas ninguém pode observar o que é, se tem alguma ideia ou opinião a respeito do que vê, dizendo-o "bom" ou"mau", ou de outro modo o avaliando. A pessoa tem de estar totalmente apercebida dos movimentos de seu próprio pensamento, de seu próprio sentimento, tem de observar suas próprias atividades, tanto conscientes como inconscientes, sem avaliação. Isso requer mente alertada e ativa no mais alto grau. Mas, acontece que a mente da maioria de nós está embotada, semi-adormecida; só certas partes dela se acham ativas — as partes especializadas, pelas quais funcionamos automaticamente, pela associação, pela memória, tal como um cérebro eletrônico. A mente, para ser vigilante, sensível, necessita de espaço, no qual possa olhar as coisas sem nenhum fundo de conhecimentos prévios; e uma das funções da meditação é levar a mente a um extraordinário estado de alerta, atividade, sensibilidade.

Estais seguindo bem isto?

Estar vigilante é o indivíduo observar a própria atividade corporal, a própria maneira de andar, de sentar-se, os movimentos das próprias mãos; é ouvir as palavras que emprega, observar todos os seus pensamentos, todas as suas emoções, todas as suas reações. Inclui o percebimento do inconsciente com suas tradições, seu conhecimento instintivo, e o imenso sofrer que ele acumulou — não apenas o sofrer pessoal, mas também o sofrer humano. De tudo isso deveis estar apercebido; e não o podeis, se estais meramente a julgar, a avaliar, a dizer: "Isto é "bom", aquilo é "mau"; conservarei isto e rejeitarei aquilo" — já que todas essas coisas tornam a mente embotada, insensível.

Do percebimento nasce a atenção. A atenção deflui do percebimento, quando nesse percebimento não há escolha; quando não se está escolhendo nem experimentando pessoalmente (sobre isto falarei mais adiante), porém simplesmente observando. E para se poder observar, necessita-se, na mente, de uma vasta porção de espaço. A mente que está toda enredada na ambição, na avidez, na inveja, na busca do prazer e do auto-preenchimento — com os inevitáveis pesares, dores, desespero, e aflição, que ocasionam — não dispõe de espaço, para observar. Está repleta de seus próprios desejos, a dar voltas e mais voltas nas águas represadas de suas próprias reações. Não podeis estar atento, se vossa mente não é altamente sensível, penetrante, racional, lógica, sã, vigorosa, sem a mais leve sombra de neurose. Deve a mente explorar todos os seus próprios recessos, sem deixar um só por descobrir; porque, se houver um só recesso mental que temermos investigar, daí brotará a ilusão.

O cristão que vê Cristo em sua meditação, em sua contemplação, pensa ter alcançado um estado maravilhoso, mas suas visões são meras "projeções" de seu próprio condicionamento. O mesmo acontece com o hinduísta que, sentado à margem de um rio, entra num estado de êxtase. Tem, também ele, visões nascidas de seu próprio condicionamento, e o que vê, por conseguinte, não constitui uma verdadeira experiência religiosa. Mas, pelo percebimento, pela observação livre de escolha — a qual só é possível quando há na mente espaço para observar — dissolvem-se todas as formas de condicionamento e, então, já se não é hinduísta, nem budista, nem cristão, porque todas as ideias, crenças, esperanças e temores desapareceram definitivamente. Daí vem a atenção, não atenção aplicada a uma certa coisa, porém um estado de atenção em que não há "experimentador" e, por conseguinte, não há experiência. Isto é de enorme importância e deve ser compreendido por todo aquele que se está realmente esforçando por descobrir o que é a Verdade, o que é religião, o que é Deus, o que existe além das coisas construídas pela mente.

No estado de atenção, não há reação: a pessoa está, simplesmente, atenta. A mente explorou e compreendeu todos os seus próprios recessos, todos os inconscientes motivos, exigências, preenchimentos, ânsias, pesares; por conseguinte, no estado de atenção há espaço, há vazio; não há experimentador a experimentar alguma coisa. Achando-se vazia, a mente não está "projetando", buscando, desejando, esperando. Compreendeu todas as suas próprias reações e "respostas", sua profundidade, sua superficialidade, e nada mais resta. Não há divisão entre o observador e o que ele observa. No momento em que há separação entre "observador" e "coisa observada", há conflito que é o próprio intervalo entre ambos. Já examinamos isso, e vimos quanto é importante estarmos completamente livres de conflito.

Isso talvez seja um pouco mais complicado do que as coisas que estais acostumados a ouvir, pois estou falando sobre a meditação — algo que transcende todas as palavras.

Ora, é só no estado de atenção que podeis ser vossa própria luz, e então todas as ações de vossa vida diária nascerão dessa luz — todas as ações, quaisquer que sejam: exercer o emprego, cozinhar, lavar, remendar roupas, etc. Todo esse mecanismo constitui a meditação, e sem ela a religião nada significa, torna-se mera superstição explorada pelos sacerdotes.

Para a maioria das pessoas que praticam o que chamam "meditação", esta é uma espécie de auto-hipnose. Tendo tomado "lições de meditação" ou lido livros sobre a matéria, põem se sentadas, de pernas cruzadas e percorrem toda a série de "habilidades" que aprenderam — respirar com a máxima regularidade, controlar os pensamentos, etc. etc. Há muitos sistemas de meditação, mas se compreenderdes um só deles, tereis compreendido todo o seu conjunto, porque todos eles visam ao autocontrole ou à auto-hipnose, como meios de se alcançarem certas experiências consideradas maravilhosas, porém, em verdade, ilusórias. Essa forma de meditação é de todo em todo infantil, sem nenhuma significação. Podeis praticá-la durante dez mil anos, e nunca descobrireis o que é verdadeiro. Podeis ter visões, "experimentar" o que pensais ser Deus, a Verdade, etc., mas tudo será coisa "projetada" por vossas próprias reações, por vosso próprio condicionamento e, por conseguinte, sem significação alguma.

Mas, eu estou falando de coisa completamente diferente: O libertar da mente, pela intensa vigilância, de todas as suas reações, e produzir, assim, sem o exercício de controle, de vontade deliberada, um estado de quietude interior. Só a mente muito ardorosa, altamente sensível, pode achar-se verdadeiramente quieta, e não aquela que está paralisada pelo medo, pelo sofrimento, pela alegria, ou entorpecida pelo ajustamento a inumeráveis exigências sociais e psicológicas.

A verdadeira meditação é inteligência em sua forma mais elevada. Não é questão de se ficar sentado a um canto, de pernas cruzadas e olhos fechados, ou ficar de pernas para o ar, apoiado na cabeça, ou o que mais seja. Meditar é estar completamente apercebido, quando se está passeando, quando viajando de ônibus, trabalhando no escritório ou na cozinha; é estar o indivíduo completamente apercebido das palavras que emprega, dos gestos que faz, de sua maneira de falar, de comer, seu costume de empurrar os outros. Estar apercebido, sem escolha, de tudo o que se passa em torno de vós e dentro em vós — isto é meditação. Se dessa maneira ficardes apercebido da incessante propaganda política e religiosa, das numerosas influências que vos rodeiam, vereis com que rapidez sereis capaz de compreender cada influência com que entrardes em contato, e dela vos libertar.

Mas, são raríssimos os que vão tão longe, já que quase todos estamos condicionados por nossas tradições. Isso é verdade, principalmente para quem vive na Índia, onde é absolutamente necessário fazer certas coisas — controlar completamente o corpo e, consequentemente, controlar completamente o pensamento. Por meio desse controle, espera-se alcançar o Supremo, mas o que for alcançado será o resultado da própria auto-hipnose de cada um. No mundo cristão faz-se mesma coisa, de maneira diferente. Mas, eu me estou referindo a algo que requer inteligência em sua mais elevada forma.

Ora, a mente que deseja experiência não é inteligente; e, se observardes, vereis que a maioria de nós deseja experiência. Cansados dos rotineiros "desafios e respostas" que há tanto tempo conhecemos, apelamos para a chamada meditação, ou ingressamos em tal ou qual igreja, esperando que por esse ou qualquer outro meio misterioso, iremos ter novas e mais profundas experiências. Mas a mente que se acha no estado de "desejo de experiência" — por mais exaltada que seja tal experiência — não é inocente; por conseguinte, não há isso que se chama "experiência religiosa". Só a mente que está desejando, buscando, tateando, ansiosa, desesperada — só essa pede experiência. A mente que é altamente sensível, já que é a luz de si própria, não tem desejo nem necessidade de experiência, essa mente, por conseguinte, se acha num estado de inocência; e só a mente inocente e altamente sensível pode estar quieta. Quando a mente está totalmente quieta, porque cada uma de suas partes é viva, sensível, acha-se então num estado de meditação; e daí pode prosseguir, até descobrir o que é a Verdade. Mas, enquanto não se achar nesse estado de meditação, toda tentativa que a mente faça para descobrir o que é a Verdade, o que é Deus, o que é "essa coisa" existente além dela própria (da mente) — será pura perda de tempo, e conducente à ilusão. O achar-se nesse estado de meditação requer extraordinária energia; e vós tereis pouquíssima energia, enquanto estiverdes em conflito, enquanto tiverdes os problemas do desejo. Por essa razão é que, como tenho dito desde o começo, todo conflito, toda exigência de preenchimento, com sua esperança e seu desespero, têm de ser compreendidos e dissolvidos. A mente, então, não tem ilusões, porque já não tem o poder de criar ilusões.

A mente que está toda enredada em problemas, no medo, no desespero, no desejo de preenchimento próprio, está sempre criando a ilusão e, por conseguinte, se encontra num estado de neurose. Esta é a primeira coisa que é necessário compreender. Mas, quando a mente é altamente sensível e está livre de todas as ilusões, então, nessa claridade, nessa sensibilidade, há inteligência; e só então pode a mente estar quieta, completamente e sem esforço algum. Esse estado de quietude completa e livre de esforço é o começo da meditação.

Assim, pois, há primeiramente um percebimento, uma observação sem escolha, de todos os vossos pensamentos e sentimentos, de tudo o que fazeis. Nasce, daí, um estado de atenção sem fronteiras, mas em que a mente pode concentrar-se; e desse estado de atenção resulta a quietude mental. E quando a mente está totalmente quieta, sem nenhuma ilusão, sem qualquer espécie de auto-hipnose, vem à existência algo que não foi formado pela mente.

Apresenta-se-nos agora a dificuldade de expressar em palavras algo que é inexprimível — e é esse algo que estamos buscando. Todos desejamos encontrar algo transcendental, fora deste mundo de agonias, de tirania, de força e subjugação, mundo tão indiferente, empedernido e brutal. Com nossas ambições, nossos nacionalismos, nossa diplomacia, nossas mentiras, estamos continuamente precipitando os horrores da guerra; e, cansados de tudo isso, desejamos a paz. Desejamos encontrar em alguma parte um estado de tranquilidade, de bem-aventurança e, assim, inventamos um Deus, um Salvador, ou um outro mundo que nos ofereça a paz que desejamos, contanto que façamos ou creiamos em certas coisas. Mas uma mente condicionada, por mais que deseje a paz, só provoca a própria destruição; é o que se observa no mundo atual. Todos os políticos do mundo, tanto da esquerda como da direita, usam a palavra "paz", mas esta palavra nada significa. Falo, porém, de algo existente muito além de tudo isso.

A meditação, pois, é o esvaziar da mente de todas as coisas que juntou. Se o fizerdes — talvez não desejeis fazê-lo, mas, sem embargo, escutai! — vereis abrir-se um extraordinário espaço em vossa mente, e esse espaço é liberdade. Assim, deveis exigir a liberdade justamente no começo, e não ficar aguardando, esperando alcançá-la no fim. Deveis buscar o significado da liberdade em vosso trabalho, em vossas relações, em tudo o que fazeis. Vereis, então, que meditação é criação.

"Criação" é uma palavra que empregamos tão levianamente, tão facilmente! Um pintor espalha umas poucas tintas sobre uma tela e por causa disso se põe num extraordinário estado de entusiasmo. Trata-se de seu preenchimento, de seu meio de "expressão"; do "mercado" em que irá ganhar dinheiro ou reputação. E a isso ele chama "criação"! Todo escritor "cria'', e há escolas onde se ensina a escrever "criadoramente"; mas nada disso tem a mínima relação com a criação. Tudo é só reação condicionada de uma mente que vive em determinada sociedade.

A criação a que me refiro é coisa inteiramente diferente. É a mente no estado de criação. Ela poderá expressar ou deixar de expressar tal estado. A expressão é de muito pouco valor. Aquele estado de criação não tem causa e, por conseguinte, a mente que nele se acha está, a cada momento, morrendo e vivendo e amando e sendo. Tudo isso é meditação.

Desejais discutir sobre isto?

Krishnamurti, Saanen, 24 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho



quinta-feira, 19 de abril de 2018

O estado de atenção sem resistência

O estado de atenção sem resistência

[...] Nestas últimas duas ou três semanas estive discorrendo, entre outras coisas, sobre a questão do medo e do sofrimento. Quando temos medo, ou quando nos acabrunha o sofrimento, não podemos achar-nos no estado de meditação. Para quem realmente deseja compreender a profundeza e a beleza da meditação, o medo deve cessar e nenhum sofrimento deve existir. E quando livres do medo, da amargura, de toda a estrutura psicológica da sociedade, que é feita de ambição, de avidez, de inveja, do desejo de êxito, da existência de poder, posição, prestígio — quando tudo isso foi examinado e compreendido, o cérebro se torna então tranquilo. Mas só podeis compreender e livrar-vos de toda essa agitação, se dela vos aperceberdes sem nenhum esforço. Se lutais para transformar o medo em coragem, não podeis alcançar o inteiro significado do temor. Conforme tenho explicado, o cérebro humano é o resultado de séculos de existência condicionada, “animalística”. Esse cérebro precisa ficar completamente quieto, e não podemos torná-lo quieto por meio de disciplina, de compulsão. Mas ele fica espontaneamente tranquilo ao compreender todas essas coisas sobre que estive falando.

Está agora bem claro que, para que a mente possa achar-se no estado de meditação, é imprescindível a eliminação do conflito. Existe conflito enquanto há divisão entre o pensador e o pensamento. Para a maioria de nós, o pensador está separado do pensamento, o experimentador difere daquilo que está sendo experimentado. Existindo essa divisão, será inevitável o conflito, porquanto ela é a origem do conflito. Eis porque é absolutamente necessário fazer cessar essa divisão.

O pensador é o censor, o produto condicionado de séculos de atividade egocêntrica; ele constitui o “centro” do medo, do conflito, do sofrimento.

Estou entrando paulatinamente, nisso que é meditação. Não fiqueis, até o fim, à espera de uma descrição completa de “como meditar”. O que agora estamos fazendo faz parte da meditação.

Ora, o que se precisa fazer é estar ciente do pensador, sem tentar dissolver a contradição para operar a integração do pensamento com o pensador. O pensador é a entidade psicológica que tem acumulado experiência na forma de conhecimento; é o centro que está sujeito ao tempo e resulta de influências ambientes sempre cambiantes, e desse “centro” ele olha, ele escuta, ele experimenta. Enquanto não se compreender a estrutura e a anatomia desse centro, haverá sempre conflito; a mente em conflito nenhuma possibilidade tem de compreender a profundeza e a beleza da meditação.

Na meditação não pode haver pensador, e isso significa que o pensamento deve terminar — o pensamento, que é impelido pelo desejo de alcançar resultado. A meditação nenhum interesse tem em resultados. Não é questão de respirar de uma certa maneira, de olhar para a ponta do nariz, ou de despertar a faculdade de executar certas “habilidades”, ou qualquer das restantes infantilidades e absurdos. Mas, se estivestes escutando estas palestras com plena atenção, apreendendo mais ou menos o significado do que se esteve dizendo, verificareis existir um estado mental que é sempre “meditativo”. A meditação não é coisa separada da vida. Quando conduzis um carro ou estais sentado num ônibus, quando tagarelais a esmo, quando passeais sozinho numa floresta ou observais uma borboleta que se deixa levar pelo vento — aperceber-se de tudo isso, objetivamente, faz parte da meditação.

[...] Esse estado de atenção sem resistência, sem conflito, sem se forçar a mente num canal predeterminado, é absolutamente necessário. E quando tiverdes atingido esse ponto, vereis por vós mesmos com que facilidade e suavidade se torna existente o silêncio da mente.

O silêncio que nós geralmente buscamos é o silêncio do declínio e da morte. A chamada “paz” alcançada pelos monges e outros que se retiraram do mundo é, em geral, uma condição de completa insensibilidade, um estado de embotamento. Eles de fato experimentam um certo silêncio mental, mas é o silêncio morto da “exclusão”. Já o silêncio a que me refiro é um estado de atenção em que se percebem todos os sons, todos os movimentos, todas as variações do pensamento e do sentimento. Se existe um “experimentador” ou “observador” do silêncio, não há silêncio, porém algo “projetado” pela mente. No silêncio completo, não há “experimentador do silêncio”, mas, sim, um estado de atenção em que ouvimos o avião a sobrevoar-nos, o trem que passa, e ao mesmo tempo a mente está atenta ao que se diz; ela observa, escuta tudo. Desse imenso silêncio em que a mente já nada busca, espera, deseja, exige, provém um movimento que é criação atemporal, inexprimível. Não é a criação do escritor, do pintor, do músico, porém algo que transcende tudo isso. Essa criação é energia — energia que é morte, energia que é amor — e nela não há começo nem fim. Ela só se manifesta pelo autoconhecimento, e esse processo, no seu todo, é meditação.

Espero não estejais sendo hipnotizados por minhas palavras. Com profunda investigação interior e pondo de parte, rigorosamente, toda a vossa mediocridade, inveja, avidez, desejo de fama — morrendo para toda espécie de técnica ou habilidade que houverdes adquirido, de modo que não sejais ninguém — sabereis então, por vós mesmos, o que é criação. Mas se apenas estais sendo influenciados por outrem, então, isso não é meditação.

Krishnamurti, Saanen, 9 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


quinta-feira, 12 de abril de 2018

Na libertação do conhecido, o aquietar do cérebro


Na libertação do conhecido, o aquietar do cérebro

[...] O começo da meditação é auto-investigação, autopercebimento crítico; é, simplesmente, saberdes o que sois. Dessa simplicidade surge uma imensidão que transcende as palavras, o tempo, o pensamento. Mas deveis começar com aquele primeiro passo muito simples, imediato.

Em regra, não desejamos saber o que somos. Inventamos o “Eu Superior”, o “Eu Supremo”, o Atman, inumeráveis ideias, a fim de fugirmos da realidade do que somos — a realidade concreta, diária, daquilo que somos. E não sabemos o que somos, dia por dia; a isso sobrepomos algo que o pensamento criou com o nome de Atman, algo que a tradição nos transmitiu e denominou Eu Superior. Com isso nos cobrimos, e procuramos alcançar essa coisa inventada pela mente; e depois, se a alcançamos, vemos que ela é vazia, que é só cinzas, que nada significa.

Assim, para meditar, deveis destruir tudo, totalmente, rejeitar completamente todas as coisas que vos estão sendo impostas; rejeitar o Gita, a Bíblia, o Corão — tudo. E isso é dificílimo, porquanto necessitamos dessas coisas para nossa segurança, para nosso arrimo nas horas de tribulação, de dor, de sofrimento. Mas, todas elas são simples vias de fuga — vosso Krishna, vossos Salvadores, etc. O que tem importância e significação é vossa existência de cada dia — o que pensais e o que sentis. E não podeis compreender o que pensais e o que sentis se estais tolhido pelo peso do conhecimento do passado, de tudo o que os livros disseram.

Assim, o começo da meditação é o conhecimento de vós mesmo — não o que pensais que deveríeis ser, não o que Sankara pensa que deveríeis ser: o conhecimento de vós mesmo tal como sois, assim como vos vedes num espelho. Deste modo, se seguirdes o caminho do autoconhecimento começareis a investigar o que sois, vossas atividades diárias, a maneira como falais a vosso serviçal, a maneira como tratais vossa mulher, vosso marido, a maneira como vos comportais perante as pessoas importantes, o sempre vivo desejo de serdes alguém. Se não conhecerdes toda a esfera consciente e inconsciente de vossa existência, por mais que vos esforceis nunca sabereis o que é meditação.

Como disse, o início da meditação é a rejeição de toda espécie de autoridade, porque vós tendes de ser vossa própria luz. E o homem que é sua própria luz não depende de autoridade em tempo algum, nem no começo, nem no fim. “Ser a luz de si mesmo” significa não ter medo; já tratei disso. “Ser a luz de si mesmo” significa não ter apego de espécie alguma, nem à mulher, nem ao marido, nem ao conhecimento, nem à experiência; porque todas essas coisas projetam sombras e vos impedem a iluminação. E, mais ainda, para serdes vossa própria luz deveis investigar a experiência.

A experiência é a essência do tempo, a experiência constrói o tempo como conhecimento, a experiência condiciona a mente. Se sois hinduísta, cristão ou budista, estais sendo educado numa certa cultura (civilização), consistente na religião, na educação, na família, na tradição dessa cultura ou civilização; vossa mente é formada, moldada consoante essa cultura, essa tradição. Ou credes em Krishna, ou credes em Cristo, ou credes no que quer que seja — e tal é vosso condicionamento; conforme esse condicionamento, tereis vossas experiências. A mente que experimenta de acordo com tal condicionamento não tem nenhuma possibilidade de conhecer o imenso significado da meditação.

Estamos investigando a meditação. Espero que estejais escutando — não meramente seguindo a exposição verbal, porém vivendo o que se está explicando, a fim de poderdes sair daqui conhecendo a imensidade, a beleza, o êxtase da meditação (que não implica trabalho, esforço para alcançar um certo estado, uma certa visão). Porque a visão que desejais, que ansiais, é puro resultado de vosso condicionamento. Ao verdes Krishna, ou Rama, ou outro qualquer, foi o vosso condicionamento que o projetou. Esse condicionamento se formou através de séculos de tempo, sob a influência do medo, da aflição, do sofrimento; e, qualquer visão nascida desse condicionamento é totalmente vazia, sem significação; a mente nele aprisionada jamais conhecerá a liberdade que há na meditação.

Deveis compreender o significado da palavra “experiência”. Todos desejamos mais experiência — mais e sempre mais: mais riquezas, mais posses, mais amor, mais êxito, mais fama, mais beleza; e desejamos, também, mais experiência, conhecimento. Prestai atenção, por favor. A mente que está sempre experimentando é dependente da experiência; e a experiência, em última análise, é a “resposta” a um “desafio”. Espero estejais entendendo, pois isto não é muito complexo. A mente sempre sequiosa de mais, que deseja mais experiência, mais conhecimento, mais sensações, mais êxtases, é uma mente dependente. E quando a mente depende, quando necessita de alguma coisa para ampará-la — isso significa, apenas, que está dormindo. Por conseguinte, cada “desafio” significa para ela uma experiência que a desperta por um momento e a faz adormecer de novo. Assim, todo “desafio e resposta” constitui um indício de que a mente se acha a dormir.

Há inúmeros desafios no decurso de nossa vida; há influências a todas as horas, impregnando-nos a mente e o coração, e delas podemos estar ou não estar conscientes. O grasnar do corvo já passou para o vosso inconsciente, lá está guardado; a cor daquele sari, quer a tenhais notado, quer não, já gravou sua impressão; o poente, a nuvem que vistes numa certa tarde banhada de luz, deixaram sua marca. Assim, a mente consciente e inconsciente está cheia dessas impressões; e delas, dessas impressões, nascem todas as experiências. Tudo isso são fatos psicológicos, que não admitem discussão, concordância ou discordância. E a mente que depende da experiência como meio de progresso, desenvolvimento, amadurecimento, evolução... é bem óbvio que essa mente, dependendo do tempo, da experiência, nunca será capaz de penetrar naquilo que se acha além do tempo e da experiência. Por consequência, tendes de compreender profundamente o significado da experiência.

A experiência embota a mente. A experiência não ilumina a mente, porque é sempre o resultado de “resposta” a um “desafio”, resposta oriunda de vosso fundo de conhecimento. Assim, cada experiência só pode tornar mais forte o que conheceis e, por conseguinte, não podeis libertar-vos do “conhecido”.

A meditação é o verdadeiro começo do libertar-se do “conhecido”. Vós deveis meditar, não porque uma certa pessoa vos diz que o façais, porque um certo homem vos fala e vos extasia a respeito da meditação. Deveis meditar porque esta é a ação mais natural deste mundo. A meditação vos confere uma admirável sensibilidade, sensibilidade, que, embora muito forte, é também vulnerável. Isso poderá parecer-vos contraditório, mas não é. A mente que se formou pela ação do tempo, da experiência, do conhecimento, do conflito, da arrogância, da agressividade, da ambição — não é uma mente forte; só tem capacidade de resistência. Eu me refiro a uma força de qualidade completamente diferente, uma força que é “vulnerável”, sem resistência; essa, por conseguinte, é a mente capaz de ultrapassar a experiência.

Deveis compreender a significação, a profundeza e qualidade da experiência que todos desejais. Ver Rama, Krishna, Cristo, etc. — a isso chamais meditação. Mas não é meditação, porém tão só uma projeção do passado, uma projeção da crença em que fostes educado. Um cristão vê o Cristo e se extasia com essa visão. Mas o homem que não foi criado para adorar Cristo, como Salvador ou o que quer que seja, nunca verá Cristo, como vós tampouco o vereis, educados que fostes para crer em Krishna. Nunca vereis outros deuses senão vossos próprios deuses; e, quando estais presos a vossos deuses, estais presos à vossa própria ilusão. A mente que se prendeu a uma experiência, o que quer que faça nunca penetrará as profundezas, o completo silêncio do espaço vazio; e isso faz parte da meditação.

Assim, pela compreensão do inteiro mecanismo da experiência, vos tornareis capazes de negar completamente o “conhecido”. Há uma variedade de drogas que tornam a mente sensível. Tais drogas existem atualmente na América e na Europa, e provavelmente chegarão até cá. Proporcionam elas uma grande capacidade para perceber, de modo intenso e vivo, a cor, a forma, a luz; e quem as toma pode ter experiências extraordinárias. Mas o que se vê a poder de drogas — as visões, experiências, sensações, a clareza, a beleza de um tronco de árvore ou de uma toalha de mesa — tudo está contido na esfera do “conhecido”. Essas drogas nunca libertarão a mente do “conhecido” e, por conseguinte, não há possibilidade de se tomar existente o “desconhecido”.

Estais, pois, começando a ver por vós mesmos — se estais escutando — que toda espécie de pensamento, prática, disciplina, de caráter “repetitivo”, toda espécie de experiência só pode criar o desejo, a ânsia de mais experiência; nunca vos satisfazeis com uma só experiência, quereis sempre mais, e mais, e mais. — Estais, pois, começando a ver que não há método algum. Método é o costume, a tradição de executar uma certa coisa repetidamente, de seguir uma certa ideia, uma certa norma de ação — e isso só serve para embotar a mente. Por conseguinte, não há método, não há caminho.

Tende a bondade de prestar atenção. Não há caminho para a iluminação. Começais a perceber que toda forma de experiência deve ser negada pela compreensão, já que toda experiência embota a mente, já que qualquer experiência é uma tradução do “conhecido”, do passado. A mente aprisionada no tempo nunca ultrapassará o tempo. Assim, ao negardes a autoridade, ao negardes a disciplina como “coisa conhecida”, praticada segundo um método, tendes então compreendido e rejeitado completamente a experiência.

Em geral; somos educados na concentração. Em criança, mandam concentrar-vos em vosso livro; se quereis olhar pela janela para ver os pássaros a voar, uma folha levada pelo vento, um carro de bois que passa — o mestre vos diz: “Concentrai-vos, prestai atenção a vossa tarefa”. Sabeis o efeito que isso produz em vós? Cria um novo conflito, uma contradição. A criança absorvida num brinquedo está concentrada. Deveis ter observado vossos filhos; quando têm um brinquedo, deixam-se absorver totalmente nesse brinquedo; o brinquedo se apodera deles. E chamais isso “concentração”. Vós vos concentrais numa ideia; a mente se põe a divagar em todos os sentidos e tratais de fixá-la nessa ideia; mas a mente torna a fugir; de novo a fazeis voltar, e novamente ela foge. E aí está o conflito. A isso chamais “meditação”, mas é coisa tão “imatura”, tão infantil!

Mas, vós tendes de seguir cada pensamento, compreender cada pensamento que surge, e não dizer que todo pensamento não “concentrado” é distração. Se não o dizeis, e tratais de examinar cada pensamento, de segui-lo até o fim, não há então distração. E porque não há concentração, estais compreendendo cada movimento de pensamento, cada movimento da mente. Quando seguis cada movimento da mente, nesse seguir não há distração. Não há distração ao escutardes o corvo grasnar. Distração não existe quando escutais o barulho do tráfego. Mas há distração se dizeis: “Quero concentrar-me nesta coisa e rejeitar tudo o mais”. Então, “tudo o mais” se torna uma distração.

Assim, a mente que aprendeu a concentrar-se torna-se uma mente estreita e embotada. Não estou rejeitando a concentração, que vou examinar agora. Quando compreendeis o verdadeiro significado da concentração, consistente em resistir e excluir, em focar a mente numa dada coisa, podeis ver que esse focar estreita a mente, embota-a. Esse focar é uma espécie de resistência e, portanto, gerador de conflito. E a mente em conflito nunca será capaz de alcançar a profundeza, o êxtase da meditação.

Compreendendo-se o inteiro significado da concentração, há então atenção, lucidez; a atenção não se foca, porém inclui tudo: podeis escutar os pássaros, escutar o barulho do tráfego, escutar o orador, observar os movimentos da folha levada pelo vento, ver o pôr-do-sol, a luz refletida no edifício. Nessa lucidez não há limites; ela tudo abraça, tudo inclui. E a mente atenta, que tudo recebe, é capaz de concentrar-se; mas essa concentração não é resistência, essa concentração é livre de conflito. Olhai o que realmente está ocorrendo agora — se estais observando. O orador está falando, expondo, e ao mesmo tempo escutando os pássaros, o tráfego, vendo a luz, a imobilidade da folha, as estrelas — tudo recebendo e, por conseguinte, nada rejeitando.

A mente que experimentou e compreendeu a concentração, a experiência, percebeu, de maneira clara, que não há método, nem sistema, nem prática. Essa mente se acha em estado de atenção. Compreende o que é a tranquilidade. O cérebro, o cérebro material, está constantemente ativo. Ele promana do tempo; o cérebro é resultado dos instintos animais, das necessidades animais, dos impulsos animais. A compreensão de todo esse “mecanismo” do cérebro é, com efeito, autocompreensão, porque é o cérebro que tem os impulsos de ambição, de avidez, de inveja. O cérebro funciona por associação, funciona com base no mesmo princípio que o cérebro eletrônico.

É necessário, pois, compreender o “mecanismo” do cérebro, formado por influência social, sendo, assim, resultado da sociedade. Os instintos, os impulsos, os temores, as ambições, a avidez, a inveja — tudo isso está contido no cérebro. O cérebro pode ficar completamente, extraordinariamente quieto — não à força, não sob compulsão, não por meio de disciplina, mas pelo compreender e ficar livre da ambição, da avidez, da inveja, do desejo de êxito, do medo — que inclui o medo à opinião pública, à “virtuosa imoralidade” social — pelo abandono completo de tudo isso. A mente que busca a paz — como o faz a maioria de nós — só está buscando a escuridão. Mas, ao compreenderdes o inteiro mecanismo da estrutura psicológica da sociedade, que imprimiu no cérebro todas as lembranças, associações, resultados — dessa compreensão provém a quietude do cérebro. Se não o houverdes compreendido, se vosso cérebro não estiver completamente quieto — quieto, mas não narcotizado por drogas, não hipnotizado — não haverá espaço nenhum na mente.

Vós necessitais de espaço na mente. Mas não pode existir espaço quando não há quietude completa. Esse espaço não é imaginário, não é romântico, não é criado por insensatas ideias de esforço e realização; ele se torna existente quando o cérebro compreendeu e se tornou completamente quieto. Há, então, espaço no interior da mente.

Deve haver espaço na mente, e esse espaço é “inocência”. Nenhuma sociedade, nenhum pensamento, nenhum sentimento, nenhuma experiência, pode entrar nesse espaço, que é o “desconhecido”. Ele não é o espaço que os foguetes descobrem, o espaço que se estende acima de nós. É um espaço que não pode ser descoberto; não podeis buscá-lo; não há caminho a ele conducente. Mas esse espaço existirá quando tiverdes compreendido toda a estrutura psicológica, consciente e inconsciente, de vosso ser. Podeis compreendê-la instantaneamente, num momento, sem necessidade das complicações da análise, da investigação; podeis chegar a ele imediatamente; e quando chegais, lá está ele. Esse espaço é completamente vazio; nele nenhum pensamento, nenhum sentimento pode entrar. Pensamento e sentimento são reações do “conhecido”; e o cérebro contém associações que se formaram e constituíram o “eu”, sob as influências sociais. Por conseguinte, “libertação do conhecido” significa quietação do cérebro.

O que agora vou dizer acerca desse espaço não terá significação para vós, será pura teoria. Não terá valor para vós, a não ser para efeito de repetição; mas o que se repete nenhuma significação tem. Entretanto, falo-vos a esse respeito para verdes que tal espaço existe; para o verdes indiferentemente — e não para o “pegardes” e guardardes; é tão impossível “guardá-lo”, como aprisionar o vento na mão fechada. Mas deveis conhecer a poesia de algo belo. Para se ver aquele espaço, necessita-se de extraordinária sensibilidade. Ora, nesse espaço nada existe, porque a mente está vazia — não há, nela, nenhum pensamento, nenhum sentimento. E porque está vazio, esse espaço contém energia — não a energia criada pela resistência. Porque há vazio, espaço, existe aquela energia que é criação.

A criação é também destruição. Toda coisa criada é o “conhecido”. Mas aquela criação, que é “inocência”, é destrutiva de tudo quanto é conhecido; o “conhecido” não pode entrar. E, porque é criação e ao mesmo tempo destruição, há, nela, Amor — não o amor da memória, o amor de vosso marido ou esposa, o amor de vossos filhos; tais sentimentos são apenas a reação de vários desejos, impulsos, ambições, e preenchimentos. Naquele amor não há divisão: é Amor. E a mente tanto pode amar um só como muitos, pois não há divisão nesse Amor.

A meditação, pois, é o florescimento inicial da bondade. Quando a bondade floresce profundamente em nós, sem que na mente subsista nenhuma raiz do “eu”, de autopiedade, de memória, desse simples começo surge a imensidade que não é do tempo, que não tem começo nem fim. E isto é o Eterno, o Imensurável.

Krishnamurti, Bombaim, 11 de março de 1962, A mutação Interior


segunda-feira, 9 de abril de 2018

Nós, os ativos seres superficiais


Nós, os ativos seres superficiais

Falarei hoje sobre a qualidade da mente meditativa. Esta pode ser um tanto complexa e abstrata, porém, se a examinarmos atentamente, não tanto em suas minúcias, mas com o propósito de descobrir sua natureza, sua índole, sua essência, então talvez valha bem a pena fazê-lo. Então, talvez, com esforço consciente e propósito deliberado, estaremos aptos a ultrapassar a mente superficial, que tão vazias torna as nossas vidas — tão sem profundeza que é, tão senhoreada pelos hábitos.

Antes de tudo, valeria a pena reconhecermos por nós mesmos o quanto somos superficiais. A mim me parece que quanto mais superficiais, tanto mais ativos e mais “coletivos” nos tornamos, e tanto mais nos entregamos às atividades de reforma social. Colecionamos obras de arte, tagarelamos interminavelmente, dedicamo-nos a atividades sociais, frequentamos concertos, bibliotecas, galerias de arte, e submergimos na interminável rotina do emprego e dos negócios. Estas coisas tornam-nos embotados; e quando percebemos esse embotamento, procuramos fazer-nos mais penetrantes, por meio de palavras, do intelecto, das coisas da mente. E, reconhecendo-nos superficiais, tentamos fugir a esse vazio, entregando-nos a práticas religiosas, às orações, à contemplação, à busca de saber; tornamo-nos idealistas, adornamos de quadros as paredes etc. Acho que estamos suficientemente apercebidos de sermos muito superficiais, bem apercebidos de que a mente que segue um hábito ou pratica uma disciplina a fim de “vir a ser algo” torna-se cada vez mais embotada e estúpida, perdendo toda penetração e sensibilidade. É dificílimo a uma mente superficial despedaçar sua própria estreiteza, suas próprias limitações, sua própria insignificância. Não sei se já pensastes nisso alguma vez.

O assunto de que vou tratar nesta tarde requer, não só certa atividade mental, intelectual, mas também uma clara compreensão da palavra e de suas limitações. E, se pudermos entrar em comunhão uns com os outros, não apenas verbalmente, porém ultrapassando o símbolo que a palavra evoca na mente e, também, prosseguindo juntos e cautelosamente o nosso caminho, então, sem dúvida, começaremos a descobrir, por nós mesmos, o que é meditar e qual é a qualidade da mente capaz de meditação.

Parece-me que, se não compreendemos a extraordinária beleza da meditação, por mais que pareçamos inteligentes, prendados, competentes, penetrantes, nossa vida tem de ser muito superficial e mui pouco significativa. E, reconhecendo quão pouco significativa é nossa vida, tratamos de buscar uma “finalidade da vida”; e quanto mais grandiosa a “finalidade” que nos oferecem, tanto mais nobres julgamos serem os nossos esforços. Penso que a busca de “finalidade” é procedimento absolutamente errôneo. Não há finalidade; o que há é o viver sem limitações. E para se descobrir esse estado isento de limitações, requer-se uma mente muito perspicaz, muito clara, penetrante e precisa, e não uma mente embotada pelo hábito.

Evidentemente, nossas vidas são vazias, superficiais. E a mente superficial facilmente se satisfaz. Ao ver-se descontente, põe-se a seguir uma estreita rotina, fixa um ideal, sai atrás do que deveria ser. E essa mente, não importa o que faça — quer estejamos sentados de pernas cruzadas, a contemplar meditativamente o umbigo, quer meditemos a respeito do Supremo — permanecerá sempre vazia, porque sua mesma essência é sem profundeza. Uma mente estúpida nunca se tornará uma mente superior. O que ela pode fazer é compreender sua própria estupidez; e, no momento em que perceber, por si mesma, o que ela própria é, sem imaginar o que deveria ser, “quebra-se” então a estupidez. Com esta compreensão, toda busca termina — mas isto não significa que a mente se torna “estagnada”, adormecida. Pelo contrário, está enfrentando o que é, em sua realidade; e isso não é processo de busca, porém de compreensão.

Afinal, a maioria das pessoas está em busca de Deus, da Verdade, do eterno amor, de uma eterna morada celestial, um amor permanente. E a mim me parece que a mente que busca é muito superficial. Acho que devemos compreender mais ou menos este ponto, investigá-lo, ver quanto são absurdas a mente superficial e suas atividades, pois não poderemos penetrar fundo, em nossas investigação desta tarde, se continuarmos a pensar em termos de busca, de esforço para descobrir. Ao contrário, necessitamos de uma mente sobremodo penetrante, quieta, tranquila. A mente sem profundeza, que se esforça para tornar-se silenciosa, continua a ser apenas qual uma poça d’água, sem profundidade. A mente limitada, sempre tão sabedora, tão sagaz, tão empolgada da ambição de achar Deus, a Verdade, ou um santo qualquer, porque seu desejo é chegar a alguma parte — essa mente continua superficial, porquanto todo esforço é superficial, produto da mente limitada, estreita. Jamais pode ser sensível essa mente; e parece-me necessário encararmos esta verdade. O esforço para ser, “vir a ser”, rejeitar, resistir, cultivar a virtude, reprimir, sublimar — tudo isso, em essência, constitui a natureza da mente superficial. Provavelmente a maioria não concordará com isso, mas não importa. A mim me parece um óbvio fato psicológico.

Ora, quando uma pessoa percebe isso, se torna apercebida disso, percebe a sua verdade, realmente e não verbal nem intelectualmente — e não deixa a mente fazer perguntas sem conta sobre como modificar este fato, como libertar-se desta superficialidade — sendo que tudo isso envolve esforço — reconhece então a mente que nada pode fazer contra esse estado. O que pode fazer é apenas perceber, ver as coisas cruamente, tais como são, sem deformação, sem invocar opiniões a respeito do fato; quer dizer, observar simplesmente. E é dificílimo observar pura e simplesmente, porque nossa mente foi exercitada para condenar, comparar, competir, justificar ou identificar-se com o que vê. Por esta razão, nunca vê as coisas tais como são. “Viver com um sentimento” tal qual ele é — seja ciúme, inveja, ambição, ou seja o que for — “viver com ele” sem o deformar, sem emitir opinião ou julgamento a seu respeito, isso requer uma mente dotada de energia para seguir todos os movimentos do fato. Um fato nunca é estático; ele se movimenta, vive. Mas nós o queremos estático, aprisionando-o com uma opinião, um juízo.

Assim, a mente que está vigilante, que é sensível, percebe a futilidade de todo esforço. Mesmo na educação, a criança, o estudante que forceja para aprender, nunca aprende realmente. Poderá adquirir conhecimento, tirar um diploma; mas aprender é coisa que transcende o esforço. Talvez possamos nesta tarde aprender juntos, sem esforço, em lugar de ficarmos presos na esfera do conhecimento.

Estar apercebido do fato, sem o desfigurar, sem o colorir, sem lhe dar nenhuma tendência — observar a nós mesmos tais como somos — com todas as nossas teorias, esperanças, desesperanças, sofrimentos, fracassos e frustrações — isso torna a mente em extremo penetrante. O que torna a mente embotada são as crenças, os ideais, os hábitos, a busca de seu próprio engrandecimento, desenvolvimento, seu próprio vir a ser ou ser. Como disse, para se seguir o fato requer-se uma mente precisa, sutil, ativa, porquanto o fato nunca é estático.

Não sei se já alguma vez olhastes a inveja como um fato, seguindo-a. Todas as nossas sanções religiosas baseiam-se na inveja, do arcebispo ao ínfimo clérigo; e toda a nossa moralidade social, nossas relações, estão baseadas na aquisição e na comparação, e esta, por seu turno, significa inveja. E seguir isso até o fim, em todos os seus movimentos, em todas as nossas atividades diárias, requer uma mente muito alertada. É muito fácil — não achais? — reprimi-lo, dizendo: “Vejo que não devo ser invejoso”, ou “Já que estou aprisionado nesta sociedade, corrompida, tenho de aceitar esta condição”. Mas seguir todos os movimentos do fato, cada curva, cada linha, cada nuança, cada sutileza — esse próprio “processo” de segui-lo torna a mente sensível, sutil.

Ora bem, se fazemos isso, se seguimos o fato sem tentar alterá-lo, não existe então contradição entre o fato e o que deveria ser, e, portanto, nenhum esforço existe. Não sei se estais percebendo isto realmente; que se a mente está seguindo o fato, não está então empenhada em alterá-lo, em torná-lo diferente. Isto, também, é uma verdade psicológica. E esse seguimento do fato precisa ser feito a todas as horas, noite e dia, mesmo durante o sono. Pois a atividade da mente quando o corpo dorme é muito mais deliberada, positiva, e essas atividades são descobertas pela mente consciente através de símbolos, sugestões, sonhos.

Mas se a mente se conserva vigilante, no correr do dia, observando a todas as horas cada movimento, cada gesto, cada movimento de pensamento, não há então sonhar; pode então a mente ultrapassar a própria consciência. Não prosseguiremos nisso, por ora, porque o que desejamos salientar é a necessidade de uma mente sensível. Para se descobrir o que é a Verdade, Deus, ou o nome que preferirdes, é absolutamente necessário ter uma mente lúcida — não no sentido de talentosa, intelectual, alegativa; uma mente capaz de raciocinar, de examinar, de duvidar, de indagar e investigar, a fim de descobrir. A mente que tem fronteiras, que está condicionada, não é sensível. O nacionalista, o crente, por certo não tem uma mente sensível, porquanto sua crença, seu nacionalismo lhes limita a mente. Assim, no seguir o fato, a mente se torna sensível. O fato a torna sensível e não há necessidade de fazermos a mente sensível.

Se está mais ou menos claro isso, qual é então a natureza da beleza que essa mente descobre? A beleza, para a maioria de nós, reside nas coisas que vemos objetivamente — um edifício, um quadro, uma árvore, um poema, um rio, uma montanha, o sorriso de um belo rosto, a criança que vemos na rua. E existe também, para nós, a negação da beleza, a reação à beleza, que é o dizermos: “Isto é feio”. Mas a mente sensível é sensível tanto para o feio como para o belo e, por consequência, não há nenhuma busca daquilo a que chama belo e nenhuma evitação do feio. E com essa mente descobrimos que existe uma beleza inteiramente diferente das avaliações feitas pela mente limitada. Deveis saber que a beleza requer simplicidade, e a mente muito simples, que vê os fatos tais como são, é uma mente muito bela. Mas não podemos ser simples se não houver passividade, e não há passividade se não há austeridade. Não me refiro à austeridade da tanga, das longas barbas, do monge, do tomar só uma refeição por dia, porém à austeridade da mente que se vê como é e segue infinitamente aquilo que vê. E esse seguir é passividade, porquanto a mente a nada está apegada. A mente deve ficar completamente passiva, para ver “o que é”.

Assim, o percebimento da beleza requer a paixão da austeridade. Estou empregando propositadamente as palavras “paixão” e “austeridade”. Já expliquei o que é austeridade; e da paixão necessitamos obviamente para ver a beleza. Necessita-se de intensidade, e necessita-se de penetração. A mente embotada não pode ser austera, não pode ser simples e, por conseguinte, é sem paixão. É na chama da paixão que se percebe a beleza, que se pode “viver com a beleza”.

Talvez tudo isso, para vós, não passe de palavras, para serem lembradas, invocadas, sentidas, mais tarde. Não há “mais tarde”; não há “ínterim”. Isso tem de acontecer agora, enquanto conversamos, enquanto estamos em comunhão uns com os outros. E esse percebimento da beleza não reside apenas nas coisas — em vasos, estátuas, o céu — mas começa-se também a descobrir a beleza da meditação, e a intensidade, a paixão da mente meditativa.

Desejo agora apreciar a meditação, porquanto a meditação é necessária, e estamos aqui lançando as suas bases. Para a meditação, necessita-se de uma mente capaz de permanecer em silêncio — não uma mente posta em silêncio por meio de artifícios, de disciplina, de persuasão, de repressão, porém uma mente completamente tranquila. Isso é absolutamente essencial à mente que se acha num estado de meditação. Por conseguinte, a mente deve estar libertada de todos os símbolos e palavras. Ela é escrava das palavras, não? Os ingleses são escravos da palavra “rainha”, os indivíduos religiosos escravos da palavra “Deus”, etc. A mente atravancada de símbolos, de palavras, de ideias, é incapaz de estar em silêncio, quieta. E a emaranhada em seus pensamentos é incapaz de estar tranquila. Essa tranquilidade não é estagnação, um estado “em branco”, um estado de hipnose: mas ela pode ser alcançada “no escuro”, inesperadamente, sem volição e sem desejo, quando compreendemos o mecanismo do pensamento.

O pensamento, afinal de contas, é reação da memória; e a memó­ria é o resíduo da experiência; e o resíduo da experiência é o centro, o “eu”. Assim se forma o centro, o “eu”, que é essencialmente acumulação de experiência, passada e presente, em relação tanto à coletividade como ao indivíduo. Desse centro, o resíduo da memória, emana o pensamento; e esse processo precisa ser compreendido completamente — e isso é autoconhecimento. Assim, sem autoconhecimento, consciente e inconsciente, a mente nunca estará tranquila. Só poderá hipnotizar-se para tornar-se tranquila, mas isso é infantil, sem madureza.

O autoconhecimento, portanto, é imediato, é necessário e urgente, porquanto a mente que conhece a si própria e a todos os seus artifícios, imaginações e atividades, pode chegar sem esforço, sem exigência, sem premeditação, ao estado de completa quietude. Conhecer a si mesmo é conhecer a totalidade do pensamento e saber como este divide a si próprio em “eu superior” e “eu inferior”. É o percebimento da totalidade desse movimento de experiência, memória, pensamento, e também do centro — pois o centro se torna pensamento, memória e experiência; e a experiência, por sua vez, se torna memó­ria mediante o ulterior condicionamento da experiência.

Espero me estejais seguindo, pois, se vos observardes atentamente, podeis perceber isso. O centro nunca é estático. O que era “centro” se toma experiência, e a experiência se torna “centro”, e “o centro” se transforma em memória. E tal como causa e efeito. O que era causa se toma efeito, e o efeito se torna causa. E esse mecanismo não é só consciente, mas também inconsciente. O inconsciente é o resíduo da raça, do homem, oriental ou ocidental; essas tradições herdadas, no encontro com o presente, se transformam noutra tradição. Para se perceberem as múltiplas camadas do inconsciente e o seu movimento, necessita-se de uma mente bem penetrante e viva, que nunca esteja, por um momento sequer, a buscar segurança, conforto. Porque, no momento em que se busca segurança, conforto, está tudo acabado, vemo-nos atolados, aprisionados. A mente ancorada na segurança, no conforto, na crença, num padrão, num hábito, não pode ser ágil.

Eis, pois, o que é autoconhecimento; e conhecer a si mesmo significa descobrir o fato e seguir o fato sem nenhum interesse em modificá-lo. E isso requer atenção. Atenção é uma coisa, concentração outra coisa muito diferente. A maioria dos que desejam meditar espera adquirir o poder da concentração. Todo colegial sabe o que é concentração. Ele deseja olhar pela janela, e o mestre lhe diz: “Olha para teu livro”; e trava-se uma batalha entre o desejo de olhar para fora e a compulsão do medo, da competição, que o força a olhar para o livro. Concentração, pois, é uma forma de exclusão, não achais? E embora em tal “mecanismo” possais tornar-vos perspicazes, vossa mente está sendo limitada. Tende a bondade de ir seguindo isso, sem aceitar nem rejeitar, porém, simplesmente, observando.

A mente que se limita a concentrar-se conhece a distração; mas a que está atenta, não tolhida pela concentração, não conhece distração. Tudo, então, é movimento vivo. Compenetrai-vos bem disso e vereis como lançareis fora toda a carga de mandamentos religiosos que vos foi imposta e olhareis a vida de diferente maneira. Torna-se a vida então algo maravilhoso, extraordinariamente significativo — o verdadeiro viver que não é fugir.

Quando se dá a uma criança um brinquedo, cessa completamente o seu desassossego e ela se torna quieta, toda absorvida no brinquedo. E o mesmo acontece conosco; temos também nossos brinquedos: Mestres, salvadores, obras de arte; e, neles se absorvendo, a mente se torna quieta. Mas, essa absorção é morte para a mente.

Pois bem, a atenção não é o oposto da concentração; não está em relação com a concentração, e, por conseguinte, não é reação à concentração. Atenção é estar a vossa mente apercebida de cada movimento que se verifica dentro e fora dela própria. Significa, não apenas ouvir os barulhos do tráfego, mas também o que se está dizendo, e estar apercebido da reação ao que se está dizendo, apercebido sem escolha, para que não haja limitações à mente. Quando a mente está atenta dessa maneira, a concentração tem, então, significado completamente diferente; pode, então, a mente concentrar-se, mas tal concentração não é esforço, não é exclusão, porém parte do percebimento. Não sei se estais compreendendo bem.

Essa atenção é bondade; essa atenção é virtude; e nessa atenção encontra-se o amor e, portanto, aconteça o que acontecer, lá não pode existir o mal. O mal só se torna existente quando há conflito. A mente atenta, completamente apercebida de si mesma e de todas as coisas que se passam nela própria, é capaz de transcender a si própria.

A meditação, pois, não é um “mecanismo” de “saber meditar”, de se ser ensinado a meditar; isso é completamente infantil, pois daí provém hábito, e todo hábito torna a mente embotada. Aprisionada em seu próprio condicionamento poderá a mente ter visões do Cristo ou dos deuses indianos, ou do que quer que seja, mas, sem embargo, está condicionada. O cristão só pode ter visões do Cristo, e o hindu só pode ter visões dos seus deuses prediletos. A mente meditativa não é imaginativa; portanto, não tem visões.

Assim, quando a mente, depois de agitar-se inutilmente na esfera de seus próprios movimentos, começa a seguir a atividade de seus pensamentos, a amar o seu centro, seu movimento, suas experiências, só então é capaz de compreensão, só então está quieta.

Agora, um momento, Este orador pode comunicar-vos verbalmente o que então sucede, mas isso é muito sem importância, porque vós é que tendes de descobri-lo. Deveis chegar àquele estado, abrindo vós mesmo a porta. Se outro vos abre a porta, ou procura abri-la, então esse outro se torna vossa autoridade, e vós o seu seguidor. Por conseguinte, isso significa morte para a verdade; morte para a pessoa que diz que “sabe”, e morte para aquele que pede “ dizei-me” . A ânsia de saber gera a autoridade; desse modo, tanto o guia como o seguidor se acham presos na mesma rede.

Ora bem. Este que vos fala está-vos expondo isto tudo, não com o intuito de convencer-vos, ou estimular-vos, ou demonstrar-vos algo, ou coisa parecida, mas, sim, porque, quando o compreenderdes, vereis a relação existente entre o tempo e o espaço.

Quando a mente está completamente livre de barreiras, de limitações, acha-se então num estado de plenitude: e, nesta plenitude, está vazia: e nesse vazio pode conter o tempo — tempo como espaço e distância; tempo como ontem, hoje e amanhã. Mas, não havendo aquele vazio, não há tempo, nem espaço, nem distância. Por causa daquele vazio, existe o tempo e, portanto, distância e espaço. E quando a mente descobre isso, experimenta-o, não verbalmente, porém realmente, não como coisa lembrada — ela sabe, então, o que é criação — criação e não coisa criada. E vereis então que, ao dobrardes uma esquina, ao passeardes na floresta ou por uma rua imunda, ou onde quer que seja, sempre vos encontrareis com o Eterno.

A mente, pois, jornadeou pelo seu próprio interior, pelas últimas profundezas de si própria. Esta não é jornada semelhante à viagem à Lua num foguete, que é relativamente fácil, mecânica; e a jornada interior, a visão interior não é mera reação ao exterior. É um só movimento: interior e exterior. E quando há essa visão profunda, interior, essa atenção interior, esse movimento interior, a mente, então, já não está separada do Sublime. Por conseguinte, toda busca, toda ânsia, tudo terminou.

Por favor, não vos deixeis hipnotizar, influenciar por minhas palavras. Se estais influenciados, não podeis saber por vós mesmos o que é o amor. A meditação é o descobrimento dessa coisa extraordinária que se chama Amor.

Krishnamurti, Londres, 23 de maio de 1961, O Passo Decisivo

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Há uma mente não contaminada pelo passado?


Há uma mente não
contaminada pelo passado?

SERIA interessante e proveitoso examinarmos nesta tarde a questão relativa ao fator de deterioração da mente. Quando jovens, somos muito zelosos, temos tantas ideias entusiásticas, revolucionárias, mas em geral acabamos enredados numa dada atividade e, lentamente, nos esgotamos. Vemos isso acontecer ao redor de nós e dentro de nós mesmos; e é possível deter esse mecanismo de deterioração, que constitui sem dúvida um dos nossos problemas principais? Se é ao capitalismo ou ao socialismo, à esquerda ou à direita, que cabe organizar o bem-estar mundial — agora, que a produção é imensa — não me parece ser esse o problema. Penso que o problema é muito mais profundo, e o problema é este: pode-se libertar a mente, de maneira que ela permaneça livre para sempre e, por conseguinte, não mais sujeita à deterioração?

Não sei se já pensastes neste problema, ou se já tendes observado como a pouco e pouco se esgota a vitalidade, o vigor, a vivacidade da nossa mente e ela se torna, gradualmente, um instrumento de hábitos e crenças mecânicos, um complexo de rotina e repetição. Se realmente temos pensado a este respeito, devemos ver que isso é um problema, para a maioria de nós. Quando vamos envelhecendo, o peso do passado, a carga das coisas lembradas, das esperanças, das frustrações, dos temores, tudo parece cercar e fechar a mente e dela nunca nos vêm coisas novas, mas só repetições, um sentimento de ansiedade, uma perpétua fuga de si mesmo e, por fim, o desejo de encontrar alívio de alguma espécie, um pouco de paz, um Deus que nos satisfaça completamente. Ora, se pudéssemos examinar bem esta questão, acho que seria muito proveitoso. Pode a mente ser libertada de todo esse mecanismo de deterioração e ultrapassar a si mesma, não de maneira misteriosa ou miraculosa, não amanhã ou noutra data futura, mas imediatamente, instantaneamente? Esse descobrimento pode ser função da meditação. Porque é, pois, que nossa mente se deteriora? Porque é que nada existe de original em nós, que tudo o que sabemos é mera repetição, que nunca há constância de criação? Estes são os fatos, não é verdade? Que é que causa essa deterioração, e pode a mente detê-la? Iremos debater a este respeito, dentro em pouco, e espero tomeis parte na discussão.

A mim é bem óbvio que existirá necessariamente deterioração, enquanto houver esforço. E pode-se observar que nossa vida está toda baseada no esforço — esforço para aprender, adquirir, reter, ser alguma coisa ou renunciar ao que somos e virmos a ser outra coisa. Haverá sempre esta luta de ser ou vir a ser, consciente ou inconscientemente, voluntariamente ou sob o impulso de desejos ocultos; e esta luta não é a causa principal da deterioração da mente?

Como disse, nós vamos debater esta questão, depois de eu dizer mais umas palavras, e peço-vos portanto não fiqueis apenas a ouvir palavras. Estamos tentando descobrir juntos por que razão a onda de deterioração está sempre a perseguir-nos. Sei que existe o problema imediato da alimentação, do vestir e morar, mas acho que temos de considerar este problema de um ângulo diferente, se queremos resolvê-lo; e mesmo àqueles de nós que têm o suficiente para comer e vestir e têm onde morar, apresenta-se outro problema que é muito mais profundo. Observa-se no mundo tanto a existência da extrema tirania como de uma liberdade relativa e se só nos interessasse a distribuição universal dos alimentos e outros produtos, então talvez a tirania absoluta pudesse ser útil. Mas nesse processo se destruiria a possibilidade de desenvolvimento criador do homem; e, se o que nos interessa é o homem total e não unicamente o problema social e econômico, neste caso acho que tem de surgir inevitavelmente uma questão muito mais fundamental. Porque existe este processo de deterioração, esta incapacidade de descobrir o novo, não no terreno científico, mas dentro de nós mesmos? Por que razão não somos criadores?

Se observardes o que está sucedendo, seja aqui, seja na Europa ou América, devereis perceber que quase todos estamos imitando, conformando-nos, obedecendo ao passado, à tradição, e como indivíduos jamais descobrimos, profundamente, fundamentalmente, coisa alguma por nós mesmos. Vivemos como máquinas, de onde nos advém um certo sentimento de desdita, não é verdade? Não sei se realmente investigastes isto, mas parece-me que uma das causas principais desse conformismo é o desejo de nos sentirmos interiormente seguros. Para se estar em segurança, psicologicamente, tem de haver separação, e para se estar separado necessita-se de esforço, esforço para ser algo; e esse pode ser um dos fatores que está impedindo o descobrimento de qualquer coisa nova, por parte de cada um de nós. Podemos discutir este ponto? (Pausa)

Muito bem, senhores, vamos expressar o problema de maneira diferente. Vê-se que a meditação é necessária, uma vez que, por meio da meditação, se podem descobrir muitas coisas. A meditação abre-nos a porta a experiências extraordinárias, tanto fantasiosas como reais; e estamos sempre a indagar como se medita, não é verdade? Os mais de nós lemos livros que prescrevem um sistema de meditação, ou recorremos a um certo instrutor para que nos ensine a meditar. Mas nós, aqui, queremos saber, não como meditar mas o que é meditação; e a própria investigação para saber o que é meditação, é meditação. Entretanto, nossa mente deseja saber como meditar e, desse modo, facilita-se a deterioração.

Se o pensamento é capaz de investigar com muita profundeza e de desnudar-se diante de si mesmo, sem procurar corrigir, mas sempre vigilante a fim de descobrir sem condenar, mas sempre examinando as coisas muito atentamente, então, esse estado mental pode chamar-se meditação. E essa mente, sendo livre, é capaz de descobrimentos. Para ela não existe deterioração, porque nunca há acumulação. Mas a mente que diz: "Ensina-me como tornar-me tranquila, como chegar lá, e me esforçarei para seguir o método que indicardes" — essa mente, é bem óbvio, é imitativa, sem audácia e, por conseguinte, está provocando a própria deterioração.

Aos mais de nós só interessa o coma, que é um meio de certeza, segurança. O como — por mais nobre, por mais exigente, por mais disciplinador que seja — só nos pode levar ao conformismo. A mente que quer ajustar-se pelos seus próprios esforços torna-se escrava de um método, perdendo, por conseguinte, a extraordinária capacidade de descobrimento. E se não houver o descobrimento, em vós mesmo, de algo original, novo, não contaminado, ainda que tenhais a mais perfeita organização para produzir e distribuir os meios de satisfazer as necessidades físicas, continuareis a ser igual a uma máquina. Por conseguinte, este problema vos concerne, não? Pode a mente, tão mecanizada que está, tão dominada pelo hábito, pelo passado, libertar-se do passado e descobrir o novo, chamai-o Deus ou como quiserdes? Podemos discutir sobre isto? (Pausa)

Senhores, este problema é novo para vós, ou acaso nunca pensastes nestas coisas por esta maneira? Mais uma vez vou expressar o problema de modo diferente.

Sois bem versados no Upanishads, no Gita, na Bíblia, estais bem familiarizados com a filosofia do hinduísmo, do cristianismo, do comunismo, etc.. Estas filosofias, estas religiões, muito evidentemente não resolveram o problema humano. Se dizeis: "O problema humano não foi resolvido, porque não temos seguido estritamente os preceitos do Gita" — a resposta óbvia que se pode dar é que, seguir qualquer autoridade, por mais nobre ou tirânica que ela seja, torna a mente mecanizada, sem originalidade, tal qual um disco de gramofone, que só é capaz de repetir e repetir e repetir; e em tal estado não se pode ser feliz.

Agora, conhecedores deste fato, de que maneira vos lançaríeis ao descobrimento do Real, por vós mesmos? Compreendeis, senhores Deus, a Verdade, ou o que quer que seja, tem de ser uma coisa totalmente nova, uma coisa fora do tempo, fora da memória, não achais Não pode ser uma coisa lembrada, do passado, uma coisa que foi dita ou conjeturada, criada pela mente. E como ireis descobrir essa coisa? Certamente, ela só pode ser descoberta quando a mente está livre do passado, quando a mente deixa de criar imagens, símbolos. Quando a mente formula imagens, símbolos, não é isso um autêntico fator de deterioração? É provável seja isso o que está acontecendo na Índia, bem como no resto do mundo.

Está claro o problema? Ou isso não é problema para vós?

INTERPELANTE: A mente não pode transcender suas próprias e passadas experiências.

INTERPELANTE: Quando a mente está condicionada...

KRISHNAMURTI: Perdão, aquele senhor fez uma pergunta.

INTERPELANTE: Foi uma pergunta ou uma declaração?

KRISHNAMURTI: Provavelmente a intenção era interrogativa. Infelizmente, em geral, tanto nos ocupamos com a formulação de uma pergunta ou com nossa própria maneira de considerar as coisas, que nunca escutamos realmente uns aos outros. Disse este cavalheiro que não é possível a mente libertar-se do passado. Este problema não nos concerne tanto que a ele?

INTERPELANTE: Se ele deseja saber como separar-se do passado, isto é uma pergunta e não uma declaração.

KRISHNAMURTI: Perdão, senhor, não estamos aqui para dar uma exibição um "show" de retórica, nem para provar quem tem razão e quem não tem razão. Estamos, verdadeiramente, tentando descobrir por que motivo a mente nunca descobre nada novo. Não nos estamos referindo, por ora, aos especialistas, tais como cientistas, físicos, etc., porém a nós mesmos, como entes humanos.

INTERPELANTE: A propósito da questão suscitada por aquele senhor, sobre se a mente pode rejeitar o passado, desejo perguntar o que se entende por "passado".

KRISHNAMURTI: O passado é experiência, memória, conhecimento, a influência da tradição, a impressão produzida pelo insulto e pela lisonja, pelos livros que temos lido, pelos risos, e pelo espetáculo da morte. Tudo isso é o passado — tempo.

INTERPELANTE: Dizeis que a mente está condicionada pelo passado. Mas, acha-se ela tão rigidamente condicionada pelo passado, que é incapaz de investigar mais além?

KRISHNAMURTI: Que é a mente, senhor? Não respondais teoricamente ou de acordo com o que lestes nos livros. Podemos vós e eu descobrir, aqui, nesta tarde, o que é a mente?

INTERPELANTE: A mente é produto do passado?

KRISHNAMURTI: Vossa mente é produto do passado? Que entendeis por "passado"?

INTERPELANTE: Tudo o que existe na minha mente, no presente, vem do passado.

KRISHNAMURTI: Pode a mente separar-se do passado? Examinemos a mente — não uma mente teórica, mas a mente de cada um de nós. Vossa mente é o resultado de numerosas influências, tanto coletivas como individuais, não é exato? Vossa mente é produto da educação, da alimentação, do clima, de muitos séculos de tradição; ela é constituída de vossas crenças, desejos, lembranças, das coisas que lestes, etc. Isso é a mente, pois não, senhor? A mente consciente que opera todos os dias, e a mente que se acha num nível profundo, oculto — todas duas são resultados do passado. Até onde é possível enxergar, todo o território da mente é resultado do passado. Podeis crer que há Deus ou que não há Deus, podeis pensar que existe um "eu superior" e um "eu inferior", etc.; mas tudo isso é resultado de vossa educação, vosso condicionamento, a que significa que vossa mente é resultado do passado, não achais? E essa mesma mente quer encontrar algo que seja novo. Diz ela: "Tenho de saber o que é Deus, o que é a Verdade". Não é isto que estamos fazendo, senhoras e senhores? E eu digo que isso é impossível, uma contradição.

INTERPELANTE: Parece-me que a maioria das pessoas, pouco se está importando com Deus. Todos estamos interessados nos problemas da vida.

KRISHNAMURTI: E daí resulta que existe antagonismo, animosidade, frustração, ânsia de poder, posição, prestígio; porque outro possui o que cobiçais, vos sentis invejoso, etc. Estes são problemas da vida, não? Desejar ser amado, desejar mais dinheiro, desejar melhorar as condições de vida em nossa aldeia, por este ou aquele sistema, ter uma crença ou um ideal, em contradição com a existência de cada dia — sendo preciso lançar uma ponte entre o fato e o ideal — tudo isso é a vida.

INTERPELANTE: Mas a vida é também algo mais. Se sou professor, desejo ensinar melhor.

KRISHNAMURTI: E isso redunda na mesma coisa. Tudo isso são problemas da vida, e quando tentamos resolver qualquer um deles, esbarramos na questão principal. Dizeis que desejais ensinar melhor, pensar melhor, viver uma vida mais plena, etc. Que entendeis por "pensar melhor"? É um processo de aquisição de mais conhecimentos? Como podeis saber o que é "melhor"?

INTERPELANTE: Pensando profundamente.

KRISHNAMURTI: Que significa "pensar profundamente”? E que significa "pensar"? Se não sabeis o que é pensar, não podeis pensar profundamente. Que é pensar? Fazei-me o favor de dizer o que é pensar.

INTERPELANTE: Pensar é o processo de suscitar associações sucessivas.

KRISHNAMURTI: Pergunto-vos o que é "pensar", e se observardes a vossa mente, vereis como estais "reagindo" a esta pergunta; e isso é que é pensar, não é? Entendeis o que estou dizendo?

INTERPELANTE: Está técnico demais.

KRISHNAMURTI: Observai-vos, e vereis. Faço-vos uma pergunta: "O que é pensar?"

INTERPELANTE: Perguntar o que e a mente e perguntar o que é pensar, é a mesma coisa.

KRISHNAMURTI: Eu quero saber o que é pensar. Ora, qual é o processo que entra em funcionamento, dentro em vós, em virtude desta pergunta?

INTERPELANTE: Quando queremos observar o pensar, a mente se imobiliza. Não se tem resposta alguma.

INTERPELANTE: O pensamento é uma coisa tão espontânea, que não sabemos o que é.

KRISHNAMURTI: Estou perguntando uma coisa: "Que é pensar?" Ora, que faz a vossa mente, quando se vos apresenta esta pergunta? Não desejais saber como opera a vossa mente? Que acontece quando a mente se vê em presença de uma pergunta desta natureza? Por um instante, a mente hesita, porque provavelmente nunca pensou nisso, anteriormente; depois, dá uma busca pelo depósito da memória, e diz "Vejamos: o Upanishads diz isto, a Bíblia diz aquilo. Bertrand Russell diz aquiloutro, e eu — que penso?" Assim sendo, procurais uma resposta no passado, não é verdade?

INTERPELANTE: Não estamos pensando em Bertrand Russell.

KRISHNAMURTI: É provável que não; mas esta é que é a verdadeira operação da vossa mente, quanto se vos faz uma pergunta. Se se vos pergunta sobre uma questão com que vossa mente está bem familiarizada, a resposta é imediata. Se alguém vos pergunta onde morais, respondeis imediatamente, porque isso vos é familiar, é uma associação constante. Mas se se vos faz uma pergunta estranha, vossa mente hesita, e esta hesitação indica que estais a procurar a resposta, não? E onde procurais a resposta? Na memória, é óbvio. Vosso pensar, portanto, é reação da memória. Não é?

INTERPELANTE: Significa isso que uma pessoa que perdeu a memória, é incapaz de pensar?

KRISHNAMURTI: O esquecimento completo chama-se amnésia, e uma pessoa que se acha nesse estado tem de aprender tudo de novo.

INTERPELANTE: A memória é coisa boa ou má!

KRISHNAMURTI: Se não soubésseis onde é vossa residência, que faríeis? Se ignorásseis o nome da rua que conduz à vossa casa, isso seria bom ou mau?

Estamos averiguando, senhor, o que é pensar. Para nós, em geral, pensar é reação da memória, não? Porque sei onde moro, respondo prontamente quando mo perguntam; e quando se me faz uma pergunta mais sutil, procuro na minha memória uma resposta. Mas a memória é experiência de séculos e, por isso, a minha resposta, inevitavelmente, tem de ser condicionada. Isto, certamente, é bastante óbvio.

Senhor, se sois hinduísta e eu vos perguntar se há reencarnação, vossa reação instintiva é de dizer que há, e esta reação se baseia na influência de vossos pais, vossos livros sagrados e o meio que vos circunda. Respondeis de acordo com o que vos ensinaram; vosso pensar é resultado de influência e, portanto, está evidentemente condicionado. Agora, perguntamos a nós mesmos, pode a mente dissociar-se do passado e descobrir o que é verdadeiro?

INTERPELANTE: Pareceis descrever a mente como uma coleção de experiências passadas, e acho que todos concordamos com isso; mas agora perguntais se a mente pode dissociar-se delas. Que significa isto?

KRISHNAMURTI: Estais perguntando a mim ou a vós mesmo?

INTERPELANTE: Pergunto-o a mim mesmo e a vós também.

KRISHNAMURTI: Antes assim. Estais perguntando a vós mesmo e não a mim. A mente é resultado do tempo, e pode essa mente, em algum tempo, descobrir qualquer coisa nova, que deve ser necessariamente atemporal? Compreendeis minha pergunta, senhor? Percebo que minha mente é constituída do passado; entretanto, ela é o único instrumento capaz de observar e descobrir. Que deve ela então fazer? Não há nenhum outro instrumento de descobrimento; mas o instrumento que temos — a mente — é resultado do passado; isto é um fato e não há negação nem discussão que possa influir nesse fato. E pode essa mente, em algum tempo, descobrir qualquer coisa nova? Ou o conhecido, que é o passado — embora eu possa estar inconsciente dele — continuará sempre, de modo que só pode haver uma continuidade do conhecido, sob formas diferentes? Se a mente em tempo algum pode experimentar o desconhecido, — o que quer que ele seja — tratemos então de modificar o conhecido, embelezá-lo, poli-lo, acumular mais conhecimentos, porém mantendo-nos sempre dentro do território da mente, do conhecido. Estais seguindo, senhor? Esta suposição de que a mente se acha numa situação irremediável, de que nunca pode sair de seu próprio território, porque ela é resultado do conhecido, essa suposição bem pode ser o verdadeiro fator de deterioração. Entendeis o que quero dizer? Se admitis isso, então é óbvio que precisais estar sempre polindo a mente, arrumando-a, disciplinando-a, enchendo-a de conhecimentos, etc. Não tendes então problema algum, porque estais vivendo na esfera do conhecido. Mas, no instante em que começais a investigar o desconhecido, surge-vos o problema, não é verdade, senhor?

INTERPELANTE: Começastes perguntando o que é pensar. A mim me parece que o pensar está sempre em relação com alguma coisa, não havendo "pensar puro".

KRISHNAMURTI: Pensar é reação a desafio, não é? Não há pensar isolado. É só quando há um desafio, é que reagis. Mesmo se estais a pensar, recolhido em vosso quarto de dormir, aonde não vos vem nenhum desafio do exterior, o pensar é ainda reação a um desafio procedente de dentro de vós mesmo. Existe esta constante relação de desafio e reação, e visto que reagis de acordo com vossas crenças, vossa educação ou criação, etc., vossa resposta ou reação é sempre limitada, pouco significativa. Estamos agora investigando onde é que o pensamento cessa e surge uma coisa nova, que não é pensar.

INTERPELANTE: Estais perguntando onde o pensamento acaba e a meditação começa.

KRISHNAMURTI: Exatamente, senhor. Onde acaba o pensamento? Um momento. Eu estou indagando o que é pensar, e digo que essa própria indagação é meditação. Isto não quer dizer que primeiro o pensar se acaba e depois começa a meditação. Acompanhai-me, senhoras e senhores, passo a passo. Se eu puder descobrir o que é pensar, nesse caso nunca terei de perguntar como se medita, porque no próprio processo de indagar, investigar o que é pensar, está a meditação. Mas isto significa que tenho de dispensar toda a atenção ao problema, e não meramente concentrar-me nele, o que é uma forma de distração. Não sei se me estou explicando bem.

Quando procuro descobrir o que é pensar, tenho de prestar toda a atenção, atenção em que não pode haver esforço nem atrito, porque no esforço, no atrito, há distração. Se estou realmente interessado em descobrir o que é pensar, este próprio investigar produz uma atenção, sem desvio, sem conflito, sem o sentimento de que devo prestar atenção.

Que é, pois, pensar? Pensar é — vejo-o — reação da memória, não importa em que nível — consciente ou inconsciente; ele é sempre reação procedente daquela esfera da mente constituída pelo conhecido; passado. A mente percebe isso como um fato. Depois, pergunta a si mesma se todo pensar é meramente verbal, simbólico, reação do passado; ou existe pensamento sem palavras, sem o passado?

Ora, é possível averiguar se há alguma atividade da mente, não contaminada pelo passado? Estais compreendendo, senhores? Estou investigando, não estou supondo nada. A mente percebe que ela própria é resultado do passado e pergunta a si mesma se lhe é possível libertar-se do passado. Se a mente responde desta ou daquela maneira, se diz que é possível ou que não é possível, tal suposição, nesse caso, é resultado do passado, não é? Por favor, acompanhai-me, passo a passo, e vereis. A mente está apercebida de ser resultado do passado; está perguntando se pode libertar-se do passado; e percebe que qualquer suposição de que pode ou de que não pode libertar-se, é produto do passado. Qual é pois o estado da mente dissociada do passado, da mente que nada supõe?

INTERPELANTE: Já não é a mente — a mente limitada que conhecemos.

KRISHNAMURTI: Não chegamos ainda aí. Precisamos ir de vagar.

INTERPELANTE: A questão é: Quem é que pensa?

KRISHNAMURTI: Nós sabemos quem pensa, senhor. A mente se dividiu em pensador e pensamento — mas continua a ser "a mente", é claro. Todo esse processo de separação de pensador e pensamento continua no território da mente que é resultado do tempo, do passado. E a mente pergunta agora a si mesma se se pode libertar do passado.

INTERPELANTE: Se nós, que vos escutamos, duvidamos da verdade do que estais dizendo, nosso antigo condicionamento continuará a existir. Se, por outro lado, temos fé no que estais dizendo, nossa mente estará de novo condicionada por isso, pelo que dizeis.

KRISHNAMURTI: Não vos estou pedindo que tenhais fé. Estou apenas observando o funcionamento de minha mente e espero estejais fazendo a mesma coisa. Estamos a observar o funcionamento da mente e a descobrir os seus mecanismos. É isso o que todos estamos fazendo, — o que não significa que devemos ou não devemos ter fé. Estamos procurando descobrir como nossa mente opera — e isto é meditação.

INTERPELANTE: Como é que o cientista descobre algo novo?

KRISHNAMURTI: Se vós e eu fôssemos cientistas, poderíamos conversar a este respeito; mas não somos cientistas, somos indivíduos comuns e estamos tentando investigar se a mente é capaz de descobrir alguma coisa nova. Qual o processo respectivo?

São horas de pararmos. Posso investigar a questão mais um bocadinho?

Estou observando o funcionamento da minha mente. Só isso. Há desafio e reação. A reação é invariavelmente de acordo com o meio cultural, os valores, a tradição em que a mente foi criada e que, por ora, chamaremos condicionamento. A mente, percebendo isso, pergunta a si mesma: "Toda reação é produto desse condicionamento, ou é possível reação fora dele? Eu não digo que é nem que não é possível. A mente só está perguntando, de si para si. Qualquer suposição, de sua parte, de que isso é possível ou impossível, é ainda reação do "fundo". Isto está claro, não? Portanto, a mente só pode dizer "Não sei". Esta é a única resposta adequada à pergunta sobre se a mente pode libertar-se do passado.

Agora, quando dizeis "não sei", em que nível, em que profundidade o dizeis? Trata-se, apenas, de uma declaração verbal ou é a totalidade do vosso ser que está dizendo "Não sei"? Se todo o vosso ser diz, genuinamente: "Não sei" — isso significa que já não estais recorrendo à memória para encontrar a resposta. Não está então a mente livre do passado? E tal processo de investigação não é meditação? A meditação não é um processo de aprender a meditar; ela é a própria investigação sobre "o que é meditação". Para investigar o que é meditação, a mente tem de libertar-se de tudo o que aprendeu sobre a meditação; e a libertação da mente, das coisas que aprendeu, é o começo da meditação.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Benares, 25 de dezembro de 1955
Da Solidão à Plenitude Humana



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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill