REVELANDO A FONTE
Jiddu Krishnamurti (K): Podemos manter um diálogo acerca de algo que não só
interessa à mente Ocidental, senão também à mente indiana que, quem sabe, tenha
refletido sobre estas coisas durante muito mais tempo que o mundo ocidental?
Tomando ambos em consideração, Oriente e Ocidente, o que você pensa que poderia
ser de maior significação? O que seria, segundo você, o perdurável, o valioso?
Pupul Jayakar (PJ): Senhor, nossas vidas são, em sua maior parte,
sumamente inúteis.
K: Sim.
PJ: E, a menos que se descubra dentro
de si mesmo, que se é capaz de sair da inutilidade, jamais poderá dar-se um
salto criativo. Senhor, quando a mente dá um salto criativo, qualquer que sejam
as circunstâncias, parece que são transcendidas. E isso ocorre quando a mente
não depende de nada e tem certo espaço, certa percepção.
Durante
os últimos meses tenho me perguntado qual é a base do criativo.
K: Não sei o que você entende por “criativo”. Um artista diz que é
criativo. Mas, você chamaria criativa a atividade de um poeta, de um pensado,
ou inclusive a de um cientista que faz uma nova descoberta?
PJ: Talvez.
K: Mas é uma criatividade limitada.
PJ: Senhor, por que você introduz a palavra “limitada”?
K: Muito bem, não usemos a palavra “limitada”. Usemos, em vez disso, a
palavra “parcial”.
PJ: Mas, senhor, não posso introduzir a palavra “parcial”, já que não
conheço o outro.
K: É parcial porque não se relaciona com a vida diária. Um cientista pode
descobrir coisas extraordinárias e, assim, chamar “criativa” a sua vida. Mas o
maior dos cientistas pode levar uma vida muito medíocre.
PJ: Por isso não chamei de uma ação criativa, senão...
K: Senão de uma mente criativa?
PJ: ... senão de um campo, uma mente, uma percepção que descansa no
criativo.
K: Penso que você deveria aclarar um pouco a questão.
PJ: Você jamais contestou nenhuma das perguntas acerca da base da manifestação. A tomemos em seu
nível mais simples: este “chegar a existir” de todas as coisas.
K: De nascimento, seja de um bebê, de uma árvore ou de um pássaro? Você
pergunta qual é a origem de toda a vida, tanto da manifesta como da não
manifesta?
PJ: Sim. Quisera, se possível, investigar o que você acaba de dizer: o manifesto,
o não manifesto e o premanifesto... Eu nem sequer usaria a expressão “não
manifesto”.
K: Estamos discutindo este tema num sentido tecnológico, científico, ou
estamos explorando algo que nem você nem eu conhecemos? Um momento, quero que
fique claro. Porque, ao fim e ao cabo, conhecemos acerca do nascimento de um
bebê. Sabemos como nasce.
PJ: Podemos saber como nasce, mas seguimos sem saber...
K: O que?
PJ: A qualidade da vida que o impregna. Senhor, a realidade do nascimento
é muito diferente da descrição do nascimento.
K: Sim.
PJ: E o mesmo é com tudo.
K: A descrição não é a coisa. A explicação não é o real.
PJ: Mas não se pode viver durante toda a vida sem investigar este “chegar
a existir”.
K: Não entendo muito bem o que você está querendo comunicar. Não estou
meramente colocando obstáculos; de verdade, não consigo entendê-la. Podemos
falar acerca de qual é a origem, o começo de toda vida, de toda existência, sem
ter que retroceder infinitamente mais e mais, senão tratando de descobrir ou de
dar com algo que é o princípio de todas as coisas? Entende o que quero dizer?
Veja, muitas pessoas religiosas dizem: “Deus é a origem de tudo”. Mas “Deus” é
tão só uma palavra e uma palavra não comunica... Segue o que estou dizendo?
PJ: Sim.
K: Neste momento, estamos interessados na origem de toda a vida. O que
faremos é explorar realmente em profundidade — sem crença alguma, sem nenhum
dogma, etc. — ou só estamos mantendo um diálogo teórico no qual nos movemos
entre o real e o não real, e tratamos de investigar algo com o pensamento? Não
sei se compreende o que digo.
PJ: Compreendo o que disse. Senhor, nós temos reduzido a palavra “criativo”
para indicar, como você disse, o ato de pintar, ou de escrever um livro ou de
descobrir algo na ciência.
K: Correto.
PJ: Mas, basicamente, todo o significado de uma árvore, de um ser humano,
da terra, do céu...
K: O homem tem se formulado esta pergunta...
PJ: É claro, se tem formulado.
K: Tem se perguntado qual é o sentido e origem de tudo isto.
PJ: Sim. De onde surge?
K: Disso se trata. É o que você pergunta, não é verdade? Qual é a base a qual surge tudo isto?
PJ: Sim.
K: Qual é a origem de toda a existência, de toda a vida, de toda a ação?
Como se investiga isso? De que modo você o aborda? Como chegamos a investigar
algo que requer uma liberdade extraordinária (e a mesma palavra “liberdade”
implica amor) e uma mente por completo e de maneira absoluta livre de todo
condicionamento? Isso requer essa característica mental que é tanto prática
como sensível e que contém em si a qualidade de uma grande compaixão.
PJ: Eu não posso começar com isso.
K: Não. Como chegamos, pois, a esse ponto e nos movemos a partir daí?
PJ: Senhor, se o levanta desse modo, estou lascada; não posso mover-me.
K: Não, eu só pergunto; não digo que deva ser assim. Não é esse o
processo de investigação?
PJ: Eu digo que esta pergunta aparece em minha mente e eu gostaria de
mover-me com ela.
K: Correto.
PJ: Se digo que a mente pode inquirir só quando é livre e, portanto, ama, que
posso fazer?
K: Não pode fazer nada. Mas,
como investiga uma pergunta que o homem tem se feito durante milhões de anos?
Como investiga algo ao que ele tem dado um nome e depois se satisfaz com isso?
Não é o que nós estamos fazendo. Nos perguntamos como pode uma mente investigar
algo que deve ser extraordinário, que deve ter uma qualidade não só do
universal, do cósmico — se é que se pode usar essa palavra —, senão que
pertence a uma ordem suprema. Como começamos nossa investigação? Por onde esta
começa? Se se investiga com o pensamento, isso não nos conduzirá muito longe.
PJ: Não. Você perguntou: Como começa a investigação?
K: Sim, qual é a maneira, qual é o enfoque de uma mente que deseja
investigar algo que não conhece e que lhe exige uma grande e extraordinária
sutileza, de ordem, etc.? Por onde começo?
PJ: Obviamente, dando-me conta da desordem que há dentro de mim.
K: Veja, Pupul, eu sou, no fim das contas, o manifesto. Eu nasci. Sou um
ser humano.
PJ: Sim, mas senhor, é óbvio que não pode haver outro ponto de partida.
K: O mundo externo, o mundo interno. Qual é o critério que mede o externo
e o interno? O que é a meditação? Deliberadamente, não uso a palavra “juízo”,
senão a palavra “meditação”.
PJ: Mas, é necessário medir?
K: Se investigo dentro de mim mesmo em um monastério, posso enganar-me
erroneamente. Mas se tenho uma medida — só deixe-me usar esta palavra por
momento — do que realmente ocorre no mundo exterior a mim, se posso observar
tudo isso sem nenhuma distorção, e se posso ver e relacionar o que ocorre fora,
com o que ocorre dentro, então verei que é um só movimento, que não são dois
movimentos separados.
PJ: Senhor, eu não estou num monastério. Encontro-me em meio da vida.
K: Correto.
PJ: E encontrando-me em meio da vida, vejo a ação em diversos níveis, uma
ação que está tanto conectada comigo como desconectada de mim. E também vejo
minhas respostas internas e as ações. Vejo a capacidade que posso haver
adquirido através dos anos. Inclusive se tenho sido capaz de permanecer sem
reagir a isso. Vejo tudo isso. E me movo dentro disso e com isso.
K: Você é isso. Não diga
“movo-me com isso”.
PJ: Sim, sou isso.
K: Você é isso.
PJ: Mas veja, é mais fácil dizer: “Sou isso”, relacionando-o com o
movimento interior. Vê-lo em relação com um movimento exterior é muito mais
difícil. Se você me diz que sou todas as guerras que tem lugar no mundo, isso é
para mim muito difícil de ver.
K: Não, Pupul, somos responsáveis — no mais profundo sentido da palavra —
por todas as guerras que ocorrem.
PJ: Sim, ma essa é para mim uma coisa distante. Você tem que entender que
essa responsabilidade é uma responsabilidade distante. Talvez eu possa dizer:
“Sim, sou responsável”, se levo a “responsabilidade” até seu final mesmo, até o
significado último de tudo isso; mas não posso vinculá-lo de igual modo com o
que está dentro de mim.
K: Concordo.
PJ: Naturalmente, uma resposta interna é uma resposta viva.
K: Espero que minha pergunta seguinte não se desvie do que estamos
discutindo. Quero saber por que não você não sente a responsabilidade total
pelas guerras, a brutalidade, as coisas terríveis que estão ocorrendo no mundo.
Por que não se sente totalmente responsável?
PJ: De que modo se é responsável? Por haver nascido?
K: Não; mas toda minha forma de viver, de pensar e atuar — como
nacionalista, isto ou aquilo — tem contribuído ao presente estado do mundo.
PJ: Você o está tornando muito difícil. Um homem comete um crime sádico.
Eu não posso dizer que sou responsável por esse crime sádico.
K: Claro que não.
PJ: Senhor, quando você o leva até esse ponto, é impossível para mim
sentir a realidade disso.
K: Deixemos isso por um momento. Tenho formulado a pergunta. Deixe-a
estar.
PJ: Sim, penso que é melhor deixar isso. Mas investiguemos a base da
existência que é o “ser” da vida.
K: Sim, o “ser”.
PJ: A única maneira de investigar é penetrar dentro de si mesmo, qualquer
coisa que isso signifique.
K: Muito bem. Tomemos por momento essas palavras: penetrar em toda a
complexidade de si mesmo. Bem, agora, não posso penetrar nela como um
observador externo, porque sou tudo
isso.
PJ: Sim, isso nem sequer é o que eu afirmo que sou.
K:
Sim.
PJ: De modo que não afirmo; descubro, revelo.
K: Revelar, sim. “Revelar”, melhor que “descobrir”.
PJ: Revelo o que sou. E, ao revelar o que sou, compreendo que se está
revelando toda a existência do homem.
K: Sim.
PJ: Isso é possível ver.
K: Sim, é muito simples.
PJ: Portanto, nesta viagem de revelação, as coisas superficiais são limpas
por completo.
K: Isso é bastante simples.
PJ: Mas, uma vez que se terminou com o superficial, tem que limpar-se a
habitação.
K: Não é importante também? Quem limpa a habitação? O que isso significa:
haver limpado a habitação? Entendo o que pergunto? O limpado, ou a revelação,
implicam um afastar-se por completo das reações superficiais, dos
condicionamentos superficiais, e uma intenção de penetrar na natureza do
movimento que condiciona a mente?
PJ: É óbvio, senhor, não se pode dizer que tenha limpado a habitação e com
isso se terminou...
K: Sim.
PJ: O pó se junta novamente.
K: Correto.
PJ: O limpar é um movimento que forma parte do viver. Os elementos mais
grosseiros podem, sem dúvida, ser eliminados. É possível suprimir as coisas que
são evidentes, mas as mais sutis sobrevivem em rincões aos quais jamais temos
conseguido chegar.
K: Sim, isso é certo. Mas examinemos um pouco mais as coisas evidentes...
PJ: Você sabe, Krishnaji, por exemplo, a ambição...
K: Sim.
PJ: ...Ou a inveja...
K: Sim, e o ódio. Mas, pode-se estar realmente livre do ódio? Pode-se
eliminá-lo realmente? Investiguemos isto um pouco mais. Estar livre de ódio
deve significar algo extraordinário. Pode-se estar livre de todo sentido de
agressão, de todo sentido de inimizade? Não há inimigo. Se é o inimigo.
PJ: Mas o ódio é uma coisa
diferente.
K: Por isso quero discuti-lo.
PJ: É diferente da qualidade de agressão. Examinemo-lo um pouco, senhor.
K: A agressão se relaciona com o ódio, porque forma parte do mesmo
movimento. Uma nação agressiva ou uma pessoa agressiva, causam dano
inevitavelmente a outra, e esse dano engendra ódio.
PJ: Sim, por isso digo que estão as coisas mais grosseiras e estão as
coisas mais sutis. O ódio... Qualquer que um que tenha conhecido o ódio sabe
que o ódio é algo muito poderoso e muito destrutivo. Mas a agressão pode forma
parte, até certo ponto, de nossa natureza.
K: Sim, desde já, forma parte...
PJ: Talvez faça parte de nossa composição como seres humanos.
K: Sim, para sobreviver e demais.
PJ: Pode-se ser mais dogmático que outro; isso é agressão. Ser dogmático
não é ódio. Por isso estabeleço a distinção entre as coisas grosseiras que
podem ser limpadas por completo e as...
K: Mas, como se sabe o que é o grosseiro e o que é o sutil? O que é a
mente que diz que isto é...? Vamos, Pupul, mova-se. Movamo-nos.
PJ: Por isso penso que o único modo de mover-se dentro disto é ver que
nada é trivial.
K: Que nenhuma reação...
PJ: ... é trivial.
K: Sim, que nada é trivial e que todas as coisas, todas as reações, tem sua origem em nosso condicionamento.
PJ: Senhor, recentemente vi a fundição de uma grande caldeira de metal,
uma caldeira de uns sete pés de diâmetro. A mais leve rachadura — não importa
qual leve pudesse ser — haveria quebrado a caldeira. E isso é exatamente assim.
Não importa quão leve, quão sutil seja o que obstrui a investigação, esta se
quebra.
K: Entendo isso. Você não está me dizendo que isso requer grande
adestramento, grade disciplina, grande atenção, um sentido extraordinário de
controle, energia e mãos muito, muito sutis, como as do oleiro que modela
alguma peça maravilhosa?
PJ: Não é assim, por acaso?
K: Oh, sim, o requer.
PJ: E aqui é onde creio que se toma a palavra que você usa, a palavra
“livre”, e a interpreta no sentido de certa fraqueza de espírito.
K: Não, não, não, não!
PJ: Por favor, prossigamos com isto...
K: Sim.
PJ: ... já que é muito importante.
K: Isso não é fraqueza de espírito. Deus meu!
PJ: Não, mas senhor, isso pode significar para mim a não aceitação de
nenhuma autoridade, não só a autoridade no reino da psique, no reino do
espírito. Posso entendê-lo como consciência e, portanto, pensar que é
desnecessário fazer certas coisas.
K: No, não, não.
PJ: Talvez pense que posso viver uma vida inútil, uma vida trivial. Posso
pensar que isso simplesmente não importa; posso pensar que nada importa.
K: Não, Pupul, não. Veja a palavra mesma “liberdade”, até onde a entendo,
significa afeto, amor...
PJ: E uma disciplina tremenda. Poderíamos usar a palavra “disciplina”?
K: Sei que você usa a palavra “disciplina”, mas não estou seguro...
PJ: Falo de “disciplina” como uma exigência desse estado de alerta que o
trivial em nenhum momento afeta.
K: Não, veja, o ponto é este: O estado de alerta, que é percepção, necessita de adestramento?
Necessita de disciplina? Temos de compreender o significado dessa palavra
“disciplina”.
PJ: Senhor, comumente entendemos por disciplina algum tipo de regimentação.
Por exemplo, se eu me sentava cada manhã com as pernas cruzadas olhando sem
apalpar a parede, forçando-me ao mesmo tempo a não ter nem um só pensamento,
isso seria considerado disciplina. Mas eu entendo por “disciplina” o despertar
da mente para o fato de que deve estar atenta a cada movimento que se gera
dentro dela mesma. Senhor, isso também é uma disciplina.
K: Não, Pupul, “disciplina”, no sentido geral, se vincula com
adestramento, amoldamento, imitação, coerção.
PJ: Não, mas se há diligência... Senhor, sem diligência nada é possível.
Podemos, pois, descartar a palavra “disciplina” e introduzir a palavra
“diligência”?
K: Espere, espere; vá devagar. “Ser diligente” implica estar alerta ao
que está se fazendo, ao que está se pensando,
alerta às próprias reações.
PJ: Sim.
K: E observar os atos que tem lugar a partir dessas reações. Então, a pergunta é: Nessa observação, nesse estado de
alerta, a ação é controlada, é posta numa armação?
PJ: Não, obviamente não.
K: O que estou recusando por completo — e desde logo, isto se acha
sujeito a discussão — é a palavra “disciplina”.
PJ: Mas, senhor, se me permite dizê-lo, você se tornou alérgico a essa
palavra.
K: Não, não sou alérgico; tenho uma alergia, sim, porém não sou alérgico
a essa palavra. (Risos).
PJ: Não, senhor, você restringe o uso dessa palavra ao mero significado de
que algo está posto num quadro.
K: Sim, mas também sustento que o ato mesmo de aprender tem sua própria
disciplina.
PJ: Sim. Mas, como chega a existir o ato de aprender? Podemos, senhor,
voltar um passo atrás? A partir de onde surge a necessidade de observação? Por
que eu deveria observar?
K: Por uma razão muito simples, ou seja, para ver se é possível, para uma
mente humana, transformar algo, transformar a si mesma, transformar o mundo que
está entrando numa área tão catastrófica.
PJ: Sim, mas senhor, se começo com a premissa...
K: Não, não, não é uma premissa; é
assim.
PJ: Muito bem. Se começo ali, ou se começo com a dor, que é talvez a
verdadeira base a partir da qual você começa...
K: Sim.
PJ: A base é realmente a dor. Mas creio que temos nos afastado.
K: Sim, estava chegando a isso mesmo.
PJ: Voltemos, pois, à pergunta.
K: Bem, começamos inquirindo sobre a origem, a base de toda a vida.
PJ: Sim.
K: Para investigar isso, deve-se investigar dentro de si mesmo, porque se
é a expressão disso.
PJ: Sim.
K: Se é a vida.
PJ: Concordo.
K: Agora estamos tratando de discutir a origem disso, e só posso fazê-lo
compreendendo-me a mim mesmo.
PJ: Sim.
K: Bem, agora, o “mim mesmo” é terrivelmente complexo. O “eu” é um
complexo vivente; é uma entidade confusa, desordenada. Como abordamos um
problema que é complexo, um problema que não é facilmente diagnosticável?
Dizemos: “Isto é bom”, “Isto é ruim”, “Isto deveria ser”, “Isto não deveria
ser”?
PJ: Mas, não é, por acaso, que encontramos a desordem porque começamos com
uma atenção que busca achar uma entidade ordenada?
K: Eu não estou buscando desordem na ordem. Estamos passando alto por
algo. Disse que o mundo está em desordem. O observo; vejo que é assim. Comece
com isso.
PJ: Sim.
K: Há desordem fora e há desordem dentro. Estou em desordem. Por momento,
deixemos assim. Bem, agora, como compreendo ou chego a perceber a origem da
desordem? Se começo a compreender a origem da desordem, posso mover-me cada vez
com mais profundidade em algo que possa ser um caos total, mas que é ordem
total. Entende o que quero dizer?
PJ: Não se chega a isso se sendo o mais sensível possível?
K: Sim, é o que estou tratando de dizer.
PJ: E eu possuo certos instrumentos de investigação: ouvidos, olhos, os
demais sentidos...
K: Sim, mas não se investiga com seus ouvidos e com seus olhos.
PJ: Você não o faz?
K: Sim, um pouquinho. Investigo quando olho o mundo exterior que me
rodeia, ou quando leio algo. A pergunta é: Olho dentro de mim mesmo com meus
olhos? Com meus olhos óticos posso ver-me em um espelho. Mas não posso ver com
esses olhos minha própria complexidade. Devo dar-me conta sensivelmente, sem
opção alguma, desta condição.
PJ: Por que você diz, senhor, que não pode dar-se conta com seus olhos?
K: O que você entende por “com seus olhos”? Quer dizer o olho interno?
PJ: Não. Há uma maneira de observar fora e há uma maneira de observar
dentro, uma maneira de escutar dentro.
K: Você tem que ser muito cuidadosa aqui, porque isto é enganoso.
PJ: Examinemos. Há algum outro modo?
K: Sim, penso que há.
PJ: Investiguemos o outro modo, senhor. O olho, o ouvido, não formam parte
do outro modo?
K: Respirar? Ouvir? Ver? Sentir? Essas são, de fato, respostas
sensoriais, não é assim? Eu vejo essa cor, ouço esse ruído, gosto de algo, etc.
Todas essas são respostas sensoriais.
PJ: Sim. Mas, não há um ver a ira — uma
reação de ira —, um escutar uma reação
de ira?
K: Você escuta a ira com seus ouvidos, ou a observa?
PJ: Como se observa a ira?
K: Quando está irado, observe a causa e o efeito da ira.
PJ: Quando se está irado, não pode...
K: Sim, não se pode nesse instante. Portanto, mais tarde...
PJ: ... vê-se a natureza da mente que esteve em uma situação de ira. Mas,
senhor, a palavra que você usa é “ver”. Disse que “vê” a natureza da mente...
K: Entendo o que está perguntando. Pergunta: O ato mesmo de escutar, o
ato mesmo de perceber internamente, são realizados com os olhos? Ou seja,
vemos, ouvimos — internamente — com nossos olhos e com nossos ouvidos
sensoriais?
PJ: Veja, senhor, se se o levanta desse modo, jamais chegará ao ponto,
porque o ouvido sensorial está tão usado para escutar o externo, que jamais
compreenderá o que é escutar o interno.
K: Mas ajudaria se falássemos acerca da percepção?
PJ: Não, senhor; eu digo que ajudaria se você falasse acerca do ver,
acerca do escutar, com o olho e com o ouvido, porque há um ver e escutar com o
olho e o ouvido.
K: Espere um momento. Eu escuto que você faz essa afirmação. Compreendi
as palavras e vejo o significado do que você está dizendo. Correto?
PJ: Sim.
K: Mas o profundo significado...
PJ: Isso também tem ocorrido, senhor. Enquanto estou lhe escutando e
vendo, também escuto e vejo minha própria mente, o campo da mente.
K: Não.
PJ: Então, o que é que ocorre?
K: Quem escuta?
PJ: Há um escutar. Não digo quem
escuta.
K: Mas um momento, Pupul, neste ponto temos que ser claros. Investiguemos
um pouco mais cuidadosamente.
PJ: Tomemos o ato em que se está totalmente atento. Qual é o estado da
mente nesse ato de estar totalmente atento?
K: Qual a natureza da ação que nasce de uma atenção completa? A atenção não é concentração. Creio que isso está
claro.
PJ: Não, senhor, não o está.
K: Veja, Pupul, este não é um caso de mero acordo ou desacordo. Quero ser
claro sobre esse ponto.
PJ: Desde já, senhor, a atenção não é concentração.
K: A atenção implica que não há um centro do qual se esteja atendendo.
PJ: Não, é claro que não.
K: Não se limite a dizer: “É claro que não”; veja, por favor, o que isso
implica.
PJ: Senhor, gostaria de perguntar-lhe uma coisa: seguimos removendo a
poeira da periferia?
K: Não, não, eu não quero remover o pó da periferia.
PJ: Se não faz isso, então, quando formula a pergunta não posso
compreender.
K: Quero ser claro, isso é tudo.
PJ: A menos que eu compreenda que é a atenção, nem sequer posso dar o
primeiro passo.
K: Não, por isso quero que haja clareza. O que significa a atenção, ou
seja, o atender completamente?
PJ: “Atender completamente” implica que o “eu” não está aí.
K: Sim, isso é o real. Quando há atenção não há “eu”. Não é um estado de
“eu estou prestando atenção”, senão só o estado de uma mente completamente
atenta.
PJ: Com todos os sentidos...
K: Com todos os sentidos e todo o corpo.
PJ: Todo o ser está desperto, se posso expressá-lo assim.
K: Sim, pode usar essa palavra.
PJ: E se você se acha nesse estado, quando todo o ser está desperto, então
pode escutar, pode observar, pode prosseguir a partir daí.
K: Você parece sair outra vez do tema. Quero investigar em mim mesmo,
correto? Isso é o que estamos dizendo. Porque “eu mesmo” sou a vida, e se hei
de investigar o que sou, minha investigação tem que ser correta, exata, sem
distorção alguma. Só então posso dar com a
base, com o princípio de toda a vida. Só então pode ser descoberta,
revalada a origem.
PJ: Se começamos a partir daí, encontraremos que o “eu” se encontra aí no
primeiro passo.
K: Sim. O primeiro passo é ver claramente, ouvir claramente.
PJ: Mas o “eu” está aí...
K: Sim, é claro.
PJ: Está o observador...
K: ... e o observado. Agora, espere um momento, Pupul, não se afaste
disso. Sei que estão o observador e o observado. Então, investigo se é
realmente assim. Até agora o tenho dado por um fato.
PJ: Obviamente, senhor, quando começo a investigar, começo com o
observador.
K: Sim. Começo com o observador.
PJ: Agora você está introduzindo em minha mente esse pensamento, essa
dúvida, e me pergunto: “Existe o observador?”
K: Há um observador separado do observado?
PJ: Tendo essa pergunta dentro de mim, busco ao observador.
K: Sim. Quem é o observador? Examinemos isso devagar. Porque se
compreendo ao observador, então talvez o observador possa ver a falsidade da
divisão entre observador e o observado.
PJ: Quem é que o verá?
K: A questão não é quem verá, senão a percepção
do verdadeiro. O que importa é a percepção,
não quem vê.
PJ: Então, o ver a verdade acerca do observador, colocará fim no estado de
divisão.
K: Sim, isso é o que tenho dito mil vezes.
PJ: Sim, neste instante é assim.
K: Prossiga. O que está tratando de dizer?
PJ: O que digo é que a diligência ou a disciplina é necessária a fim de
que a investigação tenha vida dentro de si.
K: Isso requer adestramento.
PJ: Não falo de adestramento. Uso a palavra “disciplina” sem introduzir a
palavra “adestramento”. Digo que não posso esperar ter uma compreensão do que
você diz, a menos que a mente esteja desperta e seja diligente a respeito.
K: Prossiga.
PJ: Você não pode negar isto.
K: Não. Tem que ser diligente; tem que estar alerta; tem que ser atenta,
sutil, vacilante em sua busca. Eu só
posso investigar dentro de mim mesmo por meio de minhas reações: minha
maneira de pensar, de atuar, o modo como respondo ao redor, como observo minha
relação com outro.
PJ: Eu encontro que quando começo a observar-me a mim mesma, as respostas
e reações são rápidas, confusas, contínuas.
K: Eu ei; são contraditórias e demais.
PJ: No observar mesmo, aparece certo espaço.
K: Sim, certo espaço, certa ordem.
PJ: Isso é só o começo, senhor.
K: Eu sei. Por que permanecer “no começo”? Pupul, gostaria de formular
umas perguntas: É necessário passar por tudo isto? É necessário que eu vigie
minhas ações, minhas reações, minhas respostas? É necessário que observe, diligentemente,
minha relação com outros? Devo passar por tudo isto?
PJ: O fato é, senhor, que se tem
que passar por tudo isto.
K: Pode que se tenha passado por tudo isto porque se tenha aceitado esse
modelo.
PJ: Não.
K: Não estou seguro. Espere... quero discutir este ponto seriamente.
PJ: Ou nos passados trinta anos você deu um salto, ou...
K: Um momento, Pupul. Consideremos isso. Temos aceitado este modelo de
exame, análise e investigação. Temos aceitado estas reações, as temos prestado
atenção. Temos vigiado o “eu”, etc. Bem, agora, nisto há algo que ressoa com
uma nota falsa, ao menos para mim.
PJ: Você quer dizer que uma pessoa presa em toda a confusão da
existência...
K: Pupul, esta pessoa nem sequer escutará tudo isto.
PJ: Tem que haver espaço para poder escutar.
K: Sim.
PJ: Como surge esse espaço?
K: Você sofre. Bem, agora, pode dizer: “Devo descobrir por que sofro”, ou
dizer meramente: “Deus existe, e isso me consola”.
PJ: Não, senhor. Você pergunta: É necessário passar por tudo isto?
K: Sim, isso é o que pergunto, porque penso que possa ser desnecessário.
PJ: Então, mostre-me como.
K: Espere, o mostrarei. Examinemos. À sua diligente vigília das reações o
chamaremos, no momento, o processo analítico de investigação. Bem, agora, este
processo analítico de investigação própria, este vigiar constante, o homem o
tem levado a cabo durante milhares de anos.
PJ: Não é assim. Ele tem feito algo completamente diferente.
K: O que tem feito de diferente?
PJ: Tem observado sua mente e tratado de reprimir...
K: Ah! Já o vê, isso forma parte do modelo. Reprimir, escapar,
substituir, transcender... tudo isso está dentro do quadro.
PJ: Isso não é o mesmo que observar sem fazer nada a respeito da
observação.
K: Não, Pupul, se posso assinalá-lo talvez esteja equivocado, você não
está contestando minha pergunta: Devo passar por tudo isto?
PJ: Veja, a palavra “devo” é uma muito...
K: De acordo, não usarei a palavra “devo”, mas a pergunta permanece. É
necessário, é imperativo, é essencial que eu passe por tudo isto?
PJ: Não, mas, você trata de dizer que, desde o interior do caos, pode
saltar a um estado de total ausência de caos?
K: Não, eu não o expressaria assim.
PJ: Então, o que é que está dizendo?
K: Não. Espere um momento. Digo, muito claramente, que a humanidade tem
passado por este processo; esse tem sido o padrão de nossa existência. Sem
dúvida, alguns tem passado pelo processo mais diligentemente, sacrificando-o
todo, inquirindo, analisando, investigando, etc. Também se faz isto, e ao final
de tudo, pode que não seja mais que uma entidade morta.
PJ: Não, pode não ser assim.
K: Pode não sê-lo. Veja, Pupul, pouquíssimos — muito, muito poucos — se
tem saído disso.
PJ: Sim, por isso digo que pode não ser assim. Mas, senhor, você disse que
todo este processo não é necessário.
K: Eu sei. Seu levantamento é, então: Se esse processo não é necessário,
mostre-me o outro.
PJ: Sim, mostre-me o outro.
K: Eu lhe mostrarei. Mas primeiro, saltemos disso.
PJ: Veja, senhor...
K: Espere, espere, espere! Eu o mostrarei.
PJ: Mas olhe o que está pedindo.
K: Eu sei.
PJ: Se salto disto, o outro já está aí.
K: É claro. Salte. É isso o que estou dizendo. Não empregue tempo para
dar passos por tudo isto.
PJ: Não, mas o que se entende por “saltemos disso”?
K: Eu direi o que entendo. Deixe-me falar um pouco. Reconheço ou percebo
— qualquer que seja a palavra que se use — que o homem tem tratado este
processo de observação introspectiva, de diligencia, etc., durante milhões de
anos; o tem feito de diferentes maneiras e, por alguma razão, ao final disso a mente não está clara. Vejo isso muito
nitidamente. Vejo que, de uma ou de outra maneira, este movimento é muito,
muito superficial. Bem, agora, você pode escutar esta declaração de que todo o
processo é superficial, e ver realmente sua verdade? Se não o faz, isso
significa que sua mente desordenada se acha agora quieta; está escutando para
descobrir. Sua mente tradicional, confusa, agora não só diz que você está
acostumada a esta diligente observação de todas as atividades, senão também que
todo o processo é realmente muito superficial. Uma vez que você vê esta
verdade, se encontra fora disso. É como desejar algo absolutamente sem sentido.
Espere;
deixe-me expor de outro modo. Minha mente é desordenada. Minha vida é
desordenada. Vem você e diz: “Seja aplicado; esteja alerta à suas ações, aos
seus pensamentos, à sua relação com tudo”. Diz: “Esteja alerta o tempo todo”. E
eu digo que isso é impossível, porque minha mente não me permitirá manter esse
estado de alerta todo o tempo. Ela não é aplicada; é negligente, e eu luto
entre um e outro.
PJ: Mas, você quer dizer, Krishnaji, que uma mente que não é capaz de
observar...?
K: Não. Digo que uma mente disposta a escutar...
PJ: Por favor, senhor, escute-me. Pensa que uma mente pode achar-se nesse
estado de escutar?
K: Isso é muito simples.
PJ: O é?
K: Sim. Eu digo: Só escute uma história que lhe estou contando. Você se
acha interessada. Sua mente está quieta; você se sente ansiosa, quer ver de que
se trata a história, etc.
PJ: O lamento, senhor. Não ocorre desse modo.
K: Não?
PJ: Não.
K: Um momento. Não diga que não. Eu lhe peço, Pupul, que escute o que
estou dizendo.
PJ: Escuto.
K: Não. Espere, espere. Escute. Vou explicar o que entendo por escutar.
PJ: Sim.
K: Por “escutar” entendo não só o escutar com o ouvido sensorial, senão o
escutar com o ouvido que não tem movimento algum. Isso é verdadeiramente escutar.
Escutar
não é traduzir o que ouvimos; escutar não é comparar; escutar não se trata de
averiguar. Escutar é algo completo. Bem, agora, quando se escuta completamente,
sem nenhum movimento, a um homem que vem e diz: “Não passe por todo este
diligente processo, porque isso é falso, porque isso é superficial”, o que
ocorre? O que ocorre se se escuta a verdade desta declaração?
O
que ocorre, de fato, quando se vê algo verdadeiro?
E
mais, este processo diligente exige muito tempo. Correto? Não disponho de
tempo. Minha vida é curta. Tenho muitíssimos problemas, e este homem agrega
outro: ser diligente. E eu digo: “Por favor, sinto-me exausto; estou cansado de
problemas, e você introduziu mais um problema”. Portanto, o homem diz: “Sei que
você tem muitos problemas que se acham relacionados entre si. Esqueça seus
problemas por um momento e me escute. Isso é tudo”.
PJ: Não, você está falando de uma mente que já é madura. Uma mente
semelhante, enquanto escuta uma declaração como esta...
K: Veja, Pupul, temos tornado tão
imaturas a nossas mentes, que somos incapazes de escutar nada.
PJ: Mas Krishnaji, você começa fazendo com que as coisas sejam
impossíveis.
K: É claro. Ver a verdade, ver que se descobriu algo impossível... Isso
tem uma tremenda...
PJ: Posso encontrar a energia necessária?
K: Sim.
PJ: Posso encontrar a energia para lidar com algo impossível?
K: Trata-se disso. Este assunto diligente tem sido possível. Eu digo que
isso é algo trivial.
PJ: Pergunto-lhe: O que a mente é capaz de lidar com uma declaração
impossível como essa? Que mente é essa?
K: É muito sensível. Aquilo que é totalmente impossível é inexistente.
Nós pensamos que tudo é possível. O estou captando...
PJ: Veja ao que está chegando, senhor. Disse que essa mente carece de
existência. Portanto, com uma mente que não existe...
K: Não, não! Observe, Pupul, um momento. Podemos ambos, você e eu,
concordar, ainda que seja de maneira transitória, em que neste processo
diligente não nos leva, na realidade, a nenhuma parte? Podemos ver que este
processo nos tem conduzido a diversas atividades —, mas que este processo, esta
indagação que diz: “Devo chegar até a origem mesmo das coisas”, não é o
caminho?
PJ: Sim, obviamente. Eu aceitaria isso.
K: É tudo. Se você aceita que não é por meio de uma percepção
diligente...
PJ: Mas, senhor, ainda para chegar a um ponto em que digo que não é
assim...
K: O que ocorreu com uma mente que disse que isto é por demais trivial,
demasiado superficial? Qual é, então, a qualidade dessa mente?
PJ: Sei o que está tratando de dizer, senhor.
K: Não, responda a minha pergunta. Qual é a qualidade de uma mente que
tem estado presa no processo de investigação diligente, quando vê que o
processo em que tem estado presa carece de valor profundo, fundamental? Este
processo diligente não nos levará a compreender ou a revelar a origem, nem nos
ajudará a dar com ele. Este processo requer um tempo excessivo. O outro pode
não requerer tempo em absoluto.
PJ: Mas considere o perigo do que está dizendo. O perigo é que não me
interessa a limpeza da habitação.
K: Não. Estou investigando dentro de mim mesmo. Essa investigação exige,
por sua própria índole, que a mente e o coração, a totalidade de minha
existência, seja ordenada.
PJ: Você começa com o impossível.
K: (Com grande energia). É
claro! Pupul, começo com o impossível, do contrário... Pupul, o que é o
possível? Você tem feito tudo o que é possível.
PJ: Não, senhor.
K: Não, não. O homem tem feito
tudo o que é possível: Tem jejuado, tem se sacrificado, tem feito de tudo para
encontrar a origem das coisas. Tem feito tudo o que tem sido possível, e isso
não o levou a nenhuma parte. Tem conduzido a obtenção de certos benefícios,
sociais e outros mais. E também tem conduzido a incontáveis desgraças para a
humanidade. Assim, pois, essa pessoa me diz que este processo diligente exige
demasiado tempo e que, portanto, fica-se
limitado ao tempo. Disse-me que, enquanto esteja fazendo isto, só estou
arranhando a superfície. A superfície pode ser a coisa mais extraordinária,
prazerosa e enobrecedora, mais é tão somente
a superfície. Se você admite... não, não se meramente o admite, senão que
de verdade vê, percebe em seu sangue, por assim dizer, que isto é falso, já se
haverá saído de algo que é comum, ordinário, e haverá penetrado em algo
extraordinário.
E
não estamos dispostos a fazer isso. Queremos passar por tudo isto. O tratamos
como se fosse o aprendizado de um idioma. No aprendizado de um idioma, a
disciplina, a atenção e demais, são coisas necessárias. E os transferimos a
mesma mentalidade ao outro. Isso é o que eu faço objeção.
PJ: Eu deixo de lado o outro.
K: Ah! Isto não é um jogo que estamos jogando.
PJ: Não, eu não estou jogando um jogo. Deixa-se de lado o outro.
K: Isso significa... tenha cuidado, Pupul...
PJ: Significa que este ver, este escutar, se acha no final, se é que
posso expressá-lo assim.
K: E o que isso significa? Que o movimento de diligência se deteve.
Correto? É claro. Se isso é falso, desapareceu. O que tem ocorrido, pois, à
mente, à mente que tem sido limitada pela investigação diligente, etc., por
tudo o que se acha preso ao tempo e tem sido visto por mim como totalmente
superficial? Qual é o estado de minha mente? Concorda? É uma mente fresca,
totalmente nova. E uma mente assim é necessária para investigar, para revelar a origem.
Se
eu falasse deste modo a um homem muito disciplinado, “religioso”, ele nem
sequer se perturbaria em escutar. Diria: “Tudo isto não tem sentido”. Mas você,
em nosso diálogo, disse: “Investiguemos” e, assim, se coloca em situação de
escutar. Descobre.
Você
poderia, gostaria de chegar tão longe com isso?
PJ: Veja, tão pronto o movimento termina...
K: Não, pergunto-lhe: “Você gostaria de chegar tão longe como para ver o
fato de que uma mete semelhante não pode ter nenhum tipo de dependência, nenhum
tipo de apego?
PJ: Sim, vejo isso. Senhor, tudo aquilo de que você tem falado é movimento
do vir a ser.
K: Correto, é assim. Tudo isso é a perpetuação do “eu” em uma forma
diferente, uma diferente malha de palavras. Veja, se você me diz isto, eu quero
encontrar a fonte. E, quando começo a descobrir a fonte — o qual é, para mim,
uma paixão — quero descobrir, quero revelar a origem de toda a vida. Quando
existe essa revelação das origens, então minha vida, minhas ações, tudo é
diferente.
Por
isso vejo que a compreensão do processo diligente é um fato que exige
muitíssimo tempo e que, por onde, é destrutivo. Pode ser necessário para
aprender uma técnica, mas isto não é uma técnica que devamos aprender. (Larga pausa).
PJ: Senhor, você tem uma mente antiga, uma mente de uma grande
antiguidade.
K: Quê?
PJ: Você tem uma mente antiga, “antiga” no sentido de que contém a
totalidade do humano...
K: Veja, Pupul, por isso é importante compreender que se é o mundo.
PJ: Ninguém mais que você faria esse tipo de declaração.
K: E deve-se fazê-la. Do contrário, quando você vê toda a destruição, a
brutalidade, as matanças, as guerras... todas as formas de violência que jamais
têm tido fim, onde se encontra? Um homem que amasse não seria “inglês” ou
“israelita” ou “árabe”, etc. Um homem que amasse não poderia matar a outro. Eu
vejo que este processo tem prosseguido durante milhares e milhares de anos...
todo o mundo tratando de vir a ser
isto ou aquilo. E todos os diligentes trabalhadores religiosos estão ajudando ao
homem neste sentido: para que alcance o esclarecimento. Isso é tão absurdo!
PJ: Com você, senhor, todo o movimento do que estava latente, chegou a seu
fim.
K: Isso implica (riso) que a “diligência”
chegou a seu fim. Pupul, não convertamos isto em algum tipo de compreensão elitista.
Qualquer pessoa que preste atenção, que queira ouvir, que seja apaixonada, que não
se limite a considerar isto de maneira casual e que diga, seriamente, de verdade:
“Devo descobrir a fonte da vida”, escutará. Não escutará “a mim”; simplesmente,
escutará. Isso está no ar.
Brockwood Park
21 de junho de 1982
Fogo na Mente
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