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quarta-feira, 11 de abril de 2018

A totalidade do mecanismo do conflito


A totalidade do mecanismo do conflito

Se me permitis, continuarei com o assunto de que está­ vamos tratando em nossa reunião de sexta-feira passada. Dizíamos então que era sumamente importante adotarmos uma nova maneira de pensar e, também, que era de toda a necessidade uma nova maneira de viver, neste mundo que se tornou tão superficial, com crescentes problemas e a constante perspectiva de tremendos perigos. Não denotamos perceber — principalmente neste país — quão grave é o problema. Aqui, achamo-nos em relativa segurança; talvez estejamos muito corrompidos, mas temos segurança. Temos nossos problemas: o nacionalismo se intensifica, enquanto noutros países está sendo repudiado; temos ainda líderes, quando noutros países os estão rejeitando; temos também a autoridade da posição, enquanto noutros países a autoridade está sendo posta em dúvida. Aqui muito se fala de religião, mas, na realidade, não somos religiosos, absolutamente; vivemos, como qualquer outro, superficialmente, interessados apenas em ganhar dinheiro, ter êxito, progredir, divertir-nos, como todos os demais habitantes deste mundo, embora falemos em alto som a respeito de Deus, etc.

Nessas condições, parece-me de essencial necessidade o advento de uma nova mentalidade. Não deixareis de reconhecer quanto é urgente essa necessidade, se observardes as condições mundiais, a geral superficialidade, os êxitos mecânicos, o progresso técnico, as tremendas influências postas em ação. Se observamos ainda mais atentamente essas condições, penetrando-as com certa profundeza, não podemos deixar de ver que é indispensável uma nova mentalidade. E essa nova qualidade não pode ser criada por nenhuma espécie de progresso técnico. Cumpre perceber isso bem claramente. E, se me permitis desejo estender-me mais um pouco sobre o que estava dizendo na última sexta-feira.

Como sabeis, vós sois o resultado do passado, de muitos dias que ficaram para trás. Sois o resultado de vosso ambiente, da sociedade em que fostes educados, da propaganda chamada religião que há séculos vem sendo instilada em vós. Podeis falar muito eloquentemente sobre as ideias religiosas e a influência ocidental na mente oriental, na vossa mente; mas tudo isso continua a ser muito perfunctório. Percebendo bem isso, qualquer pessoa verdadeiramente séria não pode deixar de perguntar a si própria: Para onde nos está levando tudo isso, qual a finalidade disso? Ao fazerdes com toda a seriedade esta pergunta, podereis retornar ao vosso condicionamento e responder que tudo “dará certo”, que se trata apenas de uma temporária mutação pela qual o homem está passando, e que no fim desta confusão tudo sairá certo, porque há Deus, porque há Justiça, Beleza, Amor. Mas tudo isso são só palavras sem muita significação. O homem faminto não se satisfaz com palavras: ele quer comida. Se fizerdes seriamente aquela pergunta a vós mesmo, vereis que, como já salientamos, sois o resultado do passado — o autêntico resultado — e que não há nada novo.

Toda tentativa para alcançar o novo é realmente uma reação do “velho”, projeção de uma certa parte do velho, sendo “o velho” a religião em que fostes criado, o meio cultural, a influência da família, da tradição, etc. Assim, não há nada novo. E, entretanto, as circunstâncias da vida — a crise atual, a presente confusão, miséria, sofrimento, fome — exigem o aparecimento de uma nova mentalidade; não de uma nova ordem de ideias, pois não se necessita de novas ideias ou ideais, porém, antes, de “um novo acesso à vida”, de todo diferente. E esse “novo acesso” não é de modo nenhum questão de tempo. Isto é, precisamos de mutação, de imediata transformação, de uma nova qualidade mental, para produzir uma ação de qualidade diferente, novos valores.

E como irá efetuar-se essa mutação? Era sobre isso que estávamos tentando falar na última sexta-feira, e desejo prosseguir com este tópico. Estivemos dizendo que é importante compreender um fato: o fato de que estamos imitando, de que estamos em busca de êxito, de que somos ambiciosos — que releva vermos esse fato. Porque o próprio ato de ver o fato produz a mutação. O próprio ato de ver uma certa coisa como um fato, sem emitir opinião, nem julgamento, sem condenação, produz o necessário ímpeto, a energia que operará a mutação. Talvez a maioria de vós não compreenda o significado desse ver, desse escutar. E desejo apreciar esse ponto, porquanto, para mim, o ato de ver, o ato de escutar constitui o único meio, o único instrumento que operará uma revolução, a transformação da mente.

Em maioria desejamos o bom êxito. Vou falar a esse respeito, a fim de ajudar-vos a ver o fato — não para o rejeitardes, não para o aceitardes: ajudar-vos a vê-lo, simplesmente. Em regra se adora o sucesso, o sucesso neste mundo; ou, também, desejamos ser bem sucedidos psicologicamente. E para se ser bem sucedido tem de haver imitação, cópia, continuidade do que foi. E, se observardes a vós mesmo, vereis ser isto o que desejais: sucesso; não só neste mundo, mas também interiormente aspirais a um resultado. E esse desejo de resultado implica, por certo, a observância de certo padrão, não é verdade? E quando tendes de observar um padrão, não há possibilidade de transformação fundamental. Todo afastamento do padrão gera medo. E, a fim de evitar o medo, seguis as linhas traçadas pela autoridade, e obedeceis a essa autoridade — que poderá ser o Gita, ou o líder político, ou o guru, ou quem quer que seja — a fim de terdes êxito, para estardes livres de perturbações, evitardes todo e qualquer conflito, sempre tendo em mente um resultado satisfatório, que represente um “sucesso”.[...]

Por que razão todos nós admitimos o conflito como parte da existência? Por que aceitamos o conflito como coisa essencial à vida? Se observardes vossa própria vida, vereis que estais em conflito, não só com vosso próximo e o mundo, mas também psicologicamente; interiormente vos achais num conflito muito maior. Não sabeis o que fazer. Ou, se sabeis o que deveis fazer, vós o fazeis; e o resultado é um problema, é sofrimento, atrito, luta. Tudo isso, como sabemos, é conflito; e estamos sempre procurando evitar esse conflito, fugir dele. Isso é um fato. Não estou tentando dizer-vos como ser livre de conflito — mostrar-vos o caminho, a via de fuga. A fuga, a coisa para a qual fugimos, se torna muito mais importante do que o próprio conflito. Essa coisa — bebida, vossa igreja, vossos deuses, sexo, poder, ambição — se torna importante; tudo isso representa uma fuga do fato de que estais em conflito. Eis a realidade. Por favor, vede esse fato; vede-o no sentido que dou à palavra “ver”; não negueis, não digais: “Que devo fazer com esse fato?”, “Como poderei fugir dele?”; vede o fato de que estais em conflito e de que há esse impulso a fugir do conflito. E que, depois de fugirdes, a coisa para a qual fugistes se torna de suma importância. Vossa religião, vosso nacionalismo, vosso guru, os ideais, os santos — tudo isso são fugas do fato central de que vos achais em conflito, de que vos achais em sofrimento.

Ora, como surge o conflito — não apenas os pequenos conflitos da vida diária, mas também os profundos conflitos interiores, os conflitos inconscientes e conscientes, que ficaram sem solução? Como surge esse conflito? Notai mais uma vez que não deveis aceitar nem rejeitar isso, mas, sim, verificar se o orador está dizendo a verdade, verificar — não concordar — se estais em conflito. Se estais realmente apercebido de vossas próprias condições, deveis ficar apercebido de estardes em conflito. Estais em conflito; por quê? Há conflito, porque há contradição. Quereis fazer uma certa coisa e ao mesmo tempo desejais fazer o oposto dela; isso é uma contradição, como o é o amor e o ódio, o ser ambicioso e ao mesmo tempo fingir-se não ambicioso, o desejar ser rico e simultaneamente fazer o mesmo jogo do político simulando pobreza. Há o fato, “o que sois”, e a ideia de “o que deveríeis ser”; o fato do que realmente é e a ideia do que deveria ser — uma contradição. Sois educado na ideia do que “deveríeis ser”, e de que não deveis enfrentar o fato. Sois educados para serdes não violentos e nunca enfrentardes o fato de que sois violentos. É o que se vem ensinando neste país há anos e anos: que deveis ser não violentos que deveis ser idealistas. E os ideais se tornam mais importantes do que “o que é”. Assim, entre o que é e o que deveria ser abre-se um vão, e o esforço para lançar uma ponte sobre esse vão gera conflito. Observai a vós mesmo. Estou apenas pondo em palavras aquilo que constitui o fato real.

É assim que surge a contradição; da contradição surge o conflito e, depois, vem o esforço. Gostamos de fazer esforços. Para nós o esforço é muito importante. Tudo o que fazemos é resultado de esforço. Isso é um fato. É o que estamos acostumados a fazer. Por que devemos forcejar?

Não é possível viver-se neste mundo sem esforço algum? Só podeis responder a esta pergunta se compreenderdes a totalidade do mecanismo do conflito, tanto exterior como interiormente — conflito entre nações e entre as pessoas, exteriormente; e o conflito, a profunda ansiedade interior. E, quando há conflito, há esse esforço para dominá-lo. Por conseguinte, o conflito surge por causa da contradição. E havendo contradição, com os sofrimentos, as agitações e ansiedades que a acompanham, há o impulso para se fazer esforço a fim de dominar esse conflito; e neste círculo ficamos presos. E todo o nosso interesse se concentra em fugirmos desse fato, resultando, daí, consequentemente, mais conflito — mais esforço em nossas práticas religiosas, com o fim de disciplinar, de moldar, compelir, renunciar, obedecer. Dessa maneira, nossa mente nunca se acha quieta, nunca é capaz de olhar qualquer coisa, de escutar qualquer coisa plenamente, completamente. Ela está sempre agitada.

E como pode a mente agitada compreender o que quer que seja? A vida é uma coisa imensa que precisa ser compreendida. A vida não é simplesmente exercer emprego, gerar filhos, não é meramente sexo, meramente prosperidade; a vida não é uma série de êxitos, não é o preenchimento de ambições; ela é muito mais do que tudo isso. A vida é também investigação, para descobrir se há ou se não há Deus, algo que se encontra além das palavras; para descobrir se o amor existe; descobrir como enfrentar e compreender o desespero, o sentimento de culpa, o imenso sofrimento, a ansiedade jacente no coração do homem. Tudo isso é a vida. E, para compreendê-la, necessita-se de uma mente serena, não uma mente talada pelo conflito, pela agitação.

E que acontece quando nos vemos frente a frente com tudo isso? Volvemos ao passado, ou recorremos a um certo livro, uma certa autoridade; e pensamos ter compreendido toda essa enorme complexidade seguindo uma certa fórmula absurda, ou o Gita, ou um guru, este ou aquele livro. Mas, para compreenderdes essa imensidade é necessário uma revolução em vossa mente — não revolução econômica e social, porém, sim, mutação da qualidade da mente. Essa mutação não pode ser efetuada por volição, porque, quanto mais recorrerdes ao passado, tanto mais condicionamento haverá e, por conseguinte, nenhuma possibilidade de mutação. Vede pois o fato — que é tudo isso — vede quanto nos tornamos mecanizados.

A virtude perdeu seu significado, pois qualquer um pode tornar-se virtuoso com ingerir certas substâncias químicas. Não sei se tendes visto tudo o que se está passando no mundo. A pessoa pode tomar uma pílula e tornar-se tranquila. A tranquilidade, portanto, perdeu sua significação. Podeis tomar um comprimido, um preparado químico, para vos tornardes menos irritadiço, menos ciumento, menos rancoroso, etc. Se sois sexualmente apaixonado, podeis tomar uma pílula e acalmar o amor. Perderam, pois, as virtudes o seu significado. E os computadores, os cérebros mecânicos, essas extraordinárias máquinas eletrônicas estão-se encarregando de pensar por nós; e, de fato, se desempenham de suas tarefas bem melhor ido que o homem. E a ‘'automatização” — máquinas que farão funcionar outras máquinas — está também prestes a surgir. Estamo-nos tornando — não só aqui na Índia, mas também no resto do mundo — muito superficiais, porque nos estamos mecanizando. Considerando-se tudo isso, que são fatos e não invenções minhas, os deuses já nada significam, as religiões perderam toda a sua importância; e estamos na expectativa de iminentes perigos. O futuro é desconhecido; o que tendes é unicamente o passado, e nada mais — o passado, constituído pelo que conheceis, pelo que aprendestes, o passado relativo à bomba atômica, à vossa tradição, etc. etc. Eis o que tendes. Vossa mente é só isso, e nada mais.

Ora, como operar, dessa base, aquela extraordinária mutação, aquela revolução radical? Este é que é o verdadeiro problema. Espero tenhais compreendido a pergunta; não se trata de “o que se deve fazer”. Devemos primeiramente compreender a pergunta e seu verdadeiro significado. Vede, senhores, vós ledes o Gita, sois cristãos, budistas, maometanos ou o que mais seja. O que faz a diferença não é o que o Gita diz, mas o que realmente sois; não são vossos turbantes e casacos, vossa erudição e saber, mas o que sois. Se isso vos é retirado, resta-vos apenas o passado, algo que já existiu, algo que conhecestes, enfim, o mecanismo do passado. E tudo o que fizerdes com base no passado condicionará o futuro e, por conseguinte, será ainda o passado.

Vede, por favor, a importância do que se está dizendo. Se fizerdes qualquer esforço para operar a mutação — e essa mutação é absolutamente necessária no mundo atual — esse impulso provirá do passado e, por conseguinte, condicionará a mutação, que, portanto, já não será mutação, e, sim, meramente, um prolongamento do passado. O que verdadeiramente nos interessa é a mutação, uma mente nova, capaz de perceber a totalidade da existência, e não simplesmente uma parte dela. Houve tempo em que vos diziam, neste país, que não devíeis ser provincialistas, separando-vos do resto da nação; e é estranho constatar que agora vos estais tornando nacionalistas, mas continuais divididos. O que vos deve interessar é o todo da vida; não a Índia, os hindus ou os budistas, mas o homem, o futuro do homem, a mente do homem, de que também fazeis parte. Assim, ao perceberdes esse fato, esse percebimento deve obrigar-vos a indagar fundamentalmente. Mas, se procurardes resposta para aquela pergunta, a resposta procederá do passado; assim, deveis fazer a pergunta sem procurar resposta. E isso é dificílimo: limitar-se a fazer a pergunta, e investigar.

Nosso problema, portanto, é este: Há necessidade de uma radical revolução interior, na mente, na consciência. Ao verificar-se essa revolução, ela atuará na esfera social e econômica, e de forma singular. Ora, como promover essa revolução? Estou empregando a palavra “como”, não para sugerir um método, um sistema— pois, se tendes algum método ou sistema, isso faz parte ainda do passado; estou empregando-a apenas como meio de investigação e não como meio de oferecer um sistema. Como promover essa revolução?

Em primeiro lugar, para se viver plenamente, para se ver claramente qualquer coisa, é preciso que não haja conflito de espécie alguma; por conseguinte, deve haver compreensão de todo o problema da contradição — e isso significa investigar, observar as operações da própria mente e ver que qualquer forma de ambição, de ordem externa ou interna, produz contradição. Sempre que há preenchimento pessoal, sempre que há impulso para o preenchimento — impulso para ser isto ou não ser aquilo — nesse próprio desejo de preenchimento há contradição, ou seja, frustração. Deste modo, a ambição, o sucesso, o preenchimento implicam frustração, e da frustração resulta conflito. Tudo isso são fatos psicológicos, e não invenções minhas. Se vos observardes, verificareis serem esses os fatos que estão ocorrendo.

Assim, a mente que está procurando compreender o que a mutação implica já deixou de ser ambiciosa. Perguntareis, então: Como pode essa mente viver neste mundo — este mundo feito de conflito, de ambição, de crueldade, em que cada um só cuida de si — como pode a mente não ambiciosa viver neste mundo? Não pode. Por conseguinte, quando tiverdes compreendido e abandonado completamente a ambição, vereis que podereis viver sem os preceitos da velha sociedade, pois tereis criado um novo mundo. Compreendeis, senhores, o que estamos dizendo? Um novo mundo precisa vir à existência. E não podereis criar um novo mundo, se apenas dizeis: “Tenho de ajustar-me, para viver neste mundo”. Vós tendes de destruir esta sociedade, para criardes um mundo novo. Não estou falando da destruição de construções, porém da destruição dos valores sociais. E isso não desejais fazer, porque temeis; por conseguinte, novamente vos vedes envolvido em conflito.

Tendes, pois, de ver com clareza que, havendo ambição de qualquer espécie, há também conflito, sofrimento. Mas, como sabeis, somos criados na ambição, na competição. Todo escolar é ensinado a competir. Ensina-se-lhe a adorar o êxito. E como rejeitareis todo esse padrão, o padrão em que fostes educado? Vós o rejeitareis quando perceberdes a importância de rejeitá-lo, quando estiverdes enfrentando uma crise. E a crise atual reclama uma mente nova. É o que ela reclama, e não uma maneira de reformar o velho padrão. Assim, uma vez apercebido da crise, uma, vez apercebido de tudo o que a ambição implica, após terdes penetrado a fundo em vós mesmo para descobrirdes a fonte da ambição — porque sois ambicioso, porque há competição, luta, ânsia de posição, de prestígio pessoal — depois de terdes compreendido toda a anatomia da ambição, ou ficareis com a ambição e suas crueldades, ou saireis dela. E o homem que “saiu” dela cria uma mente nova, um pensar de nova qualidade.

Assim, o que deveras nos interessa é perceber a importância dessa profunda revolução interior e descobrir se ela é possível, ou não, a cada um de nós. A época a exige, as circunstâncias também, vossa própria vida a impõe; e o extraordinário nisso é que não há tempo. Não podeis dizer: “com o tempo eu mudarei, acumularei a energia necessária para efetuar a mutação”. O tempo não vos dá energia. O tempo vos rouba energia; envelheceis, definhais. O que vos dá energia para investigar profundamente é o enfrentar o fato, simplesmente enfrentar o fato, qualquer que seja ele. E vereis que, do enfrentar o fato, nasce a energia. Ela não nasce da negação do fato; esta nunca dá energia. E vós necessitais de tremenda energia, porque não só é necessário enfrentar e compreender as trivialidades da vida, mas é necessário também ultrapassá-las. Há ainda outra coisa mais significativa e que requer toda a vossa atenção: Precisais descobrir por vós mesmo, não por meio de palavras, porém realmente, se alguma coisa existe além dos limites da mente, algo chamado o Imensurável, que transcende a morte, as palavras, o pensamento. Se não descobrimos isso, a vida se torna bem superficial, mecânica; e ela é então toda de sofrimentos e agitações. E para o descobrirdes, necessitais de imensa energia.

Mas essa energia só pode vir quando compreendida a “qualidade de ver”, a “qualidade de escutar”, quando a pessoa é capaz de olhar os fatos, olhar o próprio ciúme, a própria ambição, olhar as próprias paixões e todos os absurdos de que se cercou e a que chama “religião”. E quando temos a capacidade de enfrentar esses fatos e de não reagir, desse enfrentar resulta energia. E é essa qualidade de energia que opera a mutação. E só então a mente se torna algo extraordinário; já não é produto do ambiente, já não é produto da experiência. Fica então apta a renovar-se constantemente; passa a ter aquela qualidade denominada juventude, inocência. E ela necessita dessa qualidade que é a inocência, a perfeita humildade, a fim de descobrir o que se acha além das palavras, além do pensamento, além do tempo.

Krishnamurti, Nova Déli, 28 de janeiro de 1962, A mutação Interior


terça-feira, 10 de abril de 2018

A revolução radical na qualidade mental


A revolução radical na qualidade mental

[...] As ideias são tão só pensamento verbalizado e, em si, elas pouco significam. Não podem produzir transformação radical, transformar de todo a mente. E aqueles que dependem das ideias para estimulá-los a transformar-se sairão deste acampamento de mãos vazias, porquanto aqui não nos ocupamos com ideias. Estamos tratando de coisa mais profunda, mais duradoura, e que significa uma revolução radical na qualidade da própria mente. E essa revolução não pode ser produzida com palavras, nem com ideias. As palavras têm um significado. Palavras não são coisas; e as ideias — se as observamos bem — se ajustam a um padrão de pensamento. E ideias e palavras não têm nenhum papel significativo e profundo em nossas vidas — pelo menos não o têm na vida dos homens profundamente refletidos e sérios. Assim, desde o começo, devemos compreender-nos mutuamente.

Não tem por fim esta reunião converter-vos a qualquer ideia ou modo de pensar individual. Pelo contrário, iremos examinar questões às quais tereis de aplicar o vosso ser inteiro; e não devereis — numa base meramente intelectual — aceitar ou rejeitar certas palavras. Cumpre, também, ter sempre presente que não estamos falando como autoridade. Não há autoridade em questões espirituais; não há seguir, não há guia, não há guru. Cada um tem de descobrir por si mesmo a luz. E o que durante estas palestras iremos tentar é, não só esclarecer para nós mesmos os empecilhos que nos são impostos pela sociedade, mas também descobrir o cativeiro em que a mente está sendo mantida.

Nessas condições, iremos investigar, principalmente, de que maneira fazer nascer uma mente nova e de todo diferente, uma diferente maneira de pensar, uma atitude diversa, uma nova ordem de valores. E para tal necessita-se de um pensar claro e preciso; necessita-se também de capacidade para enfrentar a vida inteiramente só. E isso, por certo, não se consegue com a “mente coletiva”, pois esta nunca será capaz de revolução. Só a mente individual, a mente não enredada na sociedade, na tradição social, nas práticas da sociedade — é capaz de revolução. Necessita-se de individualidade para haver uma revolução radical, e não de simples ajustamento a padrão estabelecido pela sociedade. A mente individual tem a possibilidade de fazer o necessário para operar uma transformação duradoura, revolucionária, no mundo.

Cumpre-nos, pois, diferençar entre “ação coletiva” e “ação individual”. Nós não somos verdadeiros indivíduos; somos o resultado do “coletivo”. Vós sois o resultado de vossa sociedade, da religião, da educação, do clima, da alimentação, dos trajos, da tradição, do meio em que fostes educado — sois isso, exatamente. E pensardes que sois um “indivíduo” constitui verdadeiro absurdo, como vereis, se investigardes profundamente a questão. Podeis ter um nome, um corpo diferente, uma conta no banco, certas qualidades superficiais; mas, essencialmente, a totalidade de vossa mente está bem condicionada pela sociedade em que foi educada. E a capacidade de perceber essa condição e de romper a crosta secular do passado — essa é a qualidade, a intensidade, a compreensão que faz nascer a individualidade. Porque só a entidade individual, e não a coletiva, é capaz de descobrir o que é real. Só a mente individual, e não a coletiva, pode verificar se há, ou se não há aquilo que se chama “Deus”. A mente coletiva só sabe repetir a palavra; mas a palavra “deus” não é Deus. A mente “coletiva” pode ler o Gita, citar os Upanishads e todas as autoridades religiosas; mas essa mente nunca descobrirá o Verdadeiro. Só a mente que rompeu com a tradição, que destroçou os valores impostos pela sociedade, que se libertou do passado — só ela é capaz de descobrir.

E o que nos interessa é descobrimento, e não asserções, acordos ou desacordos. Nós mesmos é que temos de descobrir. Mas é quase impossível descobrir o verdadeiro, descobrir se existe o atemporal, além dos limites da mente — se pertenceis a alguma religião, se sois hinduísta, parsi, sikh, cristão, se pertenceis a qualquer religião organizada; porque crença e dogma são, essencialmente, obstáculos ao descobrimento. Só a mente que percebe todas ás falsidades e influências condicionadoras dessa propaganda rotulada de “religião” — só essa mente pode libertar-se, descobrir.

Mas isso requer muita penetração, muita investigação, vigilância, percebimento das coisas como são, e não mera aceitação ou rejeição puramente intelectual. Porque o aceitar ou rejeitar é simples questão de intercâmbio verbal. Mas, se realmente empreendemos o trabalho de descobrir — e nós precisamos descobrir — temos de pôr em dúvida todas as instituições. Pois todos devemos tornar-nos cônscios da situação mundial, da geral deterioração. As religiões falharam completamente. A educação não trouxe a paz ao mundo, embora se pensasse, outrora, que, dando-se instrução ao homem, ele se tornaria tão civilizado que deixaria de haver guerras, já não haveria nacionalidades. Mas tudo isso se foi “por água abaixo”, porquanto, com os atuais meios de intercomunicação, está-se verificando extraordinária mutação. A rapidez com que se está processando essa mutação é bem mais significativa do que a própria mutação. E não há paz neste mundo, e nenhum político, de qualquer espécie que seja, jamais conseguirá trazer a paz ao mundo. Isso porque os políticos — tal como a generalidade das pessoas, que também são parcialmente políticas — estão interessados principalmente nos problemas imediatos: o imediato bem-estar, a ação imediata, sem se preocupar com a perspectiva. Observando vossa própria vida, podereis ver que não sentis interesse na totalidade da vida, só vos interessando o “imediato” — vosso emprego, vossa posição, vossa família, etc. — tudo isso dentro dos limites do “imediato”. O político é obviamente um homem interessado nas coisas imediatas. E os chamados líderes sociais e religiosos estão igualmente interessados no “imediato”.

Mas é necessário promover uma revolução radical. Pode uma pessoa não estar apercebida da atual deterioração mental. Entretanto, se observardes, vereis que há cada vez menos liberdade no mundo. As democracias falam de liberdade; mas todos têm de submeter-se às regras do partido, ou à tradição. E a observância da tradição é, evidentemente, uma coisa fatal, porque impossibilita o homem de ver claramente, de discernir profundamente. E, em vista não só do estado em que se acha o mundo, mas também da angústia e da confusão nele reinantes, os que pensam com certa clareza tratam de negar a importância dos líderes e da autoridade; e o resultado é mais confusão, mais conflito e, por conseguinte, mais deterioração.

Estou certo de que tendes feito a vós mesmos esta pergunta: Que se deve fazer num mundo que se acha em rápido declínio; que se pode fazer a respeito da guerra, da ameaça da bomba, da tirania e do cerceamento da liberdade; e que pode fazer um indivíduo em face do problema da fome em todo o Oriente, da pobreza, da degradação, da geral desumanidade? Que podemos, vós e eu, fazer? Ou a ação cabe ao Governo e em nada concerne ao indivíduo? E, também, deveis ter perguntado a vós mesmos: Vendo-se o mundo como é, existe alguma realidade, uma coisa que se possa “experimentar”, descobrir? Estas perguntas só podem ser feitas quando a pessoa está muito profundamente insatisfeita, em profundo descontentamento. Mas a maioria de nós, quando nos vemos descontentes, encontramos fáceis possibilidades de nos contentarmos, fáceis maneiras de nos satisfazermos. E não sei se tendes notado que, quanto maior a confusão, quanto maior a incerteza, tanto maior se torna a busca de autoridade, tanto maior o desejo de apoiar-nos nas coisas do passado. E, observando tudo isso, observando os fatos que estão realmente sucedendo — os fatos, e não as opiniões relativas aos fatos, não o vosso concordar ou vossa tradução dos fatos em conformidade com vosso fundo — torna-se evidente a necessidade de terdes uma mente nova, para enfrentar esses fatos, para compreendê-los e instituir uma diferente maneira de viver.

Sem dúvida, o problema é que há um imenso acúmulo de conhecimentos provenientes dos séculos passados, o peso do passado diante do futuro, que é desconhecido, uma parede lisa, que desconheceis completamente, mas o traduzis nos termos do pretérito e, por conseguinte, pensais conhecê-lo. Mas, realmente, não o conheceis. E esse me parece ser o problema central para o homem que realmente sentiu e, profundamente, fez a si próprio perguntas irrespondíveis — pois a maioria das pessoas faz perguntas com o fim de encontrar as respostas.

Permita-me dizer, aqui, que há uma maneira de escutar, e uma maneira de apenas ouvir palavras. A capacidade de escutar é uma arte, porque, quando escutamos, escutamos sem traduzir, sem interpretar. Escutamos, então, não com o fim de concordar ou discordar, pois isso é falta de madureza; mas para realmente descobrir. Portanto, deveis escutar. Mas não podeis escutar, se ficais traduzindo o que ouvis em termos do que já conheceis, daquilo com que estais familiarizado. Talvez desconheçais o que se está dizendo; por conseguinte, deveis escutá-lo sem o interpretardes consoante o vosso fundo, pois, se assim estais fazendo, cessastes de escutar. Tenho dúvidas sobre se já alguma vez escutamos alguma coisa! Em geral, não desejamos escutar, porque isso é muito perigoso: temos medo de despedaçar as coisas que nos são caras, as coisas com que estamos habituados. Assim, limitamo-nos a ouvir palavras, para, intelectualmente, concordar ou discordar. E dizemos, então: “Como juntar a ação àquilo que pensamos? Intelectualmente concordamos com o que estais dizendo, mas como pô-lo em prática?” Tal coisa não existe: compreensão intelectual; o que estais dizendo significa apenas que ouvis as palavras e que elas têm certos significados idênticos aos que conheceis; e essa identidade de significados é o que chamais compreensão, concordância intelectual. Não há concordância intelectual, tal coisa não existe. Ou compreendeis ou não compreendeis.

E para compreender profundamente, realmente, com todo o vosso ser, tendes de escutar. Já escutastes vossa esposa, vosso marido, vosso filho, ou mesmo vosso patrão? Nós não ousamos escutar. E quando tentardes fazê-lo (talvez o deixeis para outra ocasião ou talvez o façais aqui), vereis que no próprio ato de escutar se verifica uma profunda transformação. O próprio ato de escutar, e não o de concordar com uma ideia, produz essa transformação. Se assim escutais, se escutais com todo o vosso ser — com todos os vossos sentidos, vossa mente, vosso coração — se escutais totalmente o que vos dizem, o que sentis, ficais aptos a discernir o que é verdadeiro e o que é falso. E, escutando, descobrireis por vós mesmo o verdadeiro, pois o ato de escutar é o ato de descobrimento do fato. Entretanto, estamos sempre evitando o fato, qualquer que ele seja, porque temos opiniões a seu respeito. Nunca o olhamos, porque desejamos fazer alguma coisa a respeito dele, procuramos organizar-nos de maneira que possamos atuar sobre o fato.

Consideremos uma coisa muito simples que está ocorrendo neste desafortunado país: a doença do nacionalismo. Os políticos estão-lhe avivando a chama. E, se observardes, vereis que o fato é que as nacionalidades estão sempre em guerra entre si, e que elas são responsáveis pelas guerras. A veneração da bandeira é um símbolo. E o símbolo, segundo se supõe, cria a unidade. Mas ele, com efeito, não dá de modo nenhum unidade ao mundo. Bem ao contrário, as bandeiras estão separando os homens, tal como o têm feito as religiões. Isso é um fato. Quer o admitais, quer não, é um fato. Esse fato está ocorrendo em nosso país; esse veneno, que nunca existiu aqui, está-nos sendo inoculado na mente, a fim de se criar a unidade. Mas a unidade não pode ser criada com uma bandeira. Não se pode criar a unidade mediante um símbolo. Um símbolo é mera palavra, não é a coisa real. E para enfrentardes esse fato, para descobrirdes o que é verdadeiro, necessitais de toda a vossa capacidade, toda a vossa inteligência. E isso significa que deveis dissociar-vos completamente do “coletivo”. Mas tal é dificílimo, porque correis o risco de perder o emprego, de vos indispordes com vossa família; poderá haver um sem-número de obstáculos inconscientes a vos impedirem de olhar o fato.

Consideremos outro fato muito simples. Vós vos denominais hinduístas, sikhs, muçulmanos, e sabe Deus o que mais. Por meio de secular propaganda fizeram-vos pensar que sois isto e aquilo. Mas isso não vos faz ser uma pessoa religiosa, não vos dá a qualidade da verdadeira mente religiosa. Obedeceis ao padrão da religião organizada — dessa suposta religião, que tem doutrinas, crenças e dogmas religiosos. E, agora, para enfrentardes esse fato, deveis escutar, para conhecer a qualidade da verdadeira mente religiosa. E, quando assim escutais, isso significa que estais começando a dissociar-vos da propaganda a que chamam religião.

Nessas condições, senhores, para poderdes efetuar a transformação interior de vós mesmos e, portanto, do mundo, não deverá essa transformação proceder de nenhuma compulsão, nem de concordâncias, nem de palavras e argumentos intelectuais, porém do descobrimento do verdadeiro, realizado por vós mesmos (pois ninguém vo-lo pode mostrar) mediante o percebimento próprio. Podeis dizer que estais de acordo, por enquanto, intelectualmente, talvez. Mas, depois de vos irdes daqui, continuareis a ser hinduísta, continuareis a ser cristão, sikh, muçulmano, ou quaisquer que sejam vossos títulos e rótulos. Mas, se realmente vos escutardes, escutardes o “mecanismo” de vosso próprio pensar, observardes os fatos, vereis então que já não fazeis parte do “coletivo”, nem da tradição, já em processo de dissolução. E essa libertação não resulta de esforço consciente, pois esforço consciente é mera reação, e toda reação provoca novas reações.

Estais, pois, escutando o que aqui se está dizendo — quer dizer, estais realmente escutando a vós mesmo, e não ao orador. O orador só vos está dando indicações por meio de palavras. Mas, se seguis apenas as palavras e seus significados, elas não vos levarão longe. Mas, escutando, vereis de frente o fato da deterioração que, mais rápida, talvez, do que nunca, está ocorrendo no mundo; vereis que o mundo está caindo nas mãos dos políticos, dos tiranos, dos reacionários. Com a palavra “reacionários” refiro-me aos que se intitulam revolucionários mas são verdadeiramente tirânicos por causa da reação, porquanto baseiam na reação todas as suas atividades e pensamentos. O comunismo, por exemplo, é uma reação ao capitalismo. E reação significa apenas reavivar, de forma modificada, o passado.

Assim sendo, observando-se tudo isso — que a religião perdeu todo o seu significado, que a educação está formando técnicos e não entes humanos, que a existência moderna é extremamente superficial — que cumpre fazer? Como encontrar uma saída desse matagal, desse caos? Tudo depende da maneira como fazeis essa pergunta. Podeis fazê-la em consequência de reação e encontrar, assim, uma resposta que será também reação; ou podeis fazê-la sem esperar resposta alguma. Ao fazerdes uma pergunta sem esperar resposta, pois não há resposta, sois reenviado a vós mesmo e, por conseguinte, tendes de indagar dentro em vós mesmo e não fora de vós.[...]

Assim, impende compreender por nós mesmos, e para isso precisamos investigar o estado de nossa própria mente — não tentando “resolver” o estado da mente, porém, sim, compreendê-lo. É necessário compreendê-lo. Com a palavra “compreender” quero dizer: olhar as coisas sem condenação, olhá-las sem avaliação — o que é dificílimo para a maioria das pessoas, senão todas; olhar, ver, escutar, sem introduzir opiniões, juízos, condenações e justificações: olhar apenas. Não sei se já alguma vez fizestes isto — olhar sem pensamento, olhar uma flor sem lhe aplicar todos os vossos conhecimentos de botânica — olhá-la, simplesmente. Se o experimentardes, vereis quanto isso é difícil, pois a mente é escrava das palavras. A palavra é mais significativa para a maioria de nós do que o fato. E, enquanto a mente for escrava de palavras, de conclusões, de ideias, será totalmente incapaz de olhar e compreender.

Compreender um fato não é ter opinião a respeito dele, mas, sim, ter a capacidade de olhá-lo — olhá-lo sem julgamento, sem a palavra. Não sei se já alguma vez olhastes para uma ave ou uma árvore, ou para a esqualidez, a imundície das ruas. Estou empregando as palavras “esqualidez” e “imundície” no sentido lexicográfico, sem lhes emprestar nenhum conteúdo emocional. Porque, vede bem, se estais apto a olhar, deixa de haver medo. Não há temor ao serdes capaz de olhar, capaz de olhar a vós mesmo. E precisais olhar dessa maneira, pois só assim podereis conhecer-vos. Se não vos conheceis, nenhuma razão tendes para pensar, nenhuma base tendes para o pensamento, pois sois um mero autômato, que pensa o que se lhe manda pensar. Mas, se fordes capaz de observar-vos, de observar vossos modos de ser, vosso pensar, vossas atividades, observar como olhais as pessoas, o que vedes, o que fazeis, como falais — tudo isso — descobrireis então que essa observação, esse ver, esse total percebimento é energia, é a chama que consome o passado.

E vereis então, por vós mesmo, que a mente penetrou fundo em si própria. A mente tem de penetrar em si mesma profundamente, porque o fomento da educação, do progresso, da industrialização, nos está tornando cada vez mais superficiais. E a vida não é só indústria, não é só exercer um emprego, ganhar dinheiro e gerar filhos. A vida é coisa bem mais grandiosa do que tudo isso, incluindo também tudo isso. Mas o menor não pode conter o maior; o maior é que contém o menor. Entretanto, aparentemente, contentamo-nos com o menor e, por conseguinte, estamos interessados no “imediato”. E a vida se está tornando sobremodo superficial. Pensais que ir semanal ou diariamente a uma cerimônia hinduísta, a isto ou àquilo, vos torna muito “direto”, pensais ser muito atilado porque lestes uns tantos livros; mas tudo isso é muito superficial. O profundo não se encontra em nenhum livro, ainda que seja o Gita ou os Upanishads. Não se encontra em nenhum guru, nenhum templo ou igreja. Cumpre ser encontrado dentro de vós mesmos. Tendes de penetrar muito, penetrar profundamente em vós mesmo, passo por passo, observando cada movimento de vosso ser, cada ação, cada sentimento. E vereis então que não há limite, que nunca se alcança o fundo daquilo que vedes.

Por certo, só a mente que de todo se dissociou da sociedade, da tradição, que se tornou capaz de estar completamente só, só ela pode descobrir se existe o inefável, o incognoscível. E existe. Digo que existe; mas isso nenhum valor tem para vós, absolutamente, porque vós é que tendes de descobri-lo. O laboratório sois vós mesmo; cabe-vos demolir, destruir tudo, para poderdes descobrir. Essa é a única revolução interessante, de profunda significação; não o é a revolução econômica, a revolução social, a revolução industrial a que estamos assistindo neste país.

Só há uma revolução: a revolução da mente, a revolução da consciência; e essa revolução não se realiza com discussões, com palavras, com inferências e conclusões. Essa revolução chega, profunda, duradoura, precisa, ao penetrardes em vós mesmo, sem aceitar coisa alguma e, por conseguinte, contestando tudo. E, com esse próprio contestar, que não é busca de nenhuma resposta, descobrireis que uma extraordinária revolução ocorrerá sem esforço algum. E só então a mente pode descobrir por si mesma se há, ou não, o atemporal.

Krishnamurti, Nova Déli, 21 de janeiro de 1961, A mutação Interior

domingo, 8 de abril de 2018

A importância de uma radical revolução religiosa


A importância de uma
radical revolução religiosa

Acho que, se pudermos compreender o problema da frustração, teremos uma mentalidade que não será meramente intelectual, mas uma atividade “integrada”. Nossas religiões, nossas atividades sociais estão baseadas na frustração e no sofrimento. Se pudermos compreender esta questão da frustração, que é realmente o problema da dualidade, talvez possamos, por nós mesmos e como indivíduos, chegar àquela ação criadora que não é uma simples capacidade ou talento, mas uma ação totalmente diversa. Se pudermos esclarecer esta questão da dualidade e do conflito entre “o que é” e “o que deveria ser”, talvez então compreendamos a mente que é sem raiz, pois a mente da maioria de nós tem raiz.

A própria existência da mente indica — não é verdade? — pensamento com raiz no passado. Esta raiz é que cria a dualidade. É possível não dar continuidade a essa raiz, no presente ou no futuro? Só a mente sem raiz pode ser verdadeiramente religiosa e, portanto, capaz da transformação radical que possibilitará o despontar da realidade. Desejo examinar esta questão, aparentemente um: pouco difícil; mas, se pudermos fazê-lo de maneira simples, não filosoficamente, então talvez estejamos aptos a apreciá-la e compreendê-la por nós mesmos. Mas a dificuldade consiste em que nós, em geral, já lemos tanta coisa sobre este problema da dualidade; conhecemos o problema de acordo com alguma filosofia, algum instrutor, não o conhecemos diretamente, porém, sem que nos tenham chamado para ele a atenção. Se pudermos examinar o problema da dualidade, não intelectual ou filosoficamente, mas observando as atividades de nossa própria mente, enquanto estou falando, talvez então possamos apreciar o problema de maneira diferente. Se puderdes escutar, não a descrição que eu faço, mas as atividades de vossa própria mente, desde o começo de minha descrição ou “verbalização”, isso será então uma experiência direta e, portanto, muito mais vital e significativa do que o mero descobrimento, em todos nós, de um mecanismo dual, apontado por algum filósofo, algum instrutor religioso ou algum livro. Entretanto a dificuldade é que os que aqui estão escutando já chegaram a alguma conclusão ou já ouviram o que eu disse antes e sua mente, por conseguinte, está cheia das cinzas da memória das minhas afirmações; por essa razão, não haverá uma experiência nova, uma coisa real, viva. Os que aqui estão, pela primeira vez só poderão achar enigmático o que estou dizendo, pois é provável que eu empregue palavras com um significado diverso daquele a que estão habituados. Mas, conhecendo-se todas as dificuldades suscitadas pelas cinzas da memória, pela experiência e pelo conhecimento prévios, bem como pela circunstância de se estar aqui pela primeira vez, ouvindo coisas tão altamente “filosóficas” e difíceis — e portanto repelindo-as — temos de escutar com uma mente nova. E não pode nascer essa mente nova, se não observardes o vosso próprio mecanismo de pensamento, desde o momento em que eu começo a falar a respeito deste problema da frustração e da dualidade.

Não vos estou dizendo coisas e, sim, apontando fatos. Vós e eu podemos compreender o fato, apreciá-lo sem condenação, sem julgamento, observá-lo com simplicidade, e estar inteiramente apercebidos dele — não como o observador a observar, mas percebendo o que de fato está acontecendo, “experimentando” realmente o mecanismo pelo qual a mente cria a dualidade e faz nascer a frustração, mecanismo em que estão baseadas nossa cultura, nossas religiões, nossas atividades sociais. Se pudermos compreender esse mecanismo, descobriremos o que é a verdadeira liberdade.

A dificuldade é que a maioria de vós considera estas minhas palestras como conferências, coisas para serem ouvidas e lembradas, coisas que vos proporcionarão muitas experiências, sensações, excitações emocionais. Mas tal não é a intenção, absolutamente, pelo menos de minha parte. O mais importante é que se tenha a revolução religiosa, uma transformação religiosa radical, fundamental, porque todas as outras modificações são sem significação, todas as outras revoluções só redundam em novos sofrimentos. Se pudermos perceber a verdade desta asserção, perceber a importância de uma revolução religiosa radical, e que só ela poderá promover uma modificação nas nossas relações com todos os homens, estão estas palestras não serão um simples meio de excitamento ou divertimento intelectual ou emocional, mas algo de verdadeira significação em nossa vida diária. Por conseguinte, temos de ouví-las como se fosse a primeira vez que as ouvimos, isto é, num “estado de novo”; esse “estado de novo” não poderá existir se não observardes a vossa própria mente, desde o momento em que eu começo a falar, a penetrar o problema.

O problema é o problema da luta, do conflito, da luta incessante entre “o que eu sou” e “o que deveria ser”, e conflito entre “o que é” e “o que poderia ser. A mente está sempre e sempre a forcejar, a lutar, acomodar, ajustar, controlar, em conformidade com “o que deveria ser”. Isto é tudo o que sabemos. “O que deveria ser” é para nós mais importante do que “o que é”. Temos esses padrões ideológicos a que o espírito se está constantemente ajustando. Esse ajustamento é ação da vontade, mediante compulsão, persuasão. E daí resulta luta, e a luta produz frustração. Isto não é simplificação exagerada, é o que de fato acontece com cada um de nós: “eu sou isto, e no futuro deverei ser aquilo”. Mas o futuro, o que deveria ser, o ideal, é um oposto, uma contradição do que é. A mente percebe que eu odeio e diz “devo amar”; a mente, por isso, fica perenemente ocupada em ajustar-se, forçar-se, disciplinar-se, para alcançar um estado a que eia chama amor. Eu não conheço o amor, mas a minha mente está perseguindo o que ela pensa ser o amor, e que é só uma ideia, o oposto daquilo que eu sou. A projeção de uma ideia do que seja o amor não é o amor e, sim, uma reação daquilo que eu sou, que é: “eu odeio”. Na minha luta para apoderar-me daquele amor, eu sou violento e tenho a ideia da não violência; e, assim, faço exercícios, disciplino, controlo, moldo a minha vida, segundo aquela ideia, aquele padrão, mas nunca chego a preencher o padrão. Isso acontece porque, quando o alcanço, logo a minha mente inventa outro padrão. E assim prossegue, a mudar de padrão continuamente. Por essa razão, a minha vida é uma série de frustrações, sofrimentos e lutas por uma coisa após outra. É, pois, a minha vida uma sucessão de lutas e desditas, que é só o que eu conheço.

O importante não é “o que deveria ser” mas “o que é”. “O que é”, o que eu conheço, este é que é o fato. A outra coisa não existe. Se minha mente puder dar toda a atenção ao que é, sem criar o oposto, descobrirá então o que é o amor — não o amor como oposto do ódio. Mas o problema de compreender o que é o ódio requer percebimento sem condenação. Porque, no momento em que o condeno, estou odiando, já criei o oposto. Espero esteja expondo a questão com clareza e simplicidade. Quando se pode ver essa coisa, isto, com efeito, é uma extraordinária libertação de todas as frustrações que temos criado. Somos um povo infeliz; nossa religião é infeliz, sendo produto da infelicidade, da luta, da frustração; nossos deuses e até a nossa cultura resultam dessa frustração. Temos, pois, de compreender, não apenas verbalmente, intelectualmente, mas mui profundamente o fato que diz respeito ao que “eu sou”, “o que é”. O fato é este: “eu odeio; eu seu violento” — só isso. Mas a mente não quer aceitar esse fato e, por essa razão, cria o oposto; isto é, condena o fato, criando, assim, o oposto. Essa condenação é justamente o mecanismo de criação da dualidade. Mas se eu puder perceber que a minha mente condena e que pela condenação eu crio o oposto e, portanto, dou origem à luta, essa própria compreensão do fato de que a condenação cria o oposto e, conseguintemente, o conflito, esse próprio percebimento põe fim ao mecanismo da condenação — não pela compulsão, mas simplesmente pelo percebimento do fato. Tenho, pois, diante dos olhos só o fato de que odeio, sem nenhuma projeção mental do oposto.

Compreendeis, senhores, que liberdade extraordinária é esta, quando não temos nenhum oposto? Pode-se então apreciar o fato. E então a coisa que eu chamava “ódio” — visto que não a condeno mais — já não é ódio. Mas eu condeno o ódio e desejo transformá-lo em amor, porque minha mente tem sua raiz cravada no passado. Essa avaliação é o julgamento proveniente do passado; e com esse “fundo” é que eu aprecio o ódio e desejo transformar esse ódio naquilo que chamo amor; isso produz conflito, luta, com todas as suas disciplinas, controles e supostas meditações.

Ora, pode haver um estado livre do passado? Pode haver um estado livre do pensamento que se projeta no futuro? Eu odeio; esse ódio é o resultado do passado, uma reação; e o pensamento, então, o condena, e o projeta no futuro, assim formulado: “devo amar”. Eis como o pensamento se enraíza no passado e no futuro, tornando-se contínuo; e nessa continuidade há a luta para prosseguir, na forma do oposto. O que estou procurando averiguar é se a mente pode em algum tempo ser totalmente livre, e não ter raiz alguma. Quando a mente tem raiz, ela tem de “projetar-se”, estender-se; esse estender-se é o oposto; por isso o pensamento é contínuo, nunca chega a um fim; ele é a continuidade de meu condicionamento, do meu “fundo”, estendida para o futuro; e por essa razão não há liberdade. Estou procurando averiguar se é possível a mente achar-se num estado em que se não esteja enraizando mediante as experiências. Sem se achar naquele estado, a mente não é livre, vendo-se sempre em conflito. Por conseguinte, para a mente que tem raiz, há sempre frustração; e, não importa qual seja a sua atividade — social, cultural, religiosa — essa atividade é sempre produto da frustração; não é, por conseguinte, a verdadeira transformação religiosa, em que há a cessação de todas as projeções do pensamento que se enraízam na mente.

Pode a mente existir, sem raiz alguma? O mais que se pode fazer é averiguar, ver se a mente pode existir sem raiz — viver, existir, como o mar, sem raiz alguma, sem estar firmada num determinado lugar, numa determinada experiência, num determinado pensamento. Senhor, só a mente que não tem raiz pode conhecer o Real. Porque, no momento em que a mente experimenta e instala a experiência na memória, esta memória se torna a raiz, o passado; e esta memória, então, fica a pedir mais e mais experiências; por esta razão, há a constante frustração do presente. A frustração implica — não é verdade? — a condenação do estado da mente, tal como ela é. A mente, tal como é, está cheia da tradição, do tempo, de lembranças, ódio, ciúme. Pode-se compreender essa mente, sem condenação — isto é, sem se criar o oposto? No momento em que condenamos “o que é”, não o compreendemos. A compreensão do que é só pode ocorrer quando não há condenação; só então se pode estar livre do que é. Para mim, a mente que não tem a luta da dualidade é que é a mente verdadeiramente religiosa, e não a que está lutando para vencer a cólera, não a mente que está lutando para se tornar não violenta; esta só está vivendo na luta do oposto. É só a mente verdadeiramente religiosa que não tem o conflito do oposto; ela não conhece a frustração; não luta para se tornar alguma coisa; é “o que é”. Com a compreensão do que ela realmente é, a mente já se não está enraizando na memória.

Tende a bondade de escutar o que estou dizendo, não importa se verdadeiro ou falso — procurai descobrir o fato por vós mesmos. A mente que tem continuidade na memória, estará sempre frustrada, estará sempre a lutar para ser algo. “Vir a ser” é enraizar-se — numa ideia, numa pessoa, num objeto. Quando a mente se enraíza, surge o problema: “Como poderá ela libertar-se?”. A sua libertação assume então a forma do oposto, e daí resulta a luta para achar a maneira como libertá-la. Se se perceber, porém, se se compreender, se se estiver apercebido de como a mente está sempre a enraizar-se em cada experiência, em cada reação, então, nesse percebimento, não há escolha, não há condenação, por conseguinte não há a criação do oposto, consequentemente não há luta. Então, a mente não tem nenhuma raiz, mas está viva; não tem continuidade, mas se acha num “estado de ser” em que não existe o tempo. Parece-me importante compreender isto, não apenas verbal ou intelectualmente, mas vendo, de fato, como a mente está criando a luta e o mecanismo dual.

A ação da mente sem raiz é criadora, porque essa mente já não se acha num estado de frustração, de onde pinta, escreve, ou busca a Realidade. Essa mente não busca, o buscar supõe a dualidade; o buscar é luta, é estender o pensamento do passado para o futuro e deixá-lo firmar-se na raiz do futuro. Se a mente puder perceber esse fato, estar apercebida desse fato, dar-se-á uma extraordinária libertação de tudo quanto é luta; por consequência, haverá felicidade e bem-aventurança; e essa felicidade e bem-aventurança não é o oposto do sofrimento, da desgraça ou da frustração. Isto não são meras palavras; falo de estados diretos de que a mente se apodera, instalando-se na experiência; estados que, com efeito, não podem ser conhecidos por uma mente que luta para se tornar o oposto.

Tudo isso requer — não é verdade? — o percebimento do mecanismo mental. Refiro-me ao percebimento do mecanismo total da existência: sofrimento, dor, amor, ódio, sentimento, ilusões — pois tudo isso constitui a mente. Não e, pois, importante ver como a vossa mente funciona, ver como opera, como “projeta”, como se apega ao passado, à tradição, às inumeráveis experiências, impedindo assim a experiência da Realidade? Estar apercebido disso tudo não é saber o que dizem os modernos ou antigos instrutores, ou os psicólogos, ou os gurus. Nenhum valor tem estar-se informado sobre o que outros disseram, porque cada um tem de descobrir por si mesmo o mecanismo de sua própria mente. Esse descobrimento não é possível se nos retiramos para uma caverna nas montanhas, mas sim no viver de dia para dia. É preciso também perceber que aquilo que descobrimos já se pode ter tornado a raiz que determina as nossas ações; isto é, temos de descobrir como a mente pode servir-se dos seus próprios descobrimentos como uma experiência que determina o que ela pensa, de modo que essa experiência se torna o nosso obstáculo, levando-nos à frustração. Ver tudo isso é percebimento. Esse percebimento só pode ocorrer quando não há condenação — o que, com efeito, significa a quebra completa de todo o condicionamento da mente, para que a mente possa achar-se num estado em que já não crie raízes, sendo por conseguinte uma mente sem âncora e havendo, por­tanto, a experiência real. Só esta mente é capaz de ver e conhecer aquilo que é eterno.

Senhores, quando eu estiver respondendo a estas perguntas, observai a vossa própria mente criando a dualidade. Vede como a mente espera uma resposta. Ela faz uma pergunta por causa de sua própria frustração, de seu sofrimento, de suas tribulações e confusão. Faz a pergunta e a converte num problema, e fica à espera de uma resposta. Ao receber a resposta, diz: “como posso chegar lá?” O como é a luta — a luta entre o problema e a solução, entre “o que é” e “o que deveria ser”. O método é o como, o método é luta; o método, por conseguinte, pela sua própria natureza, produz a frustração. É, portanto, o mais estúpido dos espíritos aquele que diz: “como posso fazer isso?”, “como posso chegar lá?”, “Eu sou isto e desejo ser aquilo, mas como?”.

O importante é “o que é”, não “o que deveria ser”. A compreensão do que é requer a cessação da condenação, e nada mais. Não digais “como posso deixar de condenar?” — porque então vos vereis de novo dentro do mesmo antigo processo. Mas vede a verdade contida na asserção de que o condenar produz a luta e, portanto, a dualidade, e portanto a luta em direção ao oposto. Vede isso, simplesmente, percebei simplesmente o fato; ocorre então a revelação do é, que é o problema.

Krishnamurti, Sexta Conferência em Bombaim
24 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente

O problema da revolução religiosa


O problema da revolução religiosa

Se pudéssemos encontrar, por nós mesmos, uma fonte perene de felicidade, de bem-aventurança, estariam resolvidos, parece-me, a maioria dos nossos problemas. Andamos incessantemente em busca dessa fonte, em todas as nossas relações, em tudo o que fazemos, com motivo e, às vezes, sem motivo algum. As coisas que acumulamos como conhecimento e as coisas do coração e da mente, constituem um seguro indício de que ansiamos por encontrar aquela fonte inesgotável, de cujas águas possamos viver e ser felizes e criar. Mas, essa fonte parece esconder-se de nós. Estamos sempre a perseguir um fantasma e nunca temos a coisa real. A meu ver, se refletirmos devidamente sobre o que estivemos apreciando nas últimas reuniões — ou seja o problema da revolução religiosa — e soubermos promover essa revolução, ela poderá levar-nos àquela fonte e fazer surgir em nossa vida aquela bem-aventurança. A revolução total depende de um “processo”, uma progressão? Depende de algum método? A revolução total não se opera através de nenhum processo, através de ajustamentos graduais, renúncias, resistência, disciplina. A revolução total está no momento. Qualquer outra espécie de revolução ou mudança, assim me parece, é “mecanismo” de ajustamento a determinado padrão, a um ideal, a uma Utopia, ou o que quiserdes; é um mecanismo gradativo; e tal mecanismo, tal método de acesso gradual — o chamado método evolutivo — não o considero religioso; será científico, mas, fundamentalmente, não é, de modo nenhum, religioso. Afigura-se-me muito importante compreendermos esse estado religioso para nos acharmos nele e não para chegarmos a ele. E essa compreensão é impossível, acho eu, se pensamos em termos referentes ao tempo, tais como: “alcançar, chegar, praticar certo método, seguir determinado caminho’’, para termos a revelação daquela extraordinária ação criadora do atemporal. O necessário é morrer todos os dias para todas as coisas que sabemos, todas as coisas que experimentamos, tudo o que aprendemos. O importante é o morrer todos os dias, mas não como morrer.

Antes de irmos por diante, importa sobremodo averiguar-se a maneira como escutamos. Se uma pessoa é intelectual, se leu muitos livros, se adquiriu muita erudição e tem o intelecto e a mente completamente cheios, essa pessoa é capaz de escutar? Os seus conhecimentos, justamente, não colidem com as coisas que ouve dizer, impedindo-lhe o descobrimento da verdade? Pode o seu intelecto ser muito penetrante e capaz de exame racional progressivo; mas, pode essa mente, a mente dita intelectual, alcançar aquele estado? Aquele estado, por certo, só pode existir depois de cessar a atividade da mente. Não vos parece importante, por conseguinte, que essa mente intelectual abandone, se possível, todas as coisas que aprendeu, que estudou, que leu? Estou bem certo de que, de outro modo, a mente intelectual nunca encontrará aquilo que é real. A mente intelectual é muito susceptível de ilusões; pelo processo da análise, ela exclui e elimina, e, tendo medo à incerteza, apega-se a uma dada crença — como procede a maioria dos intelectuais.

Não é importante que aqueles de nós que não somos muito intelectuais, saibamos escutar? O indivíduo comum, que luta, que se sente infeliz, tem o sentimento de estar perdido; não sabe onde encontrar conforto, onde achar a compreensão, não sabe em quem confiar; porque todos os políticos e os chamados guias religiosos não o conduziram a parte alguma, a sua vida é de confusão e contradição, sempre crescentes. Com sua mentalidade vulgar, medíocre, vive numa luta incessante para ser alguma coisa. Não é muito importante que ele aprenda a escutar corretamente? O homem medíocre, o homem mediano anseia por um método de ação imediata; vendo-se tolhido pelas circunstâncias de uma vida que se tornou rotina, cheia de tédio e de frustração do seu “eu”, ele deseja saber o que deve fazer. Não é muito importante, para a mente que está sempre a lutar por um fim, um resultado, um objetivo, algo que lhe sirva de guia, não é muito importante que essa mente saiba escutar, já que estamos sempre traduzindo o que ouvimos em termos de ação? — o que não significa que a ação não seja importante. Em meu sentir o homem feliz sabe viver, e viver é a sua ação; o homem infeliz, porém, está perenemente em busca de um padrão de ação.

Sendo os mais de nós tão infelizes, vivendo a lutar e a buscar um pouco de luz ou de felicidade, interessa-nos mais escutar com o fim de encontrarmos algum padrão de ação; estamos todo entregues a esta busca vã, do padrão de ação, e perdendo a arte de escutar — escutar não só o que se está dizendo aqui, mas tudo o que nos cerca: o bramido do mar, os cantos dos pássaros, os gritos das crianças, os livros que lemos. Não escutamos, porque nossa mente está toda ocupada e nossas ocupações são triviais. Mesmo a mente que se ocupa ou se interessa pela busca de Deus é trivial, porque está ocupada. Só a mente livre, tranquila e desocupada conhece a felicidade e tem espaço infinito; a essa mente o Eterno se apresenta. A mente cheia de inquietações, preocupada com a salvação da humanidade, reformas sociais, aquisição de conhecimentos, nunca será capaz de escutar, porque, nela, não existe espaço, não existe um vazio onde possa medrar uma coisa nova, uma semente nova. Parece-me muito importante, tenhais na mente um tal espaço desocupado, tranquilo, livre de lutas, uma luz a brilhar no meio da escuridão; mas não o podemos ter, quando a nossa mente está toda ocupada, perseguindo alguma coisa, pedindo, rogando.

E há, também, espíritos não amadurecidos, que escutam como estudantes, i.e., com o fim de aprender, de coligir conhecimentos, para viverem de acordo com eles; esses querem exemplos, símiles, querem que se lhes ensine a maneira de agir e de escutar. Ora, todos esses espíritos — o estudante, o homem comum, a pessoa dita intelectual — estão ocupados; neles, não há espaço, nenhum vazio onde se possa descobrir algo de real ou de falso. Por certo, é necessário haver algum espaço na mente, no qual possa germinar uma semente nova — a semente que se não obtém através de lutas, nem de um dado processo, nem pela evolução deliberada do imitador, nem por meio de exercícios. É necessário haver aquele pequeno espaço, na mente, por mais ocupada que ela esteja com outras coisas, e aquele pequeno espaço deve permanecer não perturbado, não contaminado: lá poderá brotar a fonte eterna da felicidade. Mas a criação daquele espaço não depende de nenhum ato volitivo. Não se pode dizer: “como irei criá-lo?”. No momento em que se pergunta “como?”, já a mente está ocupada.

Se se percebe a importância, a beleza pura, a necessidade da quietude, haverá então aquele espaço; aquele espaço significa o morrer para todas as coisas sabidas, todas as lembranças, todas as experiências, todas as acumulações de saber e conhecimento. É um fato óbvio que nós morremos, que nosso corpo está sofrendo uma constante modificação; tanto tem fim o nobre como o ignóbil. A mente, porém, recusa-se a morrer para as coisas de ontem. Estamos transportando essas coisas de dia para dia, e esse transportar se efetua por meio da memória, que lhes dá essa continuidade. Esperamos que, dentro dessa continuidade, desse contínuo aprender, adquirir, modificar, alterar aqui e ali, operar-se-á uma revolução, uma transformação radical. O que é capaz de continuar não é revolução religiosa. Só quando o pensamento termina e não tem mais continuidade, pode haver um morrer, para a mente, e nesse morrer pode ocorrer a transformação radical.

Escutai, simplesmente, o que estou dizendo. Não digais: “Como poderei alcançar as coisas de que estais falando?”. Eu não estou falando de coisa alguma; apenas descrevo o estado da mente, desse mecanismo, desse organismo perpetuamente barulhento e que nunca é capaz de escutar o silêncio. Nossos pensamentos estão em movimento constante; e o pensamento é a continuidade de ontem, ou seja o mecanismo do tempo, e no mecanismo do tempo jamais haverá a possibilidade de transformação radical; nele só pode haver mudança, fuga, modificação, nunca, porém, revolução real, religiosa, em que não existe mecanismo algum, mas só ser. Por exemplo: um homem que é ávido, por mais que se exercite, se controle e discipline — e isso é o mecanismo do tempo — nunca chegará a uma condição onde possa achar-se o estado de não avidez. A libertação da avidez não é um processo, mas um estado que tem de acontecer; e esse acontecimento só pode verificar-se pelo morrer; porque é só quando se chega a um fim, que algo novo pode surgir.

Recusa-se a mente a findar, porque a mente é resultado do tempo, de séculos de compulsão, conformação, imitação; ela só conhece luta, julgamento, e os valores baseados naquela luta; e, tentando transformar-se pela luta, diz ela: “tenho de transformar-me; é necessária uma ação de minha parte, que produza a felicidade”. Daí as revoluções econômicas, científicas ou sociais, mas nunca a real revolução religiosa, a única revolução verdadeira. Religião não é adoração de ídolos, observância de ritos, nem cultivo dos ideais da mente. Por certo, religião é coisa muito diferente da repetição do que foi dito pelos antigos instrutores, nos Vedas ou nos Upanishads; tudo isso tem de acabar, consumir-se, no fogo do silêncio.

A dificuldade consiste em que nunca desejamos estar incertos e temos medo de perder tudo. A mente, pois, vendo-se incerta, busca a certeza, criando assim o temor; do temor nasce a imitação, o estabelecimento da autoridade — política, religiosa, ou a da própria volição — visto que a mente exige um estado de continuidade, onde esteja certa. Mas a mente que anda em busca da certeza, nunca tem espaço onde seja possível o aparecimento do Real.

Parece-me, por conseguinte, que vós que estais me escutando não deveríeis mostrar tanto interesse no “como”, porém, antes, em “ser” — ser, ter algum espaço na mente, onde não haja nenhum movimento de pensamento, uma vez que o pensamento é a continuidade de ontem. O pensamento nunca produzirá um mundo novo. O intelecto nunca produzirá um Estado novo. Só quando termina o pensamento, quando estou morto para todos os dias passados, só então existe a possibilidade daquela revolução religiosa, tão necessária para a criação de um mundo novo. Todos os deuses devem desaparecer, para que o Deus real apareça. Temos agora tantos deuses em nossa mente, que se torna impossível o aparecimento do Deus real. Percebei, simplesmente, a verdade ou a falsidade disto, escutai o fato, quer ele seja verdadeiro, quer não. Conhecer simplesmente o fato, isto, em si, é libertação. Para se conhecer o fato, faz-se necessário o desaparecimento do ontem; as nossas lembranças, o enriquecimento de nossas experiências, o saber que cada um de nós busca, para estar sempre certo, tudo isso tem de desaparecer; porque todas essas coisas são de fabricação da mente.

A mente ó resultado do tempo. Vós, como “eu”, como “ego”, sois um produto da mente. O caráter, as tendências, as diversas disciplinas, os diferentes métodos de controle e persuasão, tudo isso é resultado do tempo, produto do tempo. A mente é tal como a fez a natureza, o ambiente, através da cultura, do medo, da imitação, da comparação, da chamada educação; essa mente, por mais que progrida e por mais que lute, não pode em tempo algum promover uma ação emanada daquela fonte de felicidade, derivada da revolta para encontrar a Realidade. Com efeito, é necessário percebais a simplicidade dessa coisa — não a simplicidade exterior, mas a simplicidade daquele estado em que não há esforço para chegar, em que não há luta para se ser algo, mas que equivale a ser “como a flor”; a flor é ela própria perfume, beleza — não há esforço, nem luta.

A mente que luta para alcançar a eterna beleza daquele perfume, nunca será capaz de conhecê-la. A mente que luta, jamais pode conhecê-la; todos os seus ritos, todas as suas experiências, todos os seus sacrifícios são feitos em vão, porque lá está sempre presente o “eu”, o centro de todo o seu pensar. Para esse pensar temos de morrer todos os dias. O renascimento em cada dia novo é a revolução religiosa.

Consideremos agora o problema do isolamento. Quando tendes um problema, não vos isolastes? Não estais em comunhão, porque vossa mente se acha tão preocupada a respeito do problema e da solução, que ficastes fechado para a real compreensão do problema. Ocupando-se com o problema, a mente se está isolando. Não ponhais a mente a trabalhar, mas vede o que é que cria o problema. É a mente. A mente, no seu isolamento, naquele estado de não comunhão, tem o seu problema, e, por essa razão, andamos a fazer perguntas, em busca de uma resposta que nos “abra a porta” do problema. Estamos, pois, a procurar uma chave, em vez de darmos atenção ao problema. A mente ocupada a respeito do problema não pode, examinar o problema.

Temos tantos problemas na vida, não só os problemas da superfície — econômicos e sociais — mas também os problemas inconscientes, profundos, que governam e moldam os acontecimentos exteriores. Esses problemas são o resultado, o fruto da nossa confusão, da nossa luta interior. A mera alteração superficial das condições econômicas, não pode quebrar aquela entidade interior que molda as coisas a seu talante. Assim, para compreender realmente o problema, não deve a mente estar ocupada com ele. Mas, em geral, temos tanta ânsia de resolver o problema que nos desafia, que desejamos uma resposta imediata, esta resposta é para nós importantíssima, porquanto pensamos que, tendo a resposta, teremos resolvido o problema. A mente que busca a resposta é, com efeito, uma mente muito superficial, medíocre.

Todos somos educados para acharmos respostas, para sermos ensinados, para copiarmos e fazermos o que nos mandam fazer. Ora, sem dúvida, a vida é um “processo de viver dia por dia”, e o viver não contém respostas. A mente que só está à procura de uma resposta para o problema, achará essa resposta, mas o problema permanecerá e tornará a apresentar-se sob outra forma. Nessas condições, se eu for capaz de compreender o problema, de prestar-lhe a devida atenção, o problema estará resolvido. Mas, como não sou capaz de fazê-lo, fico procurando a solução. Não posso atender ao problema, se o condeno. É esta a circunstância real, a circunstância básica que nos impede a compreensão do problema. Ele permanece, enquanto estamos julgando, condenando, comparando. Senhor, se não condenais, se não julgais ou comparais, existe algum problema para a mente?

A mente que condena, julga, analisa, compara, cria o problema. Não digais: “Como devo proceder?” Se aprenderdes um método, ele vos dominará a mente, e de novo lá estará o problema. Mas, se se perceber a verdade contida na asserção de que o condenar, o julgar, o comparar é que cria o problema, poder-se-á então apreciar a inteira significação do problema.

Krishnamurti, Quinta Conferência em Bombaim
21 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente

A verdadeira revolução é espiritual

A verdadeira revolução é espiritual

Como salientei no último domingo, a verdadeira revolução, a transformação radical não pode realizar-se no nível físico, mas, única e fundamentalmente, no nível do espírito, e esta noite desejo aprofundar mais ainda esta questão.

A verdadeira revolução é a religiosa, e não a revolução de ordem meramente econômica ou social. Uma revolução fundamental só pode verificar-se quando o homem é verdadeiramente religioso; porque outra qualquer espécie de revolução é puramente uma continuidade, sob forma modificada, do que já existe. Importa compreender-se o que entendo por “revolução religiosa”. A menos que haja uma transformação no nível fundamental do nosso pensar, do nosso ser, as alterações superficiais, de qualquer natureza que sejam, as persuasões, as compulsões, ou os ajustamentos ao ambiente, não constituem a verdadeira transformação. Tais modificações só podem acarretar maiores danos e sofrimentos. A revolução, pois, tem de ocorrer no nível denominado “religioso”, o qual desejo agora considerar.

Antes disso, porém, repito — acho muito importante saber escutar, porquanto nós não escutamos verdadeiramente. Ouvimos palavras, conhecemos-lhe o significado geral e com isso nos satisfazemos. Mas escutar é coisa toda diferente. A meu ver, quando se sabe escutar, esse escutar, por si só, produzirá aquela revolução fundamental. Escutar não é um esforço, uma vez que o esforço implica continuidade de propósito, continuidade da memória em determinada direção; e a memória é diretora, não é criadora. O escutar, quando sabemos escutar, é uma força verdadeiramente criadora, porquanto no escutar não se requer absolutamente a participação da memória. Quase todos nós, porém, escutamos com uma atitude de resistência. Se digo alguma coisa de que não gostais, ou se digo algo de que gostais, vos pondes imediatamente a julgar, repelindo o que vos desagrada e aceitando o que vos agrada; mas isso não é escutar. O escutar é um processo em que a mente está verdadeiramente tranquila, não está interpretando o que ouve, não está traduzindo, mas, sim, acompanhando, sem esforço nenhum — uma vez que o esforço é de efeito destrutivo. Quando se sabe escutar, revela-se em plena luz o significado do que se diz, sua verdade ou falsidade; mas se se opõe a uma sugestão outra sugestão, a uma ideia outra ideia, nunca se descobrirá a Verdade ou a falsidade de uma asserção. Acho muito importante compreender o que estou dizendo neste momento, isto é, que cumpre descobrir a verdade ou a falsidade de tudo o que ouvimos dizer. Cumpre escutar o que se diz, sem se lhe opor uma opinião, uma lembrança, uma experiência anterior. O que estamos tentando, nestas palestras, não é convencer-vos a respeito de coisa alguma, não é persuadir-vos a adotar uma determinada atividade, pois isso seria mera propaganda, sem nenhum valor. O que estamos tentando — vós e eu juntos — é promover aquela revolução radical no processo do desenvolvimento humano total, e não num nível determinado. Parece-me, portanto, sumamente importante saber-se escutar. Não vos estou sugerindo nenhuma linha de ação determinada, não vos ofereço nenhum padrão de pensamento, nenhuma filosofia. A revolução segundo um padrão não é revolução. Quando sabemos em que é que vamos ser transfor­mados, não há transformação alguma. Mas, se nos transformamos em algo que não conhecemos — o desconhecido — isso é revolução. E desejo nesta noite, se possível, examinar esta questão de modo bastante simples. Temos aí um problema muito complexo, mas eu acho que, se for possível acompanhar tranquilamente, sem oposição nem resistência, o que se vai dizer, a fim de se compreender a sua verdade ou falsidade, então essa verdade ou falsidade produzirá sua ação própria.

Para a maioria de nós, religião é dogma, crença, quer se trate da religião comunista, da cristã ou hinduísta. O dogma, a tradição, os rituais, as esperanças, a luta perene para “vir a ser” alguma coisa, alcançar o ideal — o homem ideal, o amor ideal, o Estado ideal — é o que chamamos religião. Mas isso, por certo, não é religião. Religião não é conformidade, religião não é uma busca, impulsionada pelo pensamento contínuo. Religião é coisa totalmente diversa. Eis porque muito importa compreender essa palavra, não de acordo com o que pensais ou o que eu penso, mas compreender-lhe a significação, toda a sua significação e alcance. A mente é capaz de criar qualquer forma de ilusão, ilusão que pode ser o ideal, ou Deus. Mas o culto dessa ilusão não é religião. A ilusão, a “projeção” da mente que — sob qualquer forma ou em qualquer nível que seja — quase todos nós adoramos, é uma coisa nascida da esperança, nascida do desejo, da ânsia. Esse desejo pode criar uma imagem; e a imitação, a busca desse ideal, o “tornar-se esse ideal” está sempre confinado na continuidade da mente. A mente não pode produzir nenhuma revolução, nenhuma transformação radical. O que poderá produzir a revolução radical, a revolução total no pensar do homem, é a cessação da continuidade da mente como pensamento.

Tende a bondade de escutar. Não compareis o que estou dizendo com o que tendes aprendido ou lido nalgum livro religioso ou outro qualquer. Não compareis. Se comparais, não estais então escutando o que digo. O importante é escutar o que se está dizendo. Quando comparais, nunca encontrais a verdade ou a falsidade do que ouvis dizer, porque a vossa mente está então ocupada com a comparação e não com a compreensão do que é. Assim, pois, as invenções da mente, quer sejam as de ordem puramente física, científica ou abstrata, quer sejam as invenções consistentes em “projeções” dela própria, em ideais dela própria, a que ela chama Deus, Verdade, Amor, — o copiar dessas projeções, o esforço para alcançá-las, tudo isso é continuidade da mente.

Sabemos o que é a inveja, e temos uma ideia de que ser verdadeiramente religioso é achar-se num estado de “não-inveja” O homem invejoso, evidentemente, não é um homem religioso, tão pouco como o é o homem ambicioso, seja no nível físico, seja no nível psicológico. Ora bem, ouvindo dizer que a inveja não é um sentimento religioso, e verificando ser a inveja uma série de lutas e dores e que ela só traz sofrimentos, diz a mente: “Não devo ser invejosa” e isso importa em “vir a ser” — a continuidade do estado de ser invejoso, como o denominamos. O ideal, a perseguição do ideal, que chamamos “vir a ser não-invejoso”, é ainda “inveja”.

Estamos falando agora sobre a cessação do “vir a ser”, na qual, tão somente, é possível aquela revolução que é a verdadeira revolução religiosa. Parece-me importante compreender isto. Nossa educação, nossa cultura, as influências que nos cercam, nosso condicionamento, tudo é “vir a ser”. Este é um fato óbvio, não achais? Sou pobre e quero tornar-me rico. Sou invejoso ou violento ou irascível, e acho que devo tornar-me pacífico, não ambicioso — quer dizer, devo “vir a ser alguma coisa”. Assim, nosso condicionamento e cultura, no seu todo — social, econômico, religioso — é “vir a ser”, é processo de “vir a ser”. Isto não é um fato? Observai o funcionamento da vossa mente, para verdes que é um fato evidente. O “vir a ser” é continuidade do “eu”, da ideia, um mecanismo constante; e esse mecanismo nunca poderá produzir uma revolução. Só é possível revolução, modificação, transformação radical, ao cessar o “vir a ser” — não quando me torno “não invejoso”, mas quando não há mais inveja.

Consideremos o ideal da “não-violência”. Dizeis: “Tornar-me-ei não-violento”. Afirmais que ireis praticar o ideal da “não violência”. Isto é, tornar-vos-eis não-violento. Sois violento; mas, mediante um processo de meditação, exercício, disciplina, vos tornareis “não violento”. A “progressão” da violência para a não violência, não é revolução; é meramente um processo de “vir a ser”, e, consequentemente, não há transformação nenhuma. A mente que se acha num constante “vir a ser”, numa constante busca, deixando-se constantemente persuadir, condicionar, nunca se tornará “não violenta”; nessa mente nunca será possível uma revolução fundamental. Só quando a mente reconhecer o processo de “vir a ser” no tempo, e reconhecer que a cessação do “vir a ser” é o ser, só então haverá o ser; nesse ser, e só nele, é possível a revolução radical.

Pois bem, se escutardes, vereis que enquanto a mente — que é o centro de todo “vir a ser”, já que a mente é resultado do tempo e o tempo é contínuo — enquanto a mente estiver cultivando um ideal e “se tornando” alguma coisa, não poderá haver transformação. Só pode haver revolução, revolução radical, revolução total no desenvolvimento do homem, quando cessa o “vir a ser” — e não quando a mente “se torna” uma mente perfeita; a mente não pode tornar-se perfeita, a mente não pode ser livre e sem “vir a ser”, porque a liberdade implica a cessação da continuidade do que foi. Assim, pois, ao reconhecerdes a verdade a esse respeito, haverá o silêncio da mente, e isso não significa que a mente se tornará silenciosa; o silêncio não pode ser alcançado, a mente não pode tornar-se silenciosa. Porém, quando percebe que “vir a ser” é processo de luta, processo de esforço, e que o esforço não pode produzir a paz, porque o que foi não sofrerá solução de continuidade, no tempo, — quando a mente percebe bem isso, não há mais “vir a ser”. Só com o terminar do “vir a ser”, há o silêncio mental.

Prestai atenção a isso, por favor. Quando há silêncio, nesse silêncio não há “vir a ser”. Ninguém pode “tornar-se” silencioso. Se se faz algo para se tornar silencioso, o que se obtém é apenas a continuação de uma atividade, a que se dá agora o nome de “silêncio”, mas que tinha antes o nome de sofrimento. Deste modo, a compreensão do “vir a ser” é o começo do silêncio, e esse silêncio é o “estado de ser”, é a compreensão total do mecanismo do homem; e esse ser é revolução, a transformação total do nosso existir; só então há a possibilidade de surgir o atemporal, o Eterno. Só são verdadeiramente revolucionários os homens que alcançaram aquele estado, porque já não pensam em “termos” de ajustamentos econômicos, sociais ou temporários .

Acho da maior importância compreender isso, porque os mais de nós, principalmente neste país, estamos contaminados pela praga do ideal, do cultivo do ideal. Todos queremos tornar-nos a pessoa ideal, o ser perfeito; por essa razão, praticamos disciplinas, sustentamos uma luta perene para nos tornarmos alguma coisa, e por isso nunca somos, em momento algum. Estamos sempre “nos tornando”, e nunca somos; nenhum momento é cheio, para nós; só o amanhã está cheio. Dessa maneira, perdemos o movimento da vida; a plenitude da vida. Se observardes a vossa mente, vereis jamais estamos quietos um minuto, mas sempre tentando ficar quietos. Só conhecemos o esforço, só conhecemos o “vir a ser”.

Conhecemos o ideal do silêncio, nossa mente persegue constantemente esse ideal, lutando, disciplinando-se, controlando-se, moldando-se, para alcançar aquele silêncio em que o Real pode manifestar-se; mas o Real nunca surgirá naquele silêncio, pois aquele silêncio é “vir a ser”. Só quando a mente compreende, na sua totalidade, o processo de “vir a ser”, perseguir, lutar, moldar-se, para ser outra coisa, só então há a possibilidade de cessar o “vir a ser” e operar-se a revolução, só então a mente é verdadeiramente religiosa. O homem religioso não é aquele que se torna um Sanyasi, que luta para “vir a ser”, alcançar virtudes ou tornar-se um “homem ideal”. O homem religioso é aquele que desistiu de “vir a ser”; por essa razão, para ele há só um único dia, um único momento — e não o momento de ontem, ou o momento de amanhã. Esse homem é o verdadeiro revolucionário; porque ele se integrou na realidade.

Releva não apenas escutar o que se diz, mas que se saia daqui como um ente humano completamente transformado — não por ter adquirido ideias novas, uma nova perspectiva das coisas, valores novos, ou por ter abandonado a tradição — que são puerilidades, atividades próprias da imaturidade. O importante é a mente não deixar espaço em si senão para o “estado de ser”.

Nosso espírito está sendo continuamente moldado por nós mesmos, pelas circunstâncias. Estamos sendo empurrados em todos os sentidos, sendo condicionados, como hinduístas, católicos, cristãos ou comunistas. Enquanto nos acharmos nesse estado, não criaremos um mundo novo. Só o homem que nenhuma outra religião tem senão a religião do “ser” — o “estado de ser” não tem nenhum espaço, nenhum canto onde a mente possa “vir a ser alguma coisa” — só ele criará um mundo novo.

Vós e eu temos de produzir um mundo novo — não o novo mundo ideados pelos comunistas, católicos ou capitalistas, mas um mundo totalmente diferente, um mundo livre, livre no movimento do ser e não do “vir a ser”. Nunca é livre o homem no “vir a ser”; está sempre a lutar, sempre competindo para “vir a ser”; jamais é livre. Prestai atenção a isso, por favor. Escutai-o. Se escutardes verdadeiramente, vereis que existe a liberdade sem “vir a ser”. Só nessa liberdade sem vir a ser pode um homem ser realmente feliz; o homem que a alcança é o homem feliz, integrado naquele espírito fundamental que cria o mundo novo.

Como tenho dito, o importante ao fazer-se uma pergunta, não é achar a resposta, mas compreender o problema, porque só o problema existe, e não há resposta. Fazer uma pergunta é coisa fácil; mas penetrar o problema é extremamente difícil e relevante, porque, sabendo-se de que se constitui o problema, o próprio percebimento do problema é a compreensão do problema. No momento em que posso formular o problema com toda a clareza e simplicidade, a resposta se apresenta — não tenho de procurá-la mais longe. Mas, em geral, nós não sabemos o que é que constitui o problema. Vemo-nos confusos com respeito ao problema, e, naturalmente, por causa dessa confusão, procuramos soluções; e essas soluções só produzirão mais confusão.

Compreendei, de uma vez por todas, que não há respostas para a vida. A vida é uma coisa viva, e não uma coisa que tem fim; a vida é o problema. Se sou capaz de compreender, no seu todo, o “mecanismo” do problema, ele é então para mim uma coisa viva, e não uma coisa que me faz fugir e que me assusta. O importante, pois, não é a resposta, mas que se apresente o problema de modo claro e simples e se perceba tudo o que ele implica. Porém, a mente que busca uma resposta, é uma mente sem penetração, uma mente estúpida. A mente que percebe o problema no seu todo, na sua sutileza, que percebe seu conteúdo e significação, suas variações e sua extensão, torna-se, ela própria, o problema. Quando a mente é o problema, já não busca resposta alguma. Sendo o problema, ela se torna quieta; e no momento em que a mente está quieta, não existe mais problema algum. Releva pois, não indagar uma solução, mas dispor-mo-nos a penetrar o problema.

Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
10 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill