Dissemos que existe a beleza, um sentimento do belo inacessível aos sentidos, sentimento não provocado pelas coisas feitas pelo homem ou pela natureza. A beleza transcende tudo isso; e para efetuarmos a investigação da beleza — que não é meramente subjetiva ou objetiva — temos de alcançar o percebimento intenso de beleza que se alcança por meio da meditação. Considero a meditação, a mente meditativa, um requisito essencial. Já examinamos esta matéria com bastante profundeza e vimos que a mente meditativa é aquela que investiga, que percorre todo o processo do pensamento e é capaz de ultrapassar-lhe as limitações.
Talvez, para alguns dentre nós seja dificílimo meditar; e é mesmo provável que não tenhamos sequer pensado nesta questão. Mas quem examina atentamente esta questão da meditação — a qual não é auto-hipnotismo, nem imaginação, nem evocações de visões, e outras infantilidades que tais — alcança, invariavelmente, penso eu, aquele mesmo sentimento, aquela mesma intensidade própria da mente que percebe o belo sem "provocação". E a mente que está em silêncio, tranquila, naquele estado de intensidade, descobre um estado não limitado pelo tempo e pelo espaço.
Desejo agora falar sobre o significado da mente religiosa. (...) Parece-me que neste nosso mundo atual, onde vemos tanta confusão, aflição e agitação, são necessárias a mente científica e a mente religiosa. Estes dois, sem dúvida, são os únicos estados mentais reais; pois não é real o estado da mente que crê, da mente condicionada, quer pelo dogma do cristianismo, do hinduísmo, quer por qualquer outra crença ou religião. Afinal, temos problemas imensos e a vida se tornou muito mais complexa. Exteriormente, talvez haja um maior sentimento de segurança, o sentimento de que talvez não tenhamos guerras atômicas no futuro, dado o terror que inspiram. Sente-se que, conquanto possa haver guerra em data remota, não será na Europa; e, assim, podemos sentir-nos mais seguros, física e emocionalmente. Mas, parece-me, a mente que busca segurança se torna embotada, medíocre, e, em tais condições, ela é incapaz de resolver seus próprios problemas.
Assim, para vivermos neste mundo — com suas rotinas, seu tédio, a existência superficial da classe média, da classe superior ou da inferior — e resolvermos os nossos problemas, ultrapassá-los, penetrar profundamente em nós mesmos, só há dois caminhos:, dar-lhe o cientifico ou o religioso. O "caminho" religioso inclui o cientifico, mas o cientifico não contém o religioso. Mas necessitamos do espírito cientifico, uma vez que este é capaz de examinar rigorosamente todas as causas da miséria humana; o espírito cientifico poderá promover a paz mundial, objetivamente — alimentar a humanidade, dar-lhe casas para morar, roupas, etc. — não apenas aos ingleses ou aos americanos, mas a todo o mundo. Não se pode viver na prosperidade numa extremidade da terra, enquanto na outra extremidade existe degradação, doença, fome e esqualidez. Talvez a maioria de vós ignoreis isso, mas o deveis saber. Para se resolverem todos esses imensos problemas, perceber toda a estupidez do nacionalismo, dos conchavos políticos, das ambições, da avidez de poder, necessita-se do espírito cientifico. Mas, infelizmente, como se vê, o espírito cientifico está agora interessado em viagens à Lua ou mais além, em aumentar nossos confortos com geladeiras melhores, carros melhores, etc. Isto está certo, de modo geral, mas afigura-se-me um ponto de vista muito limitado.
Sabemos o que é "espírito cientifico": espírito de investigação, nunca satisfeito com seus achados, sempre variável, nunca estático. Foi o espírito cientifico que criou o mundo industrial; mas esse mundo industrial, sem revolução interior, produz uma medíocre maneira de viver. Sem essa revolução interior, todas as glórias e belezas da chamada vida intelectual só podem tornar a mente mais embotada, mais contentada, satisfeita, segura. O progresso em certos sentidos é essencial, mas também destrói a liberdade. Não sei se já notastes que, quanto mais coisas tendes, tanto menos sois livres. E, por isso, os homens religiosos do Oriente têm dito: "renunciemos às coisas materiais, pois não importam. Busquemos a outra coisa; mas eles não acharam também essa "outra coisa". Sabemos, pois, mais ou menos, o que é espírito científico — o espírito que existe no laboratório. Não me refiro ao cientista como indivíduo; este é provavelmente igual a vós e a mim, entediado da existência de cada dia, avarento, ávido de poder, posição, prestígio.
Agora, muito mais difícil é averiguar o que é espírito religioso. Como proceder, quando se deseja descobrir algo verdadeiro? Queremos saber o que é espírito religioso — não esse estranho espírito que prevalece nas religiões organizadas, porém o genuíno espírito religioso. Como proceder?
Só se começa a descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso por meio do pensar negativo, porquanto, para mim, o pensar negativo é o pensamento em sua forma mais elevada. Entendo por pensamento negativo aquele que despreza, que rompe e destroça as coisas falsas construídas pelo homem para sua própria segurança, seu sossego interior; que destroça todas as defesas e o mecanismo de pensamento construtor dessas defesas. É preciso destroçar tudo isso, ultrapassá-lo, rapidamente, celeremente, para ver se algo existe além. E o ultrapassar dessas coisas falsas não é uma reação ao que existe. Certo, para descobrirmos o que é o espírito religioso e dele nos abeiramos negativamente, precisamos ver no que cremos, e porque cremos, porque aceitamos todos os inumeráveis condicionamentos que as religiões organizadas do mundo inteiro impõem à mente humana. Por que credes em Deus? Por que não credes em Deus? Por que tendes tantos dogmas e crenças?
Direis, porventura, que se ultrapassarmos todas essas chamadas estruturas positivas atrás das quais a mente se abriga, ultrapassá-las sem desejar encontrar algo mais — nada mais restará senão desespero. Só existe desespero quando há esperança — a esperança de nos pormos em segurança, permanentemente confortados, perpetuamente medíocres, perenemente felizes. Para a maioria de nós, o desespero é reação à esperança. Mas, para se descobrir o que é o espírito religioso, acho que essa investigação deve realizar-se sem nenhuma provocação, nenhuma reação. Se vossa busca é apenas uma reação — porque desejais mais segurança interior — nesse caso vossa busca visa apenas a um conforto maior, seja numa crença, numa ideia, seja no conhecimento, na experiência. E a mim me parece que tal modo de pensar nascido da reação só pode produzir mais reações, e, por conseguinte, não oferece a libertação do processo de reação que impede o descobrimento. Não sei se está claro o que estou dizendo.
Deve haver uma maneira negativa de proceder, e isso significa que a mente necessita tornar-se cônscia do condicionamento imposto pela sociedade, em relação à moralidade; cônscia das inumeráveis sansões impostas pela religião; e cônscia, também, de como, rejeitando essas imposições exteriores, cultivamos certas resistências internas, crenças conscientes e inconscientes, baseadas na experiência, no conhecimento, e que se tornam fatores diretores.
Assim, para descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso, a mente deve achar-se num estado de revolução, e este significa a destruição de todas as coisas falsas que lhe foram impostas, seja por pressão externa, seja por ela própria; pois a mente está sempre em busca de segurança.
Afigura-se-me, pois, que o espírito religioso encerra esse constante estado mental que nunca constrói para sua segurança. Porque se a mente constrói com essa ânsia de segurança, então ela fica vivendo atrás de seus próprios muros e, portanto, é incapaz de descobrir algo novo.
Por conseguinte, a morte, a destruição do "velho", é necessária: destruição da tradição, libertação total do que foi, abandono das coisas acumuladas como memória através dos séculos. Então, direis, porventura: "Que mais resta? Tudo o que sou é constituído por todo esse conjunto de fatos, essa "história", a experiência; se tudo isso desaparece, se apaga, que resta? — Em primeiro lugar, pode-se apagar tudo isso? Podemos falar a esse respeito, mas é verdadeiramente possível apagá-lo? Eu digo que é possível — mas não por influência ou coerção, pois isso é insensatez, falta de madureza. É possível, se o penetrarmos profundamente, afastando de nós toda autoridade. E esse "limpar da lousa" — que significa morrer todos os dias e de momento em momento, para as coisas acumuladas — requer abundante energia e profundo discernimento; e isso faz parte do espírito religioso.
Outra parte do espírito religioso é o "espírito-força", que inclui a ternura e o amor. Estou tentando expressar-me por meio de palavras, mas tende a bondade de não vos contentardes com palavras, apenas. Eu disse que outra parte do espírito religioso é a força proveniente do amor. E com essa palavra "força" quero referir-me a algo completamente diferente do impulso para ser poderoso, do desejo de dominação, controle; do poder que a abstinência confere; ou do poder de uma mente sagaz, cheia de ambição, avidez, inveja, ávida de perfeição. Este poder é maligno. O domínio de uma pessoa sobre outra, o poder político, o poder de influenciar outros para pensarem de certa maneira, seja exercido pelos comunistas, pelas igrejas, seja pelos sacerdotes ou pela imprensa — este poder, para mim, é extremamente nocivo. Estou-me referindo a coisa muito diferente, tanto em grau como em qualidade, algo sem nenhuma relação com o poder dominador. Existe essa força, esse poder, uma coisa "exterior", não produzida por nossa vontade ou desejo. Nesse poder reside aquela coisa extraordinária que é o amor; e este faz parte do espírito religioso.
O amor não é sensual; nenhuma relação tem com a emoção; não é reação ao medo; não é amor materno, amor conjugal, etc.
Segui bem isso, por favor, penetrai-o, sem nada aceitar, nem rejeitar, pois estamos jornadeando juntos. Direis, talvez: "Um tal amor, um tal estado mental não baseado em lembrança, é impossível". Mas eu acho que ele pode ser encontrado. Encontramo-lo por vias obscuras, ao investigarmos no seu todo o processo do pensamento, as peculiaridades da mente. É um poder existente por si só; é energia não causada. Difere inteiramente da energia gerada pelo "eu" em sua ânsia de alcançar as coisas que deseja. E aquela energia existe, mas só será encontrada pela mente livre, não vinculada ao tempo e ao espaço. Nasce aquela energia quando o pensamento — como experiência, conhecimento, como "ego", centro — o "eu" — gerador de sua própria energia, volição e concomitantes pesares, aflições etc. — se dissolve. Dissipado esse centro, manifesta-se aquela energia, aquela força que é o amor.
(...) Assim, no sentido da palavra "religioso", é necessária uma revolução em cada um de nós — revolução total e não parcial. Toda reação é parcial; e a revolução a que nos referimos não é parcial e, sim, uma coisa total. E só essa mente pode ter intimidade com a Verdade. Só essa mente pode ter "amizade" com Deus — ou o nome que preferirdes. Só essa mente pode participar da Realidade.
Krishnamurti - 25 de maio de 1961