Se você se sente grato por este conteúdo e quiser materializar essa gratidão, em vista de manter a continuidade do mesmo, apoie-nos: https://apoia.se/outsider - informações: outsider44@outlook.com - Visite> Blog: https://observacaopassiva.blogspot.com

Mostrando postagens com marcador passado. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador passado. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 10 de abril de 2018

O mecanismo da autoridade do passado


O mecanismo da autoridade do passado

Penso que todos percebemos a necessidade de uma certa mudança. Quanto mais inteligentes e penetrantes somos, tanto mais premente, tanto mais urgente se nos mostra a necessidade de mudança; mas, em geral, pensamos em mudança no nível superficial — mudança das circunstâncias, mudança de emprego, um pouco mais de dinheiro, etc.

Mas nós nos referimos à mudança total, completamente radical e revolucionária. Para promovermos esta mudança, precisamos fazer perguntas fundamentais. Importa verificar como se faz uma pergunta. Podemos fazer perguntas resultantes de reação. Desejo produzir uma certa mudança em mim próprio ou na sociedade, e essa mudança bem pode ser uma reação. A pergunta que faço a mim mesmo pode ser o resultado de uma reação ou independente de reação. Só há duas maneiras de fazer uma pergunta: uma que é reação, e a outra que não é reação. Se fazemos perguntas resultantes de reação, receberemos invariavelmente respostas superficiais. Fazer perguntas não procedentes de reação é dificílimo, porque para essas perguntas talvez não haja resposta alguma. Deve, pois, haver um inquirir que fica sem resposta; e isso, a meu ver, é bem mais significativo do que fazer uma pergunta que tem resposta.

Desejo discorrer nesta tarde sobre uma mudança de todo indispensável à mente que busca a revolução completa, total, a mente que exige liberdade completa, se tal coisa existe — liberdade completa. E, a meu ver, para investigarmos esta questão cumpre em primeiro lugar verificar o verdadeiro significado da autoridade, porquanto a mente de quase todos nós está sob o completo domínio da autoridade — a autoridade da tradição, a autoridade da família, a autoridade da técnica, a autoridade do conhecimento, da religião e da moral social. Eis as várias formas de autoridade que nos moldam a mente. Até que ponto pode a mente ficar livre delas, e que significa ser livre? Desejo examinar esta matéria, porque acho que a autoridade — se não for perfeitamente compreendida destrói todo o pensar, deforma o pensamento, e a mente que só funciona mecanicamente, dentro dos limites do conhecimento, é incapaz de transcender a si própria.

Por conseguinte, parece-me, cabe-nos investigar devidamente a questão da autoridade, interrogar-nos por que e em que nível obedecemos às leis físicas das experiências psicológicas que se tornam conhecimento e nos orientam. Porque deve haver obediência? Todos os governos, principalmente os governos tirânicos, não querem que os cidadãos em circunstância nenhuma critiquem os seus líderes. Pode-se ver bem claramente porque se exige essa obediência absoluta. Também se pode ver porque, psicologicamente, nós seguimos a autoridade — a autoridade do guru, a autoridade da tradição, a autoridade da experiência — a qual invariavelmente gera hábito, bom ou mau, resistência ao mau e sujeição ao bom. Um hábito se torna também autoridade, tal como a autoridade do conhecimento, do especialista, do policial, da mulher sobre o marido ou do marido sobre a mulher.

Até que ponto pode a mente ser livre dessa autoridade? É possível obedecer à lei, ao Governo, ao policial e, interiormente, ser de todo livre da autoridade, inclusive a autoridade da experiência, com seu saber e sua memória? Se me permitis dizê-lo, seria sobremodo lamentável se vos limitásseis a ouvir esta palestra verbalmente, intelectualmente, em vez de “experimentardes” deveras o que se está dizendo. Isto é, devemos perguntar-nos sob que autoridade, sob que compulsão, nossa mente funciona, e perceber que a experiência no-la está moldando. De tudo isso precisamos estar bem apercebidos, pois, afinal de contas, estamos falando, não para fazer propaganda, nem para convencer-vos de alguma coisa ou forçar-vos a adotar determinada norma de ação. Só quando começamos a interrogar-nos, parcial ou completamente, pode haver ação verdadeira; só então poderá terminar toda à nossa angústia. Ouvir estas palavras apenas verbal ou intelectualmente parece-me um completo desperdício de tempo. Não se trata aqui de argumentar, de concordar ou discordar; trata-se, sim, de olhar todos os fatos externos e observar como, interiormente, a nossa mente está escravizada pela autoridade, e investigar se podemos ficar livres dela (pois, evidentemente, a liberdade supõe que se esteja livre da autoridade) e qual o estado da mente quando realmente livre da autoridade, e, também, se é possível um tal estado.

Para descobrir por si própria, deve a pessoa fazer perguntas fundamentais; e uma das perguntas fundamentais é esta: Por que obedecemos — por que fazemos isto ou aquilo? (Não vos estou aconselhando a obedecer ou desobedecer; mas, sem dúvida, cumpre fazer tal pergunta, para podermos descobrir.)

Isso poderá parecer um pouco infantil, sem madureza, mas se pudermos penetrar muito lentamente na matéria, passo por passo, talvez venhamos a compreender se é possível, ou não, ficarmos inteiramente livres do passado — que é autoridade. Eis uma questão fundamental, porquanto o passado está-nos sempre moldando a mente — a passada experiência, o conhecimento passado, os incidentes e acidentes passados, as pretéritas lisonjas, os insultos recebidos, o que disseram e o que será dito em consequência do que disseram. E apresenta-se, assim, a questão de se é realmente possível ficarmos livres dessa imensa teia do passado que está sempre traduzindo o presente e, por conseguinte, pervertendo o presente que forma o futuro.

Pois bem. Por que obedecemos? O escolar obedece porque o professor é um homem investido de autoridade, de poderes discricionários, e porque tem de passar em seus exames, etc. E há, ainda, a obediência à lei, também muito compreensível: obedecemos-lhe, geralmente, porque tememos ser punidos e por várias outras razões. É necessária, sem dúvida, uma inteligente obediência à lei. Mas, há necessidade de qualquer outra forma de obediência? Por que deve o passado — digo psicologicamente, interiormente — condicionar a mente e, por essa maneira, impor-lhe restrições, obrigá-la á ajustar-se ao seu padrão? Dizemos que, se nenhum passado temos, na forma de conhecimento, não há ação possível. Se não houvesse conhecimentos acumulados — ou seja a ciência — nada poderíamos fazer, não poderíamos ter nossa moderna existência. O conhecimento científico, portanto, é essencial, e um homem precisa obedecer para poder ser um físico. Mas esse homem, para ser um físico criador, não um simples inventor de novidades mecânicas, deve desembaraçar-se do conhecimento e achar-se num total estado de negação — se posso empregar esta palavra — para poder ser sensível, alertado, em alto grau, e, assim, capaz de perceber algo novo.

A mente é moldada pelo passado, pelo tempo, por cada incidente, cada movimento, cada precedente vibração — ou pensamento. Pode esse passado — que na realidade é memória — ser apagado? Porque, se o não apagarmos (e é possível apagá-lo), nunca veremos algo novo, nunca experimentaremos algo totalmente imprevisto, desconhecido. No entanto, o passado está-nos sempre guiando, moldando; cada instinto, cada pensamento, cada sentimento é por ele guiado, ele que se constitui de memória; e a memória nos impele a obedecer, a seguir. Espero vos estejais observando em funcionamento, enquanto ouvis o que se está dizendo.

Onde a memória é necessária e essencial, e onde não é? Pois a memória é uma autoridade para a maioria de nós. Memória é toda a experiência acumulada, do passado, da raça, da pessoa; e a reação dessa memória é pensamento. Quando vos denominais hinduísta ou cristão, ou estais ligado a determinado movimento, tudo isso é reação da memória. Assim, só o homem que compreendeu realmente toda a anatomia, toda a estrutura da autoridade, da memória, pode experimentar algo totalmente novo. Por certo, se há ou não há Deus, isso só se pode descobrir quando a mente é de todo nova, quando ela já não está condicionada pela tradição de crença ou de descrença. Assim, pois, pode-se eliminar completamente a autoridade, a memória, que gera medo e da qual procede o impulso para obedecer? Como a maioria de nós está buscando a segurança, numa ou noutra forma, segurança física ou segurança psicológica — para termos segurança externamente, precisamos obedecer à estrutura da sociedade, e, para termos segurança interior, precisamos obedecer à experiência, ao conhecimento, à memória acumulada, e armazenada. É possível apagar por inteiro a memória, exceto a memória mecânica da existência diária, que em nada influi, que não cria, não gera mais memória? Quanto mais velhos ficamos, mais confiamos na autoridade; e, dessa maneira, todo o nosso pensar se torna estreito, limitado.

Para podermos operar uma mutação completa, cumpre duvidar a fundo da autoridade. Para mim, esse duvidar é bem mais importante do que investigar como ficar livre da autoridade; porque, duvidando, desvendaremos a natureza da autoridade, sua significação, seu valor, sua nocividade, seu caráter venenoso. Pelo duvidar, descobre-se o que é verdadeiro. O problema está então resolvido e ninguém precisa perguntar a si mesmo: Como poderei ficar livre da autoridade? Mas é absolutamente necessário duvidar de tudo, de todas as formas de crença e todas as formas de tradição, demolir todo o edifício. Do contrário, permaneceremos medíocres. Neste país, pode ser uma verdadeira calamidade a existência de líderes; a autoridade política, a autoridade do guru, a autoridade dos livros sagrados destruiu realmente todo o pensar e, por consequência, não existe um verdadeiro investigar. Se todas as investigações se iniciam com a aceitação da autoridade do Gita, da Bíblia, ou do que quer que seja, como é possível prosseguir a investigação? E como o homem que crê em Deus ou numa certa utopia querer investigar, indagar: seu investigar nenhuma validade tem.

A maioria de nós começa com a aceitação de uma certa autoridade. Poderá ser necessária à criança a aceitação de determinada autoridade; mas, quando a criança começa a crescer, começa a raciocinar, deve ser ensinada a pôr em dúvida os pais, a pôr em dúvida o mestre, a pôr em dúvida a sociedade; mas nunca lha ensinamos. Isso, naturalmente, não sucede porque, basicamente, existe o medo; e a mente temerosa só pode criar ilusões. E do medo nasce a autoridade. O homem sem medo não segue nenhuma autoridade, crença ou ideal; e só esse homem, é óbvio, pode descobrir se há, ou não, o Imensurável.

Entretanto, a autoridade é necessária na especialização. Para o homem que busca a liberdade (não a liberdade consistente em estar livre de alguma coisa, pois isso é uma reação e, por conseguinte, não é liberdade), para o homem que busca a liberdade, a fim de descobrir, a liberdade está justamente no começo, e não no fim. Para descobrirmos o verdadeiro, descobri-lo por nós mesmos, e não através do que nos dizem, ou nos transmitem livros sagrados (se eles existem), a mente deve ser livre. Do contrário, tornamo-nos apenas mecanizados, passando em nossos exames, obtendo emprego e seguindo o padrão da sociedade; e esse padrão é sempre corruptor, sempre destrutivo.

Com efeito, para o homem que busca o verdadeiro, a sociedade é um inimigo. Ele não pode reformá-la. É uma de nossas ideias favoritas, essa de que os bons reformarão a sociedade. O bom é o homem que abandona a sociedade. Com “abandonar” não estou significando “abandonar a casa, a roupa, o abrigo” mas, sim, abandonar as coisas que a sociedade representa, ou sejam, basicamente, autoridade, ambição, avidez, inveja, ânsia de aquisição — abandonar todas essas coisas que a sociedade tornou respeitáveis. Realmente, só com o profundo investigar é que começamos a destroçar o falso, a demolir o edifício erguido pelo pensamento para sua mesma proteção.

Krishnamurti, Varanasi, 03 de janeiro de 1961, A mutação Interior

sábado, 7 de abril de 2018

É o passado diferente do "eu"?

É o passado
diferente do "eu"?

PERGUNTA: Dizeis que o passado deve deixar de existir, para que o desconhecido possa existir. Tudo tentei para libertar-me de meu passado, mas minhas lembranças perduram e me absorvem inteiramente. Significa isso que o passado tem existência independente de mim? Se não, tende a bondade de mostrar-me como viver livre dele?

KRISHNAMURTI: Antes de mais nada, o passado é diferente do "eu"? O pensador, o observador, o experimentador é diferente do passado? O passado é memória, são todas as experiências do indivíduo, todas as suas ambições, o resíduo racial, a tradição, os valores culturais, as influências sociais — tudo isso constitui o passado, a memória. Quer estejamos conscientes de sua existência, quer não, ele existe. Ora, todo esse conjunto é diferente do "eu", que diz: "Desejo libertar-me do passado?"

Tende a bondade de acompanhar-me com paciência. Existe essa continuidade da memória, muito vasta e muito profunda, a qual, a todas as horas, está reagindo aos desafios. Essa memória é diferente do "eu" ou é "eu"? Entendeis? Se não existisse nome, relação com a família, o passado, a raça, etc., haveria "eu"? Haveria "eu", haveria pensador, se não houvesse pensamento? Ou achais que, acima do "eu", existe o Atman, uma entidade independente, sempre vigilante? Se existe essa entidade independente, nesse caso a mente, porque é dependente, é incapaz de conhecê-la. Estais seguindo? A mente, que ao mesmo tempo depende do passado e dele resulta, disse que existe o Atman, que observa do alto, que é livre, independente; mas, sem embargo, foi a mente dependente que disse tal coisa; portanto, isso a que ela chama Atman faz parte dela própria, está dentro da esfera da memória, da tradição. Isso é bastante claro, não? Pela tradição, pela repetição, pela leitura, etc., sois educados para crer que há uma coisa que é independente do "eu", uma coisa que transcende a memória; mas um homem que foi educado na Rússia, dirá que tal coisa não existe, que é puro disparate, que só há "eu". Assim, todos somos produtos de nossa educação, estamos condicionados por nosso passado, pelo meio cultural em que vivemos, pelas influências religiosas, políticas e sociais sob as quais fomos criados; e presumir, postular, supor que há algo superior a esse "eu" — embora tal coisa possa existir — é pensar de maneira muito infantil, imatura, e é isso que tem causado tanta confusão e tantos sofrimentos.

Não há, pois, nenhum "Eu" separado do passado. O "eu" é o passado, é a qualidade, a virtude, a experiência, o nome, as relações de família, as várias tendências, conscientes e inconscientes, a herança racial — tudo isso constitui o "eu", e a mente não está separada dele. A alma, o Atman faz parte da mente, porque foi a mente que inventou estas palavras.

O problema, portanto, é este: Como pode a mente, que é resultado do passado, libertar-se de sua própria sombra? Compreendeis? Como pode a mente, que é todo o conjunto de memória, libertar-se do passado? Está correta esta pergunta, senhores? Acho-a incorreta. O mais que a mente pode fazer é estar apercebida do passado, estar apercebida de como toda reação, toda "resposta" provém do passado — estar totalmente apercebida, sem o desejo de nada alterar, sem escolher, do passado, o que é bom e rejeitar o que é mau. Se a mente luta para destruir, esquecer ou alterar o passado, ela se separa do passado, criando assim uma dualidade e, portanto, conflito; e justamente esse conflito é que produz a deterioração da mente. Mas se, ao contrário, a mente perceber a totalidade de sua memória, ficando simplesmente cônscia dessa totalidade, vereis acontecer algo extraordinário. Sem esforço nenhum, o passado findou.

Experimentai-o, não porque eu o estou dizendo mas porque, assim, o vereis por vós mesmo. Uma mente que é resultado do passado não pode libertar-se do passado por seu próprio esforço. O mais que pode fazer é tornar-se apercebida de suas reações, apercebida de como guarda ressentimentos, para depois perdoar; como acumula, para depois renunciar; como escolhe, para depois tornar-se confusa. A mente que escolhe é uma mente confusa. Ficai cônscios de tudo isso, para verdes como a mente se tornará surpreendentemente tranquila. Não há mais escolha, então, porque a mente percebe a falácia de fazer algo para se libertar do passado. Desse percebimento resulta, não uma libertação do passado, mas um sentimento de liberdade, que faz o passado deixar de existir.

Krishnamurti, Quinta Conferência em Bombaim
18 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana


sexta-feira, 6 de abril de 2018

Há uma mente não contaminada pelo passado?


Há uma mente não
contaminada pelo passado?

SERIA interessante e proveitoso examinarmos nesta tarde a questão relativa ao fator de deterioração da mente. Quando jovens, somos muito zelosos, temos tantas ideias entusiásticas, revolucionárias, mas em geral acabamos enredados numa dada atividade e, lentamente, nos esgotamos. Vemos isso acontecer ao redor de nós e dentro de nós mesmos; e é possível deter esse mecanismo de deterioração, que constitui sem dúvida um dos nossos problemas principais? Se é ao capitalismo ou ao socialismo, à esquerda ou à direita, que cabe organizar o bem-estar mundial — agora, que a produção é imensa — não me parece ser esse o problema. Penso que o problema é muito mais profundo, e o problema é este: pode-se libertar a mente, de maneira que ela permaneça livre para sempre e, por conseguinte, não mais sujeita à deterioração?

Não sei se já pensastes neste problema, ou se já tendes observado como a pouco e pouco se esgota a vitalidade, o vigor, a vivacidade da nossa mente e ela se torna, gradualmente, um instrumento de hábitos e crenças mecânicos, um complexo de rotina e repetição. Se realmente temos pensado a este respeito, devemos ver que isso é um problema, para a maioria de nós. Quando vamos envelhecendo, o peso do passado, a carga das coisas lembradas, das esperanças, das frustrações, dos temores, tudo parece cercar e fechar a mente e dela nunca nos vêm coisas novas, mas só repetições, um sentimento de ansiedade, uma perpétua fuga de si mesmo e, por fim, o desejo de encontrar alívio de alguma espécie, um pouco de paz, um Deus que nos satisfaça completamente. Ora, se pudéssemos examinar bem esta questão, acho que seria muito proveitoso. Pode a mente ser libertada de todo esse mecanismo de deterioração e ultrapassar a si mesma, não de maneira misteriosa ou miraculosa, não amanhã ou noutra data futura, mas imediatamente, instantaneamente? Esse descobrimento pode ser função da meditação. Porque é, pois, que nossa mente se deteriora? Porque é que nada existe de original em nós, que tudo o que sabemos é mera repetição, que nunca há constância de criação? Estes são os fatos, não é verdade? Que é que causa essa deterioração, e pode a mente detê-la? Iremos debater a este respeito, dentro em pouco, e espero tomeis parte na discussão.

A mim é bem óbvio que existirá necessariamente deterioração, enquanto houver esforço. E pode-se observar que nossa vida está toda baseada no esforço — esforço para aprender, adquirir, reter, ser alguma coisa ou renunciar ao que somos e virmos a ser outra coisa. Haverá sempre esta luta de ser ou vir a ser, consciente ou inconscientemente, voluntariamente ou sob o impulso de desejos ocultos; e esta luta não é a causa principal da deterioração da mente?

Como disse, nós vamos debater esta questão, depois de eu dizer mais umas palavras, e peço-vos portanto não fiqueis apenas a ouvir palavras. Estamos tentando descobrir juntos por que razão a onda de deterioração está sempre a perseguir-nos. Sei que existe o problema imediato da alimentação, do vestir e morar, mas acho que temos de considerar este problema de um ângulo diferente, se queremos resolvê-lo; e mesmo àqueles de nós que têm o suficiente para comer e vestir e têm onde morar, apresenta-se outro problema que é muito mais profundo. Observa-se no mundo tanto a existência da extrema tirania como de uma liberdade relativa e se só nos interessasse a distribuição universal dos alimentos e outros produtos, então talvez a tirania absoluta pudesse ser útil. Mas nesse processo se destruiria a possibilidade de desenvolvimento criador do homem; e, se o que nos interessa é o homem total e não unicamente o problema social e econômico, neste caso acho que tem de surgir inevitavelmente uma questão muito mais fundamental. Porque existe este processo de deterioração, esta incapacidade de descobrir o novo, não no terreno científico, mas dentro de nós mesmos? Por que razão não somos criadores?

Se observardes o que está sucedendo, seja aqui, seja na Europa ou América, devereis perceber que quase todos estamos imitando, conformando-nos, obedecendo ao passado, à tradição, e como indivíduos jamais descobrimos, profundamente, fundamentalmente, coisa alguma por nós mesmos. Vivemos como máquinas, de onde nos advém um certo sentimento de desdita, não é verdade? Não sei se realmente investigastes isto, mas parece-me que uma das causas principais desse conformismo é o desejo de nos sentirmos interiormente seguros. Para se estar em segurança, psicologicamente, tem de haver separação, e para se estar separado necessita-se de esforço, esforço para ser algo; e esse pode ser um dos fatores que está impedindo o descobrimento de qualquer coisa nova, por parte de cada um de nós. Podemos discutir este ponto? (Pausa)

Muito bem, senhores, vamos expressar o problema de maneira diferente. Vê-se que a meditação é necessária, uma vez que, por meio da meditação, se podem descobrir muitas coisas. A meditação abre-nos a porta a experiências extraordinárias, tanto fantasiosas como reais; e estamos sempre a indagar como se medita, não é verdade? Os mais de nós lemos livros que prescrevem um sistema de meditação, ou recorremos a um certo instrutor para que nos ensine a meditar. Mas nós, aqui, queremos saber, não como meditar mas o que é meditação; e a própria investigação para saber o que é meditação, é meditação. Entretanto, nossa mente deseja saber como meditar e, desse modo, facilita-se a deterioração.

Se o pensamento é capaz de investigar com muita profundeza e de desnudar-se diante de si mesmo, sem procurar corrigir, mas sempre vigilante a fim de descobrir sem condenar, mas sempre examinando as coisas muito atentamente, então, esse estado mental pode chamar-se meditação. E essa mente, sendo livre, é capaz de descobrimentos. Para ela não existe deterioração, porque nunca há acumulação. Mas a mente que diz: "Ensina-me como tornar-me tranquila, como chegar lá, e me esforçarei para seguir o método que indicardes" — essa mente, é bem óbvio, é imitativa, sem audácia e, por conseguinte, está provocando a própria deterioração.

Aos mais de nós só interessa o coma, que é um meio de certeza, segurança. O como — por mais nobre, por mais exigente, por mais disciplinador que seja — só nos pode levar ao conformismo. A mente que quer ajustar-se pelos seus próprios esforços torna-se escrava de um método, perdendo, por conseguinte, a extraordinária capacidade de descobrimento. E se não houver o descobrimento, em vós mesmo, de algo original, novo, não contaminado, ainda que tenhais a mais perfeita organização para produzir e distribuir os meios de satisfazer as necessidades físicas, continuareis a ser igual a uma máquina. Por conseguinte, este problema vos concerne, não? Pode a mente, tão mecanizada que está, tão dominada pelo hábito, pelo passado, libertar-se do passado e descobrir o novo, chamai-o Deus ou como quiserdes? Podemos discutir sobre isto? (Pausa)

Senhores, este problema é novo para vós, ou acaso nunca pensastes nestas coisas por esta maneira? Mais uma vez vou expressar o problema de modo diferente.

Sois bem versados no Upanishads, no Gita, na Bíblia, estais bem familiarizados com a filosofia do hinduísmo, do cristianismo, do comunismo, etc.. Estas filosofias, estas religiões, muito evidentemente não resolveram o problema humano. Se dizeis: "O problema humano não foi resolvido, porque não temos seguido estritamente os preceitos do Gita" — a resposta óbvia que se pode dar é que, seguir qualquer autoridade, por mais nobre ou tirânica que ela seja, torna a mente mecanizada, sem originalidade, tal qual um disco de gramofone, que só é capaz de repetir e repetir e repetir; e em tal estado não se pode ser feliz.

Agora, conhecedores deste fato, de que maneira vos lançaríeis ao descobrimento do Real, por vós mesmos? Compreendeis, senhores Deus, a Verdade, ou o que quer que seja, tem de ser uma coisa totalmente nova, uma coisa fora do tempo, fora da memória, não achais Não pode ser uma coisa lembrada, do passado, uma coisa que foi dita ou conjeturada, criada pela mente. E como ireis descobrir essa coisa? Certamente, ela só pode ser descoberta quando a mente está livre do passado, quando a mente deixa de criar imagens, símbolos. Quando a mente formula imagens, símbolos, não é isso um autêntico fator de deterioração? É provável seja isso o que está acontecendo na Índia, bem como no resto do mundo.

Está claro o problema? Ou isso não é problema para vós?

INTERPELANTE: A mente não pode transcender suas próprias e passadas experiências.

INTERPELANTE: Quando a mente está condicionada...

KRISHNAMURTI: Perdão, aquele senhor fez uma pergunta.

INTERPELANTE: Foi uma pergunta ou uma declaração?

KRISHNAMURTI: Provavelmente a intenção era interrogativa. Infelizmente, em geral, tanto nos ocupamos com a formulação de uma pergunta ou com nossa própria maneira de considerar as coisas, que nunca escutamos realmente uns aos outros. Disse este cavalheiro que não é possível a mente libertar-se do passado. Este problema não nos concerne tanto que a ele?

INTERPELANTE: Se ele deseja saber como separar-se do passado, isto é uma pergunta e não uma declaração.

KRISHNAMURTI: Perdão, senhor, não estamos aqui para dar uma exibição um "show" de retórica, nem para provar quem tem razão e quem não tem razão. Estamos, verdadeiramente, tentando descobrir por que motivo a mente nunca descobre nada novo. Não nos estamos referindo, por ora, aos especialistas, tais como cientistas, físicos, etc., porém a nós mesmos, como entes humanos.

INTERPELANTE: A propósito da questão suscitada por aquele senhor, sobre se a mente pode rejeitar o passado, desejo perguntar o que se entende por "passado".

KRISHNAMURTI: O passado é experiência, memória, conhecimento, a influência da tradição, a impressão produzida pelo insulto e pela lisonja, pelos livros que temos lido, pelos risos, e pelo espetáculo da morte. Tudo isso é o passado — tempo.

INTERPELANTE: Dizeis que a mente está condicionada pelo passado. Mas, acha-se ela tão rigidamente condicionada pelo passado, que é incapaz de investigar mais além?

KRISHNAMURTI: Que é a mente, senhor? Não respondais teoricamente ou de acordo com o que lestes nos livros. Podemos vós e eu descobrir, aqui, nesta tarde, o que é a mente?

INTERPELANTE: A mente é produto do passado?

KRISHNAMURTI: Vossa mente é produto do passado? Que entendeis por "passado"?

INTERPELANTE: Tudo o que existe na minha mente, no presente, vem do passado.

KRISHNAMURTI: Pode a mente separar-se do passado? Examinemos a mente — não uma mente teórica, mas a mente de cada um de nós. Vossa mente é o resultado de numerosas influências, tanto coletivas como individuais, não é exato? Vossa mente é produto da educação, da alimentação, do clima, de muitos séculos de tradição; ela é constituída de vossas crenças, desejos, lembranças, das coisas que lestes, etc. Isso é a mente, pois não, senhor? A mente consciente que opera todos os dias, e a mente que se acha num nível profundo, oculto — todas duas são resultados do passado. Até onde é possível enxergar, todo o território da mente é resultado do passado. Podeis crer que há Deus ou que não há Deus, podeis pensar que existe um "eu superior" e um "eu inferior", etc.; mas tudo isso é resultado de vossa educação, vosso condicionamento, a que significa que vossa mente é resultado do passado, não achais? E essa mesma mente quer encontrar algo que seja novo. Diz ela: "Tenho de saber o que é Deus, o que é a Verdade". Não é isto que estamos fazendo, senhoras e senhores? E eu digo que isso é impossível, uma contradição.

INTERPELANTE: Parece-me que a maioria das pessoas, pouco se está importando com Deus. Todos estamos interessados nos problemas da vida.

KRISHNAMURTI: E daí resulta que existe antagonismo, animosidade, frustração, ânsia de poder, posição, prestígio; porque outro possui o que cobiçais, vos sentis invejoso, etc. Estes são problemas da vida, não? Desejar ser amado, desejar mais dinheiro, desejar melhorar as condições de vida em nossa aldeia, por este ou aquele sistema, ter uma crença ou um ideal, em contradição com a existência de cada dia — sendo preciso lançar uma ponte entre o fato e o ideal — tudo isso é a vida.

INTERPELANTE: Mas a vida é também algo mais. Se sou professor, desejo ensinar melhor.

KRISHNAMURTI: E isso redunda na mesma coisa. Tudo isso são problemas da vida, e quando tentamos resolver qualquer um deles, esbarramos na questão principal. Dizeis que desejais ensinar melhor, pensar melhor, viver uma vida mais plena, etc. Que entendeis por "pensar melhor"? É um processo de aquisição de mais conhecimentos? Como podeis saber o que é "melhor"?

INTERPELANTE: Pensando profundamente.

KRISHNAMURTI: Que significa "pensar profundamente”? E que significa "pensar"? Se não sabeis o que é pensar, não podeis pensar profundamente. Que é pensar? Fazei-me o favor de dizer o que é pensar.

INTERPELANTE: Pensar é o processo de suscitar associações sucessivas.

KRISHNAMURTI: Pergunto-vos o que é "pensar", e se observardes a vossa mente, vereis como estais "reagindo" a esta pergunta; e isso é que é pensar, não é? Entendeis o que estou dizendo?

INTERPELANTE: Está técnico demais.

KRISHNAMURTI: Observai-vos, e vereis. Faço-vos uma pergunta: "O que é pensar?"

INTERPELANTE: Perguntar o que e a mente e perguntar o que é pensar, é a mesma coisa.

KRISHNAMURTI: Eu quero saber o que é pensar. Ora, qual é o processo que entra em funcionamento, dentro em vós, em virtude desta pergunta?

INTERPELANTE: Quando queremos observar o pensar, a mente se imobiliza. Não se tem resposta alguma.

INTERPELANTE: O pensamento é uma coisa tão espontânea, que não sabemos o que é.

KRISHNAMURTI: Estou perguntando uma coisa: "Que é pensar?" Ora, que faz a vossa mente, quando se vos apresenta esta pergunta? Não desejais saber como opera a vossa mente? Que acontece quando a mente se vê em presença de uma pergunta desta natureza? Por um instante, a mente hesita, porque provavelmente nunca pensou nisso, anteriormente; depois, dá uma busca pelo depósito da memória, e diz "Vejamos: o Upanishads diz isto, a Bíblia diz aquilo. Bertrand Russell diz aquiloutro, e eu — que penso?" Assim sendo, procurais uma resposta no passado, não é verdade?

INTERPELANTE: Não estamos pensando em Bertrand Russell.

KRISHNAMURTI: É provável que não; mas esta é que é a verdadeira operação da vossa mente, quanto se vos faz uma pergunta. Se se vos pergunta sobre uma questão com que vossa mente está bem familiarizada, a resposta é imediata. Se alguém vos pergunta onde morais, respondeis imediatamente, porque isso vos é familiar, é uma associação constante. Mas se se vos faz uma pergunta estranha, vossa mente hesita, e esta hesitação indica que estais a procurar a resposta, não? E onde procurais a resposta? Na memória, é óbvio. Vosso pensar, portanto, é reação da memória. Não é?

INTERPELANTE: Significa isso que uma pessoa que perdeu a memória, é incapaz de pensar?

KRISHNAMURTI: O esquecimento completo chama-se amnésia, e uma pessoa que se acha nesse estado tem de aprender tudo de novo.

INTERPELANTE: A memória é coisa boa ou má!

KRISHNAMURTI: Se não soubésseis onde é vossa residência, que faríeis? Se ignorásseis o nome da rua que conduz à vossa casa, isso seria bom ou mau?

Estamos averiguando, senhor, o que é pensar. Para nós, em geral, pensar é reação da memória, não? Porque sei onde moro, respondo prontamente quando mo perguntam; e quando se me faz uma pergunta mais sutil, procuro na minha memória uma resposta. Mas a memória é experiência de séculos e, por isso, a minha resposta, inevitavelmente, tem de ser condicionada. Isto, certamente, é bastante óbvio.

Senhor, se sois hinduísta e eu vos perguntar se há reencarnação, vossa reação instintiva é de dizer que há, e esta reação se baseia na influência de vossos pais, vossos livros sagrados e o meio que vos circunda. Respondeis de acordo com o que vos ensinaram; vosso pensar é resultado de influência e, portanto, está evidentemente condicionado. Agora, perguntamos a nós mesmos, pode a mente dissociar-se do passado e descobrir o que é verdadeiro?

INTERPELANTE: Pareceis descrever a mente como uma coleção de experiências passadas, e acho que todos concordamos com isso; mas agora perguntais se a mente pode dissociar-se delas. Que significa isto?

KRISHNAMURTI: Estais perguntando a mim ou a vós mesmo?

INTERPELANTE: Pergunto-o a mim mesmo e a vós também.

KRISHNAMURTI: Antes assim. Estais perguntando a vós mesmo e não a mim. A mente é resultado do tempo, e pode essa mente, em algum tempo, descobrir qualquer coisa nova, que deve ser necessariamente atemporal? Compreendeis minha pergunta, senhor? Percebo que minha mente é constituída do passado; entretanto, ela é o único instrumento capaz de observar e descobrir. Que deve ela então fazer? Não há nenhum outro instrumento de descobrimento; mas o instrumento que temos — a mente — é resultado do passado; isto é um fato e não há negação nem discussão que possa influir nesse fato. E pode essa mente, em algum tempo, descobrir qualquer coisa nova? Ou o conhecido, que é o passado — embora eu possa estar inconsciente dele — continuará sempre, de modo que só pode haver uma continuidade do conhecido, sob formas diferentes? Se a mente em tempo algum pode experimentar o desconhecido, — o que quer que ele seja — tratemos então de modificar o conhecido, embelezá-lo, poli-lo, acumular mais conhecimentos, porém mantendo-nos sempre dentro do território da mente, do conhecido. Estais seguindo, senhor? Esta suposição de que a mente se acha numa situação irremediável, de que nunca pode sair de seu próprio território, porque ela é resultado do conhecido, essa suposição bem pode ser o verdadeiro fator de deterioração. Entendeis o que quero dizer? Se admitis isso, então é óbvio que precisais estar sempre polindo a mente, arrumando-a, disciplinando-a, enchendo-a de conhecimentos, etc. Não tendes então problema algum, porque estais vivendo na esfera do conhecido. Mas, no instante em que começais a investigar o desconhecido, surge-vos o problema, não é verdade, senhor?

INTERPELANTE: Começastes perguntando o que é pensar. A mim me parece que o pensar está sempre em relação com alguma coisa, não havendo "pensar puro".

KRISHNAMURTI: Pensar é reação a desafio, não é? Não há pensar isolado. É só quando há um desafio, é que reagis. Mesmo se estais a pensar, recolhido em vosso quarto de dormir, aonde não vos vem nenhum desafio do exterior, o pensar é ainda reação a um desafio procedente de dentro de vós mesmo. Existe esta constante relação de desafio e reação, e visto que reagis de acordo com vossas crenças, vossa educação ou criação, etc., vossa resposta ou reação é sempre limitada, pouco significativa. Estamos agora investigando onde é que o pensamento cessa e surge uma coisa nova, que não é pensar.

INTERPELANTE: Estais perguntando onde o pensamento acaba e a meditação começa.

KRISHNAMURTI: Exatamente, senhor. Onde acaba o pensamento? Um momento. Eu estou indagando o que é pensar, e digo que essa própria indagação é meditação. Isto não quer dizer que primeiro o pensar se acaba e depois começa a meditação. Acompanhai-me, senhoras e senhores, passo a passo. Se eu puder descobrir o que é pensar, nesse caso nunca terei de perguntar como se medita, porque no próprio processo de indagar, investigar o que é pensar, está a meditação. Mas isto significa que tenho de dispensar toda a atenção ao problema, e não meramente concentrar-me nele, o que é uma forma de distração. Não sei se me estou explicando bem.

Quando procuro descobrir o que é pensar, tenho de prestar toda a atenção, atenção em que não pode haver esforço nem atrito, porque no esforço, no atrito, há distração. Se estou realmente interessado em descobrir o que é pensar, este próprio investigar produz uma atenção, sem desvio, sem conflito, sem o sentimento de que devo prestar atenção.

Que é, pois, pensar? Pensar é — vejo-o — reação da memória, não importa em que nível — consciente ou inconsciente; ele é sempre reação procedente daquela esfera da mente constituída pelo conhecido; passado. A mente percebe isso como um fato. Depois, pergunta a si mesma se todo pensar é meramente verbal, simbólico, reação do passado; ou existe pensamento sem palavras, sem o passado?

Ora, é possível averiguar se há alguma atividade da mente, não contaminada pelo passado? Estais compreendendo, senhores? Estou investigando, não estou supondo nada. A mente percebe que ela própria é resultado do passado e pergunta a si mesma se lhe é possível libertar-se do passado. Se a mente responde desta ou daquela maneira, se diz que é possível ou que não é possível, tal suposição, nesse caso, é resultado do passado, não é? Por favor, acompanhai-me, passo a passo, e vereis. A mente está apercebida de ser resultado do passado; está perguntando se pode libertar-se do passado; e percebe que qualquer suposição de que pode ou de que não pode libertar-se, é produto do passado. Qual é pois o estado da mente dissociada do passado, da mente que nada supõe?

INTERPELANTE: Já não é a mente — a mente limitada que conhecemos.

KRISHNAMURTI: Não chegamos ainda aí. Precisamos ir de vagar.

INTERPELANTE: A questão é: Quem é que pensa?

KRISHNAMURTI: Nós sabemos quem pensa, senhor. A mente se dividiu em pensador e pensamento — mas continua a ser "a mente", é claro. Todo esse processo de separação de pensador e pensamento continua no território da mente que é resultado do tempo, do passado. E a mente pergunta agora a si mesma se se pode libertar do passado.

INTERPELANTE: Se nós, que vos escutamos, duvidamos da verdade do que estais dizendo, nosso antigo condicionamento continuará a existir. Se, por outro lado, temos fé no que estais dizendo, nossa mente estará de novo condicionada por isso, pelo que dizeis.

KRISHNAMURTI: Não vos estou pedindo que tenhais fé. Estou apenas observando o funcionamento de minha mente e espero estejais fazendo a mesma coisa. Estamos a observar o funcionamento da mente e a descobrir os seus mecanismos. É isso o que todos estamos fazendo, — o que não significa que devemos ou não devemos ter fé. Estamos procurando descobrir como nossa mente opera — e isto é meditação.

INTERPELANTE: Como é que o cientista descobre algo novo?

KRISHNAMURTI: Se vós e eu fôssemos cientistas, poderíamos conversar a este respeito; mas não somos cientistas, somos indivíduos comuns e estamos tentando investigar se a mente é capaz de descobrir alguma coisa nova. Qual o processo respectivo?

São horas de pararmos. Posso investigar a questão mais um bocadinho?

Estou observando o funcionamento da minha mente. Só isso. Há desafio e reação. A reação é invariavelmente de acordo com o meio cultural, os valores, a tradição em que a mente foi criada e que, por ora, chamaremos condicionamento. A mente, percebendo isso, pergunta a si mesma: "Toda reação é produto desse condicionamento, ou é possível reação fora dele? Eu não digo que é nem que não é possível. A mente só está perguntando, de si para si. Qualquer suposição, de sua parte, de que isso é possível ou impossível, é ainda reação do "fundo". Isto está claro, não? Portanto, a mente só pode dizer "Não sei". Esta é a única resposta adequada à pergunta sobre se a mente pode libertar-se do passado.

Agora, quando dizeis "não sei", em que nível, em que profundidade o dizeis? Trata-se, apenas, de uma declaração verbal ou é a totalidade do vosso ser que está dizendo "Não sei"? Se todo o vosso ser diz, genuinamente: "Não sei" — isso significa que já não estais recorrendo à memória para encontrar a resposta. Não está então a mente livre do passado? E tal processo de investigação não é meditação? A meditação não é um processo de aprender a meditar; ela é a própria investigação sobre "o que é meditação". Para investigar o que é meditação, a mente tem de libertar-se de tudo o que aprendeu sobre a meditação; e a libertação da mente, das coisas que aprendeu, é o começo da meditação.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Benares, 25 de dezembro de 1955
Da Solidão à Plenitude Humana



quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Pode uma pessoa realmente libertar-se da tradição?

Interrogante: Pode uma pessoa libertar-se realmente da tradição? Pode alguém ficar livre do que quer que seja? Ou a questão é de nos esquivarmos dela e não nos deixarmos preocupar com ela? Você tem falado muito a respeito do passado e do seu condicionamento; mas tenho de fato alguma possibilidade de libertar-me disso que constitui o próprio "fundo" de minha vida? Ou só tenho a possibilidade de modificar esse fundo em conformidade com diferentes desafios e necessidades externas, a ele me acomodar, em vez de me livrar dele? Essa me parece ser uma das coisas mais importantes, e eu gostaria de compreendê-la porque sempre tive o sentimento de que estou levando um fardo, o peso do passado. Eu bem gostaria de aliviar-me dele para sempre. É possível isso?

Krishnamurti: "Tradição" não significa transportar o passado para o presente? O passado não são apenas nossas heranças pessoais, mas também o peso do pensamento global de um determinado grupo de pessoas que vivem numa determinada cultura e tradição. Levamos conosco toda a acumulação de conhecimentos e experiências da raça e da família. Tudo isso é o passado: o transporte do conhecido para o presente, que forma o futuro. Não é tradição tudo o que a História nos ensina? Você pergunta se uma pessoa pode libertar-se dela. Antes de mais nada, porque deseja ela libertar-se? Porque deseja aliviar-se dessa carga? Porquê? 

Interrogante: Isso me parece bem simples. Eu não desejo ser o passado; quero ser eu mesmo. Quero expurgar-me de toda essa tradição, para poder tornar-me um ente humano novo. Penso que na maioria de nós existe esse sentimento, esse desejo de renascer. 

Krishnamurti: Você não pode "tornar-se novo" pelo simples fato de o desejar ou de lutar para ser novo. Você tem, não só de compreender o passado, mas também de descobrir quem é. Você não é o passado? Não é a continuação do que foi, modificado pelo presente?

Interrogante: São em minhas ações e pensamentos, mas minha existência não o é. 

Krishnamurti: Pode-se separar as duas coisas — a ação e o pensamento — da existência? Meu pensamento, minha ação, minha existência, meu viver e minhas relações — tudo isso não é a mesma coisa? A fragmentação em "eu" e "não eu" faz parte dessa tradição.

Interrogante: Você quer dizer que, quando não estou pensando, quando o passado não está funcionando, eu estou completamente apagado, deixei de existir?

Krishnamurti: Deixemos de perguntas supérfluas e consideremos o ponto com que iniciamos esta palestra. Pode uma pessoa libertar-se do passado — não apenas do passado recente, mas também do passado imemorial — do passado coletivo, racial, humano, animal? Você é todo ele, dele não está separado. E você perguntou se tem a possibilidade de pô-lo de parte e renascer. O "você" é o passado e, quando você deseja renascer como uma entidade nova, a nova entidade que você imagina é uma projeção da velha, coberta da palavra "nova". Mas, por baixo, você é o passado. A questão, pois, é se o passado pode ser posto de parte ou se continua a haver, infinitamente, uma forma "modificada" de tradição — a mudar, a acumular, a rejeitar, porém sempre o passado, em diferentes combinações. O passado é a causa, e o presente o efeito, e hoje — o efeito do ontem — se torna a causa do amanhã. Essa cadeia é a maneira de ser do pensamento, pois o pensamento é o passado. Você pergunta se pode ser detido esse movimento de ontem para o hoje. Pode-se olhar e examinar o passado, ou isso é completamente impossível? Para olhá-lo, o observador deveria estar fora dele — mas não está. E apresenta-se, assim, outro problema: Se o próprio observador é o passado, como isolar o passado, para observá-lo? 

Interrogante:  Posso observar uma coisa objetivamente...

Krishnamurti: Mas você, o observador, é o passado que está tentando observar a si próprio. Você só pode "objetivar" a si mesmo como uma imagem que formou através dos anos, em relações de toda espécie e, portanto, o "você" que "objetiva" é memória e imaginação — o passado. Você quer olhar-se como se fosse uma entidade diferente daquela que está olhando, mas, você é o passado, com seus velhos juízos, avaliações, etc. A ação do passado está a observar, a olhar, a memória do passado. E, assim, você nunca ficará livre do passado. O contínuo exame do passado pelo próprio passado perpetua o passado; esta é a ação mesma do passado, a ação mesma da tradição. 

Interrogante: Que ação então é possível? Se eu sou o passado — e vejo que o sou — então, tudo o que eu faço para apagar o passado estará aumentando o passado. Vejo-me assim numa situação irremediável! Que posso fazer? Não posso rezar, porque a invenção de um Deus é também o passado. Não posso recorrer a outrem, porque esse outrem é também uma criação de meu desespero. Não posso fugir, porque no fim de minha fuga, vejo que ainda estou levando o meu passado. Não posso identificar-me com uma imagem não pertencente ao passado, porque essa imagem é igualmente projeção minha. Em vista de tudo isso, vejo-me numa situação irremediável, em desespero. 

Krishnamurti: Porque você diz "situação irremediável" e "desespero"? Não está traduzindo o que vê como sendo o passado, numa ansiedade emocional, por não poder alcançar um certo resultado? Com isso, está novamente fazendo o passado atuar. Ora, você pode olhar todo esse movimento do passado, com todas as suas tradições, sem desejar se livrar dele, sem modificá-lo ou dele fugir; ficar simplesmente a observá-lo, sem nenhuma reação? 

Interrogante: Mas, como temos dito no decurso desta palestra, como posso eu observar o passado, se sou o passado? Eu não posso de modo nenhum olhá-lo!

Krishnamurti: Pode olhar a si mesmo, que é o passado, sem nenhum movimento do pensamento, que é o passado? Se você pode olhar sem pensar, sem avaliar, gostar, não gostar, julgar, isso é olhar com os olhos não contaminados pelo passado. É olhar em silêncio, sem barulho produzido pelo pensamento. Nesse silêncio, não há o observador e a coisa que ele está observando — o passado. 

Interrogante: Você quer dizer que, quando se olha sem avaliação ou julgamento, o passado desapareceu? Mas, ele não desapareceu — existem ainda os milhares de pensamentos, e ações, e todas as ninharias que, um momento atrás, pulavam. Olho, e vejo que tudo isso existe ainda. Como você pode dizer que o passado desapareceu? Poderá ter detido, momentaneamente, o seu movimento...

Krishnamurti: Quando a mente está em silêncio, esse silêncio é uma dimensão nova, e se alguma ninharia subsistir, será instantaneamente dissolvida, porque a mente tem agora uma energia de qualidade diferente, que não é a energia gerada pelo passado. É isto que importa verdadeiramente: ter essa energia que dissipa tudo o que vem do passado. O "transportar" do passado é uma energia de espécie diferente. O silêncio dissolve essa outra energia; o maior absorve o menor e permanece intato. Semelhante o mar, que recebe as águas impuras do rio e permanece puro. Isso é que é importante. Só essa energia pode apagar o passado. Ou temos o silêncio, ou temos o barulho do passado. No silêncio, o barulho cessa, e o novo é esse silêncio. Não é você que se torna novo. Esse silêncio é infinito, e o passado é limitado. Na plenitude do silêncio, o condicionamento do passado cai por terra.

Krishnamurti em, A luz que não se apaga

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Como pode o “eu”, libertar-se de sua própria sombra?

da-solidao-a-plenitude-humanaPergunta: Dizeis que o passado deve deixar de existir, para que o desconhecido possa existir. Tudo tentei para libertar-me de meu passado, mas minhas lembranças perduram e me observam inteiramente. Significa isso que o passado tem existência independente de mim? Se não, tende a bondade de mostrar-me como viver livre dele?

Krishnamurti: Antes de mais nada, o passado é diferente do “eu”? O pensador, o observador, o experimentador é diferente do passado? O passado é memória, são todas as experiências do indivíduo, todas as suas ambições, o resíduo racial, a tradição, os valores culturais, as influências sociais —tudo isso constitui o passado, a memória. Quer estejamos conscientes de sua existência, quer não, ele existe. Ora, todo esse conjunto é diferente do “eu”, que diz: “Desejo libertar-me do passado”?

Tende a bondade de acompanhar-me com paciência. Existe essa continuidade da memória, muito vasta e muito profunda, a qual, a todas as horas, está reagindo aos desafios. Essa memória é diferente do “eu” ou é “eu”? Entendeis? Se não existisse nome, relação com a família, o passado, a raça, etc., haveria “eu”? Haveria “eu”, haveria pensador, se não houvesse pensamento? Ou achais que, acima do “eu”, existe o Atman, uma entidade independente, sempre vigilante? Se existe essa entidade independente, nesse caso a mente, porque é dependente é incapaz de conhecê-la. Estais seguindo? A mente, que ao mesmo tempo depende do passado e dele resulta, disse que existe o Atman, que observa do alto, que´é livre, independente; mas, sem dúvida, foi a mente dependente que disse tal coisa; portanto, isso a que ela chama Atman faz parte dela própria, está dentro da esfera da memória, da tradição. Isso é bastante claro, não? Pela tradição, pela repetição, pela leitura, etc., sois educados parar crer que há uma coisa que é independente do “eu”, uma cosia que transcende a memória; mas um homem que foi educado na Rússia, dirá que tal coisa não existe, que é puro disparate, que só há “eu”. Assim, todos somos produtos de nossa educação, estamos condicionados por nosso passado, pelo meio cultural em que vivemos, pelas influências religiosas, políticas e sociais sob as quais fomos criados; e presumir, postular, supor que há algo superior a esse “eu” — embora tal coisa possa existir — é pensar de maneira muito infantil, imatura, e é isso que tem causado tanta confusão e tantos sofrimentos.

Não há, pois, nenhum “Eu” separado do passado. O “eu” é o passado, é a qualidade, a virtude, a experiência, o nome, as relações de família, as várias tendências, conscientes e inconscientes, a herança racial — tudo isso constitui o “eu”, e a mente não está separada dele. A alma, o Atman faz parte da mente, porque foi a mente que inventou estas palavras.

O problema, portanto, é este: Como pode a mente, que é resultado do passado, libertar-se de sua própria sombra? Compreendeis? Como pode a mente, que é todo o conjunto de memória, libertar-se do passado? Está correta esta pergunta, senhores? Acho-a incorreta. O mais que a mente pode fazer é estar cônscia do passado, estar cônscia de como toda reação, toda “resposta” provém do passado — estar totalmente cônscia, sem o desejo de nada alterar, sem escolher, do passado, o que é bom e rejeitar o que é mau. Se a mente luta pra destruir, esquecer ou alterar o passado, ela se separa do passado, criando assim uma dualidade e, portanto, conflito; e justamente esse conflito é que produz a deterioração da mente. Mas se, ao contrário, a mente perceber a totalidade de sua memória, ficando simplesmente cônscia dessa totalidade, vereis acontecer algo extraordinário. Sem esforço nenhum, o passado findou.

Experimentai-o, não porque eu o estou dizendo mas porque assim, o vereis por vós mesmo. Uma mente que é resultado do passado não pode libertar-se do passado por seu próprio esforço. O mais que pode fazer é tornar-se cônscia de suas reações, cônscia de como guarda ressentimentos, para depois perdoar; como acumula, para depois renunciar; como escolhe, para depois tornar-se confusa. A mente que escolhe é uma mente confusa. Ficai cônscios de tudo isso, para verdes como a mente se tornará surpreendentemente tranquila. Não há mais escolha, então, porque a mente percebe a falácia de fazer algo para libertar-se do passado. Desse percebimento resulta, não uma libertação do passado, mas um sentimento de liberdade, que faz o passado deixar de existir.

Krishnamurti — 5ª Conferência em Bombaim, 18 de março de 1956
Extraído do livro: Da Solidão à plenitude humana
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill