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segunda-feira, 9 de abril de 2018

A totalidade da consciência é medo

A totalidade da consciência é medo

[...] Sem dúvida, o medo surge quando buscamos a segurança, exterior ou interiormente; quando se aspira a um estado permanente, duradouro, nas relações, nas coisas mundanas, na confiança, que o saber proporciona, na experiência emocional. E, finalmente, dizemos que existe Deus, absoluta e eternamente permanente, em cujo seio encontraremos imperturbável paz e segurança para todo o sempre. Cada um está a buscar segurança nesta ou naquela forma, e sabemos como cada um atua — buscando a segurança no amor, na propriedade, na virtude, jurando a si mesmo ser bom, casto. Todos conhecemos os horrores inerentes à busca, secreta ou aberta, da segurança. E isso é medo, porquanto nunca averiguastes se existe segurança. Não o sabeis. Emprego estas palavras para denotar que se trata de um fato que desconheceis absoluta e completamente. Vós não sabeis se Deus existe ou não existe. Não sabeis se haverá ou não outra guerra. Não sabeis o que irá acontecer amanhã. Não sabeis se existe, interiormente, alguma coisa permanente. Ignorais o que irá suceder em vossas relações, com vossa esposa, vosso marido, vossos filhos. Não sabeis; mas deveis verificar isso, não achais? Deveis descobrir por vós mesmo que ignorais. E esse estado de não saber, esse estado de completa incerteza, não é medo; é a atenção plena, na qual podeis descobrir.

Vê-se, pois, que a totalidade da consciência — a qual inclui o superficial, o consciente, o oculto, e as extremas profundezas dos resíduos raciais, os “motivos”, tudo o que constitui pensamento — vê-se que a totalidade da consciência é, essencialmente, medo. A consciência é tempo, resultado de muitos dias, meses, anos e séculos. Vossa consciência de serdes francês se formou, historicamente, através de muitas gerações de propaganda. O fato de serdes cristão, católico, o que quer que seja, representa dois mil anos de propaganda durante os quais fostes obrigado a crer, a pensar, a funcionar e atuar segundo um certo padrão chamado “cristão”. E não ter crença alguma, ser o mesmo que nada parece coisa temível. Assim, a totalidade da consciência é medo. Isto é um fato, e não há concordar ou discordar sobre um fato.

Agora, que acontece quando vos vedes em presença de um fato? Ou tendes opiniões a respeito do fato, ou simplesmente o observais. Se tendes opiniões, juízos, avaliações do fato, então não o estais vendo. E não o vedes porque entra em cena o tempo, pois vossa opinião é produto do tempo, do ontem, de vossos conhecimentos anteriores. O ver realmente está no presente ativo, e nesse ver não existe medo. Isso é um fato real. O experimentar de um fato real é que liberta do medo a consciência total. Espero que não estejais muito cansados e possais experimentar isto, pois não podeis levá-lo para casa para lá refletir a seu respeito. Porque então não tem valor. O que tem valor é enfrentar o fato diretamente, e penetrá-lo. Vereis então que o todo de nosso mecanismo pensante, com seus conhecimentos, suas sutilezas, suas defesas e renúncias — que esse todo constitui o pensamento e é a causa real do temor. E vemos também que, quando há atenção total, não há pensamento; há, só, percepção, o ato de ver.

Havendo atenção, há completa tranquilidade; porque nessa atenção não há exclusão. Quando o intelecto pode estar completamente sereno — não adormecido, porém ativo, sensível, vivo, — nesse estado de atenta serenidade não existe medo. Há então uma qualidade de movimento que não é pensamento, absolutamente, que não é sentimento, emoção ou sentimento. Não é uma visão, nem uma ilusão; é um movimento de qualidade toda diferente, que conduz ao Indenominável, ao Imensurável, à Verdade.

Mas, infelizmente, não estais escutando, experimentando deveras, pois não examinastes isto realmente, não investigastes até este ponto. Por conseguinte, o medo não tardará a precipitar-se novamente sobre vós, qual uma vaga, submergindo-vos. Tendes, portanto, de examinar isto; e no examiná-lo está a solução. Esta é a base; e uma vez lançada a base, nunca mais buscareis, porque toda busca da Realidade se baseia no medo. Libertada do medo a mente, o intelecto, então podereis descobrir.[...]

PERGUNTA: Por que temem as crianças?

KRISHNAMURTI: Não é mais certo perguntar: “Por que temos medo?” É bastante óbvio por que as crianças temem. Estão rodeadas por uma sociedade baseada no temor. Os pais temem; e a criança necessita essencialmente de segurança e, quando se vê privada dela, sente medo. Vede, não estais enfrentando o fato de que há temor em vós.

PERGUNTA: É possível estar sempre no estado de atenção plena que excluí o medo?

KRISHNAMURTI: Na atenção não há exclusão; ela não é um mecanismo de resistência. Examinamos a questão do medo e vimos que não existe medo quando estamos atentos. Na atenção não há processo de pensamento “exclusivo”. Pode-se fazer uso do pensamento, mas não há então exclusão. Não sei se percebeis. Eu estou atento; neste momento sou todo atenção. Mas tenho de empregar palavras para comunicar-me convosco. As palavras só servem para a comunicação, e não para se experimentar o fato real.

E apresenta-se aí a questão de como manter a atenção plena. Ora, “manter” implica tempo e, portanto, a destruição da atenção. Se a atenção cessa, é deixá-la ir-se, e esperar que volte. Nunca digais: “preciso mantê-la”; porque isso significa esforço, tempo, pensamento e tudo o mais.

PERGUNTA: A memória está inteiramente associada ao conhecimento, ou é “aquele silêncio” uma memória de diferente qualidade?

KRISHNAMURTI: De todo o processo de conhecer, acumular experiência, resulta a memória, que é tempo. Conhecemos o mecanismo da acumulação das lembranças. Toda experiência incompreendida, incompleta, deixa sua marca, que chamamos memória.

E “aquela tranquilidade” é uma memória de qualidade diferente? A memória, por certo, implica continuidade: o passado, o presente e o futuro. A tranquilidade não tem continuidade, e é importante compreender isto. Pode-se induzir, disciplinar o intelecto para se tornar tranquilo, e esse disciplinar tem uma continuidade; mas a tranquilidade resultante da disciplina, da memória, não é tranquilidade nenhuma.

Nós nos referimos a uma tranquilidade que vem sem ser chamada, quando não existe medo de espécie alguma, declarado ou secreto. E quando existe essa tranquilidade, que é uma necessidade absoluta, independente da memória, verifica-se então um movimento de qualidade totalmente diferente.

Krishnamurti, Paris, 14 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

A totalidade da consciência é contradição


A totalidade da consciência é contradição

Creio que a maioria de nós deseja fruir uma certa paz. Muito falam os políticos a esse respeito; isso se tomou sua fraseologia predileta, seu tema favorito. Cada um de nós, também, deseja a paz. Mas, parece-me, a espécie de paz a que aspiram os entes humanos representa mais uma fuga; desejamos encontrar um estado no qual a mente se possa recolher e nunca refletimos se é realmente possível nos libertarmos de nossos conflitos e alcançarmos, assim, a verdadeira paz. Desejo, pois, falar a respeito do conflito, porque acho que se o conflito pudesse ser eliminado — fundamentalmente, profundamente, interiormente, além do nível mental consciente — então, talvez, haveria paz.

A paz a que me refiro não é a paz que buscam o intelecto e a mente; é coisa inteiramente diferente. Ela se torna um fator altamente perturbador, tanto é criadora e, por conseguinte, destrutiva. Para chegarmos a essa compreensão da paz, parece-me essencial que compreendamos o conflito, porquanto, se não penetrarmos fundo, radicalmente, o problema do conflito, não teremos paz nem exterior nem interior, por mais que a busquemos, ainda que a desejemos com ardor.

Para conversarmos a respeito de alguma coisa — sem distinção entre orador e ouvintes, pois esta é uma relação absurda — cumpre que vós e eu estejamos pensando e sentindo no mesmo nível, investigando do mesmo ponto de vista. Se vós e eu pudermos examinar juntos esta questão do conflito, com excepcional ardor e vitalidade, é bem possível que venhamos a descobrir uma paz completamente diferente daquela que a maioria de nós está a buscar.

Existe conflito quando existe um problema, não? Todo problema redunda em conflito, porquanto implica ajustamento, esforço para compreender algo, livrar-se de algo, encontrar uma solução. E temos, quase todos nós, uma grande variedade de problemas — problemas sociais, econômicos, problemas atinentes às relações, ao conflito entre as ideias etc. E esses problemas permanecem sem solução, não é verdade? De fato, nunca pensamos neles de maneira completa, até o fim, para deles nos libertarmos; mas continuamos a levar de dia para dia, de mês para mês, pela vida afora, toda espécie de problema, como um fardo na mente e no coração. Parecemos incapazes de gozar a vida, de ser simples, porque tudo o que tocamos — o amor, Deus, as relações, tudo — se reduz, por fim, a um problema medonho, inquietador. Se tenho apego a uma pessoa, isso se torna um problema e desejo, então, saber como desapegar-me. E se amo, vejo que nesse amor há ciúme, ansiedade e medo. E não podendo resolver os nossos problemas, vamo-los levando conosco, pois não nos sentimos aptos a solucioná-los.

Em seguida, temos a competição, que também suscita problemas. Competição é imitação, é tentar igualar a outro. Temos o modelo de Jesus, o modelo do herói, do santo, do vizinho mais rico, e há também o padrão interior que a pessoa estabelece para si própria e procura seguir, viver de acordo com ele. A competição, pois, faz nascer muitos problemas.

E há também a ânsia de preenchimento. Cada um deseja preencher-se de uma ou de outra maneira — por meio da família, da esposa, do marido, do filho. E, passando um pouco mais além, encontramos o desejo de nos preenchermos socialmente, escrever um livro, tornar-nos famosos de alguma maneira. E quando existe esta ânsia de preenchimento, de nos tornarmos alguma coisa, existe também a frustração, e com a frustração vem o sofrimento. E apresenta-se então o problema de como evitar o sofrimento e, ao mesmo tempo, termos a possibilidade de preencher-nos. E ficamos, assim, aprisionados neste círculo vicioso, em que tudo se converte num problema, num conflito.

E já nos acostumamos a admitir o conflito como coisa inevitável; consideramo-lo, até, respeitável e necessário à evolução, ao desenvolvimento, ao “vir a ser” algo. Cremos que se não houvesse competição, conflito, estaríamos condenados à estagnação, à deterioração; assim, mental e emocionalmente, estamos sempre tratando de nos tornar mais sagazes, sempre lutando, perpetuamente em conflito com nós mesmos, nosso próximo, e o mundo. Isto não é exageração; é um fato. E acho que todos sabemos que fardo tremendo esse conflito representa.

Assim, parece-me que a questão urgente é esta: se percebeis a real importância de se ficar livre do conflito — mas não com o fim de alcançar outra coisa. É verdadeiramente possível ser livre, simplesmente, intrinsecamente, de modo que a mente não mais esteja em conflito, quaisquer que sejam as circunstâncias? No momento não sabemos se isso é possível ou não. O que sabemos é só que estamos em conflito, e conhecemos as penas que ocasiona, o sentimento de “culpa”, o desespero, o irremediável da moderna existência; é só o que sabemos.

Assim, como poderemos descobrir, não no nível verbal, intelectual ou puramente emocional, mas descobrir realmente se é possível ser livre? Como começar? Certo, se não se compreender inteiramente esse conflito, em todos os níveis da consciência, não será possível nos libertarmos dele e compreendermos o que é a Verdade. A mente em conflito está confusa. E quanto maior a tensão do conflito, tanto maior a produtividade de ação. Deveis ter notado como os escritores, os oradores, os chamados intelectuais, estão sempre a produzir teorias, filosofias, explicações. Se são dotados de algum talento, então, quanto maior a tensão e a frustração, tanto mais produzem; e o mundo os chama grandes autores, grandes oradores, grandes líderes religiosos, etc.

Ora, se observarmos atentamente, veremos que o conflito desfigura, perverte; ele é, em essência, confusão, e destrutivo da mente. Se pudermos perceber isso verdadeiramente — sem dizer que o conflito da competição é inevitável, que a estrutura social é edificada sobre esta base, e que temos de tê-lo, etc. — então penso que nossa atitude em relação ao problema será bem diferente. Penso ser esta a coisa primordial: ver o fato, não intelectualmente, verbalmente, mas, sim, entrando realmente em contato com o fato. Desde o momento de nascermos até o momento de morrermos, existe esta incessante batalha interior e exterior; e somos capazes de ver realmente o fato de que esse conflito é ininteligente? Que é que nos dá energia e vitalidade para entrarmos em contato emocional com um fato?

Vede, há séculos que somos educados para viver em conflito, para aceitar ou encontrar uma maneira de fugir-lhe. E, como sabeis, existem inúmeras vias de fuga — contrair o hábito de beber, frequentar mulheres, igrejas, buscar a Deus, tornar-se altamente intelectual, repleto de saber, ligar o rádio, comer em excesso. E sabemos também que nenhuma dessas fugas resolve o problema do conflito; só serve para aumentá-lo. Mas estamos dispostos a enfrentar deliberadamente o fato de que não existe fuga de espécie alguma? Creio que nossa principal dificuldade resulta de termos criado tantos meios de fuga, que nos tornamos incapazes de ver o fato diretamente.

É preciso, pois, examinarmos profundamente esta questão relativa às nossas fugas conscientes e inconscientes. Parece bastante fácil descobrir as fugas conscientes. Delas estais apercebidos — não é verdade? — ao ligardes o rádio, ao vos dirigirdes à Igreja no domingo, depois de terdes levado na semana inteira uma vida brutal, ambiciosa, invejosa, repulsiva. Mas é muito mais difícil descobrir quais são as fugas ocultas, inconscientes.

Desejo examinar um pouco este problema da consciência. A consciência, na sua totalidade, é formada através do tempo, não? Resulta de milhares de anos de experiência; é constituída de influências raciais, culturais, sociais, provindas do passado e mantidas pela família, pelo indivíduo, pela educação, etc. A totalidade disso é a consciência; e, se examinardes vossa própria mente, vereis que na consciência existe sempre uma dualidade, “o observador e a coisa observada”. Tal fato não é de difícil percepção. Isto aqui não é uma aula de psicologia, nem um entretenimento analítico, intelectual. Estamos falando de uma experiência viva, real, que devemos — vós e eu — examinar deliberadamente, a fim de não ficarmos no nível puramente verbal.

Há necessariamente conflito na totalidade da consciência quando nela existe divisão entre pensador e pensamento. Esta divisão ocasiona a contradição; e onde há contradição é inevitável o conflito. Sabemos — não é verdade? — que estamos em contradição, tanto exterior como interiormente. Exteriormente, existe contradição em nossas ações, pois desejamos viver de certa maneira e vemo-nos obrigados a exercer atividades de outra ordem; e, interiormente, existe contradição em nossos pensamentos, sentimentos e desejos. Sentimento, pensamento, desejo, vontade, e a palavra, constituem a totalidade de nossa consciência, e nesta totalidade existe contradição, porque nela há sempre divisão — o censor, o observador sempre a observar, esperar, modificar, reprimir, e o sentimento ou pensamento sobre o qual (o censor ou observador) atua.

Quando examinamos este problema, nós mesmos — não através de livros, filosofias e leituras de tudo o que foi dito por outras pessoas, que é apenas palavras ocas, — quando o examinamos muito profundamente, persistentemente, sem escolha, sem rejeição ou aceitação descobre-se, então, necessariamente, o fato de que a totalidade da consciência é, em si, um estado de contradição, porque lá existe sempre o pensador a atuar sobre o pensamento, e a criar, por consequência, intermináveis problemas.

Surge assim a questão sobre se é inevitável esta divisão da consciência. Existe realmente um pensador separado, ou foi o pensamento que criou o “pensador”, a fim de ter um centro permanente, de onde pensar e sentir?

Vede, senhores, que para compreendermos o conflito temos de examinar bem isto. Não basta dizer-se: “Desejo libertar-me do conflito”. Se é só isso que se deseja, então podemos também tomar uma droga, um calmante — coisa muito simples, e barata. Mas, se se deseja realmente penetrar a fundo na questão e extirpar completamente todas as fontes de conflito, cumpre investigar a totalidade da consciência — todos os obscuros recantos da mente e do coração, onde se embosca a contradição. E só podemos compreender profundamente ao começarmos a indagar porque existe esta divisão entre pensador e pensamento. É preciso indagar se existe realmente um pensador, ou se apenas existe pensamento. E se só existe pensamento, onde está o centro de onde procedem todos os pensamentos?

Pode-se ver — não é verdade? — porque o pensamento criou um centro que se tornou “eu”, “ego” — o nome que se lhe dê é sem importância, desde que se reconheça que existe um centro de onde promana o pensamento. O pensamento anseia pela permanência; e vendo que suas próprias expressões são impermanentes, cria o centro — o “eu”. E logo surge a contradição.

Para se perceber tudo isso realmente — e não apenas aceitá-lo verbalmente — é necessário em primeiro lugar rejeitar todas as fugas; eliminar, como um cirurgião, toda forma de fuga. Requer isso intenso percebimento, sem escolha, sem apego às fugas agradáveis e evitando-se as desagradáveis. Isso requer energia, vigilância constante, porque o intelecto de tal maneira se acostumou à fuga, que esta se tornou mais importante do que o fato concreto do qual está a fugir. Mas só quando há a total rejeição da fuga, estamos em condições de encarar, de enfrentar o conflito.

Então, se chegamos até esse ponto, se, física, emocional e intelectualmente rejeitamos toda forma de fuga, que acontece? Existe então problema? Por certo, é a fuga que cria o problema. Quando já não estais competindo com vosso vizinho, já não estais tentando preencher-vos, nem transformar-vos noutra coisa, existe então conflito? Estais apto a enfrentar o fato — o que sois realmente — como quer que ele seja. Não há então julgamento como “bom” ou “mau”. Sois então o que sois. E o próprio fato tem efeito atuante: não há mais “vós” a atuar sobre o fato.

Tudo isso é realmente muito interessante, como vereis se deveras o examinardes. Considere-se o ciúme. Em geral somos ciumentos, invejosos, em grau agudo ou tolerável. Ao perceberdes efetivamente que sois ciumento, sem rejeitar nem condenar esse estado, que sucede? O ciúme é então mera palavra ou um fato? Espero estejais prestando atenção, porquanto, como sabeis, a palavra tem extraordinária importância para a maioria de nós. A palavra “Deus”, a palavra “comunista”, a palavra “negro” têm imenso conteúdo emocional neuroló­gico. Do mesmo modo, a palavra “ciúme” já está “carregada”. Ora, se se põe de parte a palavra, resta então o sentimento. Este é que é o fato, não a palavra. E encarar o sentimento sem a palavra requer completa isenção de condenação e justificação.

Quando, alguma vez, sentirdes ciúme, cólera, ou, mais especialmente, quando sentirdes deleite a respeito de alguma coisa, vede se podeis distinguir a palavra do sentimento, se a palavra é o mais importante, se o sentimento. Descobrireis, então, que, no olhar o fato sem a palavra, há uma ação que não é processo intelectual; o próprio fato está operando e, por conseguinte, não há contradição, nem conflito.

É verdadeiramente extraordinário o descobrirmos diretamente que só há pensar e não há pensador. Porque se vê, então, que se pode viver neste mundo sem contradição, já que se necessita de muito pouca coisa. Se se necessita de muita coisa — sexual, emocional, psicológica ou intelectualmente — há dependência de outrem; e no momento em que começa a dependência, começa a contradição e o conflito. Quando a mente se liberta do conflito, com essa liberdade se manifesta um movimento de caráter de todo diferente. A palavra “paz”, como a conhecemos, não tem aí aplicação, porque esta palavra tem para nós diferentes significados, conforme a pessoa que a emprega — um político, um sacerdote, ou quem quer que seja. Não é a prometida paz celestial, após a morte; ela não se encontra em nenhuma igreja, nenhuma ideia, nem na adoração de nenhum Deus. Ela surge quando ocorre a cessação total de todo conflito interior; e isso só é possível quando não há nenhuma necessidade. Não há então necessidade, nem mesmo de Deus. Só há um movimento imensurável que não pode ser corrompido por ação alguma.[...]

PERGUNTA: Que queríeis dizer ao declarardes, há dias, que devemos ser perturbados?

KRISHNAMURTI: Peço-vos não considerar-me como uma autoridade; isso seria uma coisa terrível. Mas podeis ver por vós mesmo que o desejo de não sermos perturbados é uma de nossas principais necessidades. E é possível que a mente, o intelecto, ao deter seu incessante “tagarelar”, descubra uma grande perturbação interior. Podeis ver por vós mesmo que vossa mente vive ocupada — com a esposa, o marido, o sexo, a nacionalidade, Deus, sobre onde obter a próxima refeição, etc. E já procurastes averiguar por que ela vive ocupada, e que aconteceria se não estivesse ocupada? Se o fizerdes, vos vereis frente a frente com algo em que nunca pensastes; e esse algo pode ser um fato extremamente perturbador. E é realmente. Esta constante ocupação da mente pode ser uma simples fuga ao fato, ou seja, nossa tremenda solidão e vazio. E essa perturbação precisa ser enfrentada e profundamente examinada.

Krishnamurti, Paris, 10 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

sábado, 7 de abril de 2018

Sobre a paz e a boa vontade

Sobre a paz e a boa vontade

PERGUNTA: Existe alguma maneira de criar boa-vontade? Podeis informar-nos como viver juntos, em paz com outros, em vez desse hostil antagonismo entre todos?

KRISHNAMURTI: A paz e a boa-vontade, sem dúvida, são muito difíceis de estabelecer. Podeis construir uma ponte juntos, ou trabalhar juntos num escritório, porque tendes um patrão que vos manda e vos diz o que deveis fazer. Mas a verdadeira cooperação não pode ser exercida sob compulsão, nem nasce do seguirmos juntos as plantas traçadas por um arquiteto. A paz e a boa-vontade só poderão ser estabelecidas, quando sentirmos que esta Terra é nossa — que não pertence aos comunistas, aos socialistas ou capitalistas, mas a vós e a mim. Ela é nossa Terra, e temos de enriquecê-la e participar juntos dessas riquezas, em vez de nos dividirmos nacionalisticamente, racialmente, ou de acordo com as crenças, os credos e os dogmas de várias religiões organizadas.

Tende a bondade de escutar bem isso, senhores, pois não se trata de simples palavreado. Se desejais realmente estabelecer a boa-vontade e viver juntos em paz, precisais eliminar todas as diferenças de classes e todas as barreiras religiosas — barreiras de dogma, tradição e crença. Não deveis esperar que os governos promovam a paz e a boa-vontade, pela legislação, porque a paz do político não é a paz do homem religioso; são duas coisas totalmente diferentes. O que é necessário é sentirmos, realmente, a paz e a boa-vontade, todos os dias, sermos verdadeiramente bons, sem nos envergonharmos desta palavra, e sem nos deixarmos pegar pelas organizações, que se supõe trarão a paz mas que, de fato, a estão destruindo, em defesa de seus próprios interesses. Quando existir, dentro em nós, esse sentimento de paz e boa-vontade, ele criará o seu mundo próprio. Mas, infelizmente, a maioria de nós não interessa criarmos juntos esse sentimento. O que em geral nos une, não é o amor, não é a simpatia, não é a compaixão, porém o ódio, em virtude de nossa identificação com um grupo que está oposto a outro grupo. Quando nosso grupo se vê ameaçado de destruição por outro grupo, nisso que se chama a guerra, esta ameaça nos faz unir-nos; mas tão logo desaparece a ameaça tornamos a separar-nos — e isso nos é provado todos os dias, pelos fatos.

O que se torna necessário, por conseguinte, não é o ideal da paz ou da boa-vontade, mas, sim, que nos ponhamos frente a frente com o fato de que somos violentos. Quando vos denominais Maharashtrianos, Gujarathis, ou sei lá o que mais, sois violentos, porque vos separastes por meio de uma palavra; e esta palavra estimula o antagonismo, ergue uma barreira entre vós e vosso semelhante. Mas todos somos entes humanos, tendo essencialmente as mesmas tribulações, as mesmas preocupações, misérias e sofrimentos; e o que importa, de certo, é que se perceba este fato óbvio, que se lance fora, sem esforço algum, alegremente, o nosso nacionalismo, as nossas insignificantes organizações e comunidades e sejamos, simplesmente, humanos. Mas, em geral, preferimos passar os dias a especular a respeito de Deus, a discutir o Gita e sobre as demais insignificâncias que vêm nos livros, o que não tem significação alguma. Por isso continua a existir, cada vez mais forte, o nosso antagonismo. O que tem significação são as relações; e se, juntos, queremos implantar a paz e a boa-vontade, temos de deixar de ser meros idealistas e, literalmente, jogar fora todos os absurdos e estultícias do nacionalismo, do provincialismo, despojar-nos de todas as crenças e vaidades, para começarmos de novo, livres e felizes.

Isto não é uma fala ou resposta destinada a estimular-vos a fazer essas coisas. O homem inteligente atua: pela força de sua própria compreensão. Só o estúpido busca estímulos; e se for estimulado, continuará a ser estúpido. Mas, se esse homem souber que é estúpido, nesse caso poderá fazer alguma coisa a tal respeito. Se está apercebido de sua própria vulgaridade, pequenez, seus ciúmes, sua violência, e percebe que cultivar ideais é outra forma de estupidez, então ele será capaz de produzir uma transformação em si mesmo. Se sei que sou arrogante, sei o que devo fazer ou o que não devo fazer, conforme o caso. Mas o homem que é arrogante e quer mostrar-se humilde, ou aquele que segue o ideal da humildade, é estúpido, porque está fugindo do fato para a irrealidade. A não-arrogância é um estado irreal, para o homem que é arrogante. Mas somos criados com esta divisão, dentro em nós mesmos, do fato e do ideal e, por isso, somos hipócritas. Mas se sabemos que somos arrogantes e sabemos enfrentar este fato, nisto está o começo do fim da arrogância.

Do mesmo modo, se desejamos realmente implantar, juntos, a paz e a boa-vontade, precisamos de amor — não o amor ideal, mas o simples amor, a bondade, a compaixão — e isso torna necessário, nos libertarmos de uma certa comunidade e lançarmos fora todos os nossos preconceitos nacionais, raciais e religiosos. Nós somos entes humanos, vivendo juntos sobre esta Terra, esta Terra que nos pertence. E para se sentir esta verdade, precisamos ser verdadeiramente humildes. Para se poder sentir uma coisa profundamente, é necessária a humildade. Mas a humildade deixa de existir, se perseguimos o ideal.

Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
7 de maio de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A paz só pode acontecer se houver amor

Estivemos examinando os vários fatores que acarretam deterioração em nossas vidas, em nossas atividades, em nossos pensamentos; e vimos que o conflito é um dos principais fatores dessa deterioração. E também a paz, como é geralmente compreendida, não é um fator destrutivo? Pode a paz ser produzida pela mente? Se tivermos paz através da mente, não levará isso também à corrupção, à deterioração? Se não estivermos alertas, se não formos observadores, a palavra "paz" torna-se como uma janela estreita através da qual miramos o mundo que procuramos compreender. Por uma janela estreita só podemos ver parte do céu, e não toda a vastidão, toda a magnificência dele. Não há possibilidade de se ter paz apenas por buscar a paz, o que é inevitavelmente um processo da mente. 

Pode ser um tanto difícil entender isto, mas procurarei torná-lo o mais simples e claro que puder. Se pudermos compreender o que significa ser pacífico, talvez compreendamos o verdadeiro significado do amor. 

Pensamos que a paz seja algo a alcançar por meio da mente, através da razão; mas será assim? Pode a paz advir mediante quietação, controle ou domínio do pensamento? Todos desejamos paz; e, para a maioria, paz significa não ter amolação, não ser importunado nem sofrer interferência, então construímos uma parede ao redor de nossa mente, uma parede de ideias. 

É muito importante que compreendam isto, pois à medida que crescerem vocês serão confrontados com os problemas da guerra e da paz. A paz é algo a ser buscado, obtido e domado pela mente? O que a maioria chama de paz é um processo de estagnação, uma lenta decadência. Achamos que vamos encontrar paz apegando-nos a um conjunto de ideias, construindo interiormente uma muralha se segurança, uma parede de hábitos ou crenças; achamos que a paz é uma questão de busca de um princípio, de cultivo de uma dada tendência, de uma determinada fantasia, de um particular desejo. Queremos viver sem perturbação, então encontramos algum canto do universo, ou do nosso próprio ser, em que aninhamos e vivemos à sombra do auto-encerramento. Eis aí o que a maioria busca em seus relacionamentos com o marido, a esposa, com os pais, com os amigos. Inconscientemente queremos paz a qualquer preço e, portanto, a buscamos. 

Mas acaso pode a mente encontrar paz? Não é ela mesma uma fonte de distúrbio? A mente só pode juntar, acumular, negar, afirmar, lembrar, buscar. A paz é absolutamente essencial, porque sem ela não podemos viver de forma criativa. Mas será a paz algo a ser concretizado mediante as lutas, as negações, os sacrifícios da mente? Compreendem o que quero dizer? 

Podemos estar descontentes enquanto somos jovens, mas à proporção que ficamos mais velhos, a menos que sejamos muito sábios e vigilantes, esse descontentamento será canalizado para alguma forma de pacífica resignação com a vida. A mente está perenemente buscando um hábito, uma crença, um desejo separado, algo em que possa viver, e estar em paz com o mundo. Mas a mente não pode encontrar paz, porque ela só pode pensar em termos de tempo, em termos de passado, presente e futuro: o que foi, o que é e o que será. Ela está constantemente condenando, julgando, ponderando, comparando, perseguindo suas próprias vaidades, seus hábitos, suas crenças; e essa mente nunca pode estar em paz. Ela poderá iludir-se e simular um estado que chame de paz; mas isso não será paz. A mente pode mesmerizar-se pela repetição de palavras e frases, por seguir alguém ou acumular conhecimentos; mas não está em paz, porque tal mente é, ela própria, o centro de perturbação, ela é, por sua própria natureza, a essência do tempo. Portanto, a mente com que pensamos, com que calculamos, com que maquinamos e comparamos, é incapaz de encontrar paz. 

A paz não é fruto da razão; e, no entanto, como vocês verão se as observarem, as religiões organizadas estão presas a essa busca de paz por intermédio da mente. A verdadeira paz é tão criativa e tão para como a guerra é destrutiva; e, para encontrar essa paz, é preciso compreender a beleza. Por isso, é importante, enquanto somos jovens, termos a beleza ao nosso redor — a beleza de edifícios que tenham proporções adequadas, a beleza da limpeza, de conversas tranquilas entre os mais velhos. Ao entender o que é beleza, conheceremos o amor, pois a compreensão da beleza é a paz do coração. 

A paz é do coração, não da mente. Para conhecer a paz vocês terão de descobrir o que é a beleza. O seu modo de falar, as palavras que empregam, os gestos que fazem — essas coisas importam muito, pois por meio delas vocês descobrirão o refinamento de seu próprio coração. A beleza não pode ser definida, ela não pode ser explicada com palavras. Só pode ser compreendida quando a mente está muito quieta. 

Assim sendo, enquanto são jovens e sensíveis, é essencial que vocês — tanto quanto seus responsáveis — criem uma atmosfera de beleza. Seu modo de vestir, de andar, de sentar, de comer — todas essas coisas, e as coisas que os cercam, são muito importantes. À medida que crescerem, vocês enfrentarão as coisas feias da vida — edifícios feios, pessoas feias pela malícia, pela inveja, pela ambição, pela crueldade; e se, em seu coração, não estiver fundada e estabelecida a percepção do belo, você serão facilmente engolfados pela enorme correnteza do mundo. Então ficarão presos na interminável luta para encontrar a paz através da mente. A mente projeta uma ideia do que seja a paz e procura alcançá-la, ficando, assim, presa nas malhas das palavras, na rede das fantasias e ilusões. 

A paz só pode acontecer se houver amor. Se vocês só tiverem paz através da segurança, do dinheiro ou de alguma outra coisa, ou através de certos dogmas, rituais, repetições verbais, não haverá criatividade; vocês não sentirão a urgência de fazer uma revolução fundamental no mundo. Tal paz só leva ao contentamento e à resignação. Mas quando em vocês houver a compreensão do amor e da beleza, então encontrarão a paz que não é a mera projeção da mente. É essa paz que é criativa, que remove a confusão e estabelece a ordem interior. Mas essa paz não vem através de nenhum esforço. Ela surge quando se está constantemente vigilante, quando se é sensível tanto ao feio como ao bonito, ao que é bom e ao que é mau, a todas as vicissitudes da vida. A paz não é uma coisa mesquinha, criada pela mente; ela é infinitamente grandiosa, ampla, e só pode ser compreendida quando o coração está cheio dela. 

Krishnamurti em, O VERDADEIRO OBJETIVO DA VIDA

sábado, 31 de agosto de 2013

O que significa nossa chamada “busca da verdade”?

Que entendemos com conflito, por contradição? Por que existe contradição em nós? Compreendem o que eu entendo por contradição? — esta luta constante para ser algo diferente do que sou. Sou isto e quero ser aquilo. Essa contradição em nós é um fato, não um dualismo metafísico, sobre o qual não há necessidade de discorrermos. A metafísica nenhum valor tem para a compreensão do que é. Podemos discutir sobre o dualismo, dizer o que ele é, se existe, etc.; mas, que valor tem ele se não sabemos se existe contradição em nós, desejos antagônicos, interesses opostos? Isto é, quero ser bom e não consigo. Essa contradição, essa oposição que existe em nós precisa ser compreendida, porque gera conflito; e no conflito, na luta, não podemos criar individualmente. Vejamos com clareza o estado em que nos encontramos. Há contradição, e por isso tem de haver luta; e a luta é sempre destruição, desperdício. Em tal estado, nada podemos produzir, senão antagonismo, luta, mais amarguras e sofrimentos. Se pudermos compreender perfeitamente esse estado e ficarmos livres da contradição, haverá paz interior, a qual nos trará a mútua compreensão.

O problema, portanto, é este: Visto que o conflito é destrutivo, inútil, por que existe contradição em cada um de nós? Para compreender isso, precisamos ir um pouco mais longe. Por que existem desejos opostos? Não sei se estamos bem conscientes disso — dessa contradição, desse querer e não querer, desse lembrar-nos de uma coisa e querermos esquecê-la, substituí-la por algo novo. Observem bem. É um fato muito simples e muito normal. Nada tem de extraordinário. A verdade é que existe contradição. Mas, como nasce a contradição? Não é importante compreendê-lo? Porque se não fosse a contradição, não haveria conflito, não haveria luta, e o que é seria compreendido sem lhe acrescentarmos um elemento oposto, gerador de conflito. A questão que temos de examinar, portanto, é: Por que existe essa contradição e, consequentemente, essa luta inútil e destrutiva? Que significa contradição? Não implica ela um estado impermanente ao qual se opõe um outro estado impermanente? Isto é, julgo que tenho um desejo permanente. Admito em mim a existência de um desejo, e logo surge outro desejo, que o contradiz; e essa contradição gera conflito, que é desperdício. Isto é, há uma constante negação de um desejo por outro desejo, um interesse que se sobrepõe a outro interesse. Mas existe de fato um desejo permanente? Sem dúvida, todo desejo é impermanente — não metafisicamente, mas de fato. Não deem a isso uma significação metafísica, pensado que assim a compreendem. Na realidade, todo desejo é impermanente. Desejo um emprego. Isto é, penso que um determinado emprego me proporcionará felicidade, e quando o obtenho vejo-me insatisfeito. Quero tornar-me gerente, depois proprietário, etc.; não somente neste mundo, mas também no mundo dito espiritual — o professor quer ser diretor, o ministro quer ser bispo, o discípulo Mestre.

Assim, esse constante “vir a ser”, esse sucessivo passar de um estado para outro, produz contradição, não é verdade? Nessas condições, por que não encarar a vida, não como um desejo permanente, mas como uma série de desejos fugitivos, em constante oposição entre si? A mente, não tem necessidade de permanecer em estado de contradição. Se considero a vida, não como um desejo permanente, mas como uma série de desejos temporários, em constante mutação, não existe contradição... Muito importa compreender que, onde há contradição há sempre conflito, e que o conflito é improdutivo, inútil, quer se trate de uma disputa entre duas pessoas, quer de uma luta interior; como a guerra, ele é totalmente destrutivo.

A contradição, surge apenas quando temos um ponto fixo de desejo, isto é, quando a mente, não considerando todo desejo como uma coisa em movimento, transitória, se apodera de um desejo, atribuindo-lhe permanência: só então, ao surgirem outros desejos, apresenta-se a contradição. Mas todos os desejos estão em constante movimento, não há fixação do desejo. Não há um ponto fixo de desejo; a mente estabelece um ponto fixo, porque se serve de todas as coisas como um meio de ganho; e há de haver contradição, conflito, enquanto houver esse empenho de chegar. Não sei se percebem isso.

É importante compreender, em primeiro lugar, que o conflito é essencialmente destrutivo, quer se trate de conflito comunal, do conflito entre nações, entre ideias, quer do conflito interno do indivíduo. Ele é sempre destrutivo; e essa luta é aproveitada, explorada pelos sacerdotes, pelos políticos. Se percebemos bem isso, se percebemos realmente que toda luta é destrutiva, cabe-nos então descobrir a maneira de colocar fim à luta, isto é, investigar a contradição; a contradição implica sempre o desejo de vir a ser, de ganhar, o desejo de chegar — é isso, afinal de contas o que significa a chamada busca da verdade. Isto é, vocês querem atingir algo, querem alcançar bom êxito, querem encontrar, no final de tudo, um Deus ou a verdade, que passará a ser a permanente satisfação de vocês. Por conseguinte, não estão em busca da verdade, não estão à procura de Deus. Procuram satisfação com uma ideia, uma palavra de som respeitável, tal como Deus, a verdade; mas de fato, cada um de vocês está é em busca de satisfação, e, pondo essa satisfação, no mais alto nível, vocês a chamam Deus: no mais baixo nível ela se chama embriaguez pela bebida. Enquanto o que a mente busca é satisfação, não há muita diferença entre Deus e a bebida... Se desejam realmente encontrar a verdade, devem ser sinceros, ao extremo, e não apenas no nível verbal, mas totalmente; precisam estar extraordinariamente lúcidos, e não podem ter lucidez se se furtam a encarar os fatos. E é isto o que estamos tentando, nestas reuniões: perceber claramente, por nós mesmos o que é. Se não desejam ver, podem ir embora; mas se desejam encontrar a verdade, precisam estar extraordinariamente lúcidos, escrupulosamente lúcidos... Enquanto a mente estiver fixa com uma ideia, com uma crença, haverá contradição na vida; e essa contradição gera antagonismo, confusão, luta, o que significa que não haverá paz.

Jiddu Krishnamurti — O que estamos buscando?

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Quem é o responsável pela paz do mundo?

Pergunta: Como resolver o atual caos político e a crise que assola o mundo? Há alguma coisa que o indivíduo possa fazer para sustar a guerra que se aproxima?

Krishnamurti: A guerra é a projeção espetacular e cruenta da nossa vida de cada dia, não é verdade? A guerra é mera manifestação exterior do nosso estado interior, uma ampliação das nossas ações de cada dia. Ela é mais espetacular, mais sanguinolenta, mais devastadora; é, porém, o resultado coletivo das nossas atividades individuais. Vocês e eu, por conseguinte, somos responsáveis pela guerra. Que podemos fazer para colocar-lhe fim? É óbvio que a guerra que continuamente nos ameaça, não pode ser sustada por vocês nem por mim, porque ela já está em movimento, já está acontecendo, embora, por enquanto, se restrinja principalmente ao nível psicológico. Visto que já está em movimento, ela não pode ser contida; há interesses consideráveis e muito numerosos, e todos já estão empenhados em defende-los. Mas você e eu, vendo a casa arder, podemos compreender as causas do incêndio, e afastar-nos, e construir outra casa noutro lugar, com materiais diferentes, não inflamáveis, que não possam produzir novas guerras. Eis tudo o que podemos fazer. Vocês e eu podemos ver o que determina a guerra e depois, se estivermos interessados em sustá-la, começar a transformação de nós mesmos, que somos os causadores da guerra.

Há alguns anos, durante a guerra. Fui procurado por uma senhora americana, que me disse ter perdido um filho na Itália e que desejava salvar seu outro filho, de dezesseis anos de idade. Conversando sobre o assunto, sugeri-lhe que, para salvar o filho, ela deixasse de ser americana, deixasse de ser ambiciosa, de acumular riquezas, de aspirar ao poder e ao domínio, que se tornasse moralmente simples, não apenas simples em relação ao vestuário, às coisas exteriores, mas simples nos pensamentos e sentimentos, simples nas relações. Respondeu-me ela: “Isto é demais. O senhor pede o impossível. Isto eu não posso fazer, porque as circunstâncias são demasiado poderosas e não posso alterá-las”. Por conseguinte, ela era responsável pela destruição do filho.

As circunstâncias podem ser controladas por nós, pois nós criamos as circunstâncias. A sociedade é produto das relações de vocês e minhas, conjuntamente. Se nos modificarmos, em nossas relações, a sociedade se modificará; se ficarmos, apenas, contando com a legislação, com a compulsão, para a transformação da sociedade, enquanto no íntimo continuamos corruptos, enquanto no íntimo ambicionamos poder, posição, autoridade, causaremos a destruição no exterior, por mais caprichosa e cientificamente que ele tenha sido construído. O interior sempre supera o exterior.

O que causa a guerra — religiosa, política ou econômica? Sem dúvida, é a crença; crença no nacionalismo, numa ideologia, num dogma. Se em vez de crença houvesse boa vontade, amor e consideração entre os homens não haveria guerras. Mas nós nos alimentamos de crenças, ideias e dogmas, fomentando, assim, o descontentamento. A presente crise é de natureza excepcional e, como entes humanos, ou temos de continuar pelo caminho do constante conflito, das guerras contínuas — resultado de nossas ações diárias — ou temos de ver quais são as causas da guerra e voltar-lhes as costas.

Evidentemente a causa da guerra é o desejo de poder, posição, prestígio, dinheiro; também a doença chamada nacionalismo, o culto de uma bandeira, e a doença da religião organizada, o culto de um dogma. Tais são as causas da guerra. Se você, como indivíduo, pertence a qualquer das religiões organizadas, se sé ávido de poder, se é invejoso, produzirá forçosamente uma sociedade fadada à destruição. Tudo, portanto, depende de vocês, e não dos líderes, dos chamados estadistas, etc. Tudo depende de vocês e de mim, mas parece que não o percebemos. Se chegássemos a sentir-nos verdadeiramente responsáveis por nossas ações, com que rapidez poderíamos colocar fim a todas as guerras, a todas estas terríveis tribulações! Mas, somos indiferentes. Tomamos três refeições por dia, temos nossos empregos, nossos depósitos em bancos, grandes ou pequenos, e dizemos: “pelo amor de Deus, não nos venham perturbar, deixem-nos em paz”. Quanto mais alto estamos, tanto mais desejamos segurança, permanência, tranquilidade, tanto mais queremos que nos deixem em paz, que as coisas fiquem como estão. Mas as coisas não podem ser mantidas como estão, porque não há nada para manter. Tudo está se desintegrando. Não queremos encarar este fato, reconhecer que vocês e eu somos os responsáveis pelas guerras. Vocês e eu podemos falar sobre paz, promover conferências, sentar-nos em torno de uma mesa, para discutir, mas, interiormente, psicologicamente, queremos poder, queremos posição, somos impulsionados pela avidez. Intrigamos, somos nacionalistas, escravos das crenças, dos dogmas, pelos quais estamos prontos a morrer e a entredestruir-nos. Vocês pensam que estes homens — que são vocês, que sou eu — podem ter paz, no mundo? Para termos paz, temos de ser pacíficos. Viver pacificamente significa não criar antagonismo. A paz não é um ideal. Para mim um ideal é, simplesmente, fuga, uma maneira de evitar o que é, uma condenação ao que é. O ideal impede a ação direta sobre o que é. Para ter paz, devemos amar, começar a viver, não uma vida de ideal, mas vendo as coisas como são, e sobre elas atuando, e as transformando. Enquanto cada um de nós estiver à procura de segurança psicológica, será destruída a segurança física de que necessitamos: alimento, roupa, morada. Estamos em busca de segurança psicológica, que não existe, e buscamo-la, se possível através do poder, através da posição, através dos títulos, e dos nomes — e tudo isto está destruindo a segurança física. Este é um fato óbvio, como podem observar.

Para implantar a paz no mundo, para colocar fim a todas as guerras, faz-se mister uma revolução no indivíduo, em vocês e em mim. Sem esta revolução interior, a revolução econômica não terá significação, porque a fome é o resultado do desajustamento das condições econômicas, produzido pelos nossos estados psicológicos: a avidez, a inveja, a malevolência, a ânsia de possuir. Para colocar fim ao sofrimento, à fome, à guerra faz-se necessária uma revolução psicológica, e poucos de nós têm disposição para tal. Estamos dispostos a conversar sobre a paz, planejar legislações, criar novas Ligas, as Nações Unidas, etc.; mas não estamos dispostos a ganhar a paz, porque não queremos renunciar à posição, à autoridade, ao dinheiro, às propriedades, às nossas estúpidas vidas. Contar com os outros é inteiramente fútil; eles não podem trazer-nos a paz. Nenhum chefe irá dar-nos a paz, nenhum governo, nenhum exército, nenhum país. O que trará a paz é a transformação interior, que levará à ação exterior. A transformação interior não significa isolamento ou retraimento da ação exterior. Pelo contrário, só pode haver ação correta quando há pensar correto, quando há autoconhecimento. Se não conhecem a si mesmos, não há paz.

Para colocar fim à guerra exterior, vocês têm de colocar fim à guerra que está em si mesmos. Alguns de vocês balançarão a cabeça e dirão: “de acordo” — depois sairão daqui, para fazer exatamente a mesma coisa que vêm fazendo há dez ou vinte anos. O assentimento de vocês é apenas verbal e sem sentido, porque as misérias do mundo e as guerras não acabarão por causa de um assentimento ocasional. Só terão fim quando compreenderem o perigo, quando compreenderem a responsabilidade de vocês, quando não deixarem a tarefa a cargo de outra pessoa. Se compreenderem o sofrimento, se reconhecerem a necessidade de ação imediata, inadiável, haverão então de transformar a si mesmos. Só vira a paz quando forem pacíficos, quando viverem em paz com o próximo de vocês.

Jiddu Krishnamurti — A primeira e última liberdade

  
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill