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domingo, 22 de abril de 2018

A incapacidade de sentir com intensidade e força

Um dos maiores problemas com que se confronta cada um de nós é, parece-me, uma total falta de intensidade no sentir. Temos uma certa agitação emocional constante, relativamente às nossas atividades — o que se deve fazer ou o que não se deve fazer. Entusiasmamo-nos com coisas que, na realidade, não têm qualquer importância. Mas, segundo me parece, há falta de paixão — não por um determinado fim a atingir, não por algum objetivo a alcançar; refiro-me à capacidade de sentir com intensidade e força.

Geralmente, temos mentes muito superficiais — mentes limitadas, estreitas, presas a uma rotina fútil — que vão funcionando sem problemas, a não ser que aconteça um acidente qualquer; há então perturbação, mas, depois delas, as nossas mentes voltam ao estado anterior, submetendo-se a uma nova rotina. A mente superficial não é capaz de encarar problemas. Tem problemas inumeráveis, todo o problema da existência. Mas invariavelmente traduz esses problemas extraordinariamente significativos, que são os problemas da vida, de acordo com o seu entendimento superficial, estreito, limitado, e procura desviar esta caudalosa corrente da vida para os seus acanhados estreitos canais. E é com isso que estamos confrontados agora — e talvez sempre tenhamos estado. Mas muito mais agora, dado que o desafio é muito mais forte, e exige uma resposta igualmente intensa, igualmente enérgica, igualmente viva.

Esta paixão a que nos referimos não é coisa que se possa cultivar facilmente, tomando determinada droga, ficando hipnotizado por certos ideais, etc.. Ela vem naturalmente — tem de vir. Estou a usar propositadamente a palavra paixão. Em geral, só empregamos esta palavra em relação ao sexo; ou quando se sofre intensamente, “apaixonadamente”, tentando-se então terminar esse sofrimento. Mas estou a usar a palavra paixão no sentido de um estado da mente, um estado de ser, um estado da nossa íntima essência — se tal coisa existe — que sente intensamente, que é altamente sensível — igualmente sensível à sujidade, à sordidez, à pobreza, às enormes fortunas e à corrupção, à beleza de uma árvore, de um pássaro, ao correr da água, ao lago que reflete o céu crepuscular. E necessário sentir tudo isso fortemente, intensamente. Porque sem paixão a vida torna-se vazia, superficial e sem muito sentido. Se somos incapazes de ver a beleza de uma árvore e de sentir intensa afeição e interesse por ela, não estamos vivos. Uso as palavras “não estamos vivos” intencionalmente, porque, neste país, a religião parece estar completamente divorciada da beleza.

Se não somos sensíveis a essa extraordinária beleza da vida, à beleza de um rosto, às linhas de um edifício, à forma de uma árvore, ao voo de um pássaro, à canção da manhã — se não estamos atentos a tudo isso, se não sentimos intensamente tudo isso, então, obviamente, a vida, que é cooperação e relação, não tem nenhum sentido; estamos então a funcionar mecanicamente. É sobre isso que gostaria de falar esta tarde.

Esta paixão não é devoção, não é sentimentalismo; e nada tem em comum com sensualidade. Se a paixão tem algum motivo, ou se é inspirada por algum motivo, ou se é paixão por alguma coisa, torna-se prazer e dor. Por favor compreendamos isto. Não tenho agora de entrar cm detalhes, pois vamos continuar a investigar esta questão. Se a paixão é estimulada sexualmente, ou se é paixão por alguma coisa que se deseja atingir, se tem uma causa, se tem um fim em vista, então, nessa chamada paixão há frustração, há dor, há a exigência da continuação do prazer e, portanto, o medo de não ter esse prazer, a preocupação de evitar a dor. Assim, a paixão com um motivo, ou a paixão que é estimulada, acaba invariavelmente em desespero, dor, frustração, ansiedade.

Estamos a falar da paixão que não tem motivo algum — e que é completamente diferente. Se existe ou não, é a vós que pertence descobrir. Mas sabemos que a paixão que é estimulada termina em desespero, em ansiedade, em dor, ou na exigência de uma determinada forma de prazer. E nisso há conflito, há contradição, há uma exigência constante. Estamos a referir-nos a uma paixão sem motivo. Essa paixão existe. Não tem nenhuma relação com qualquer ganho ou perda pessoal, nem com as mesquinhas exigências de um determinado prazer, ou a preocupação de evitar a dor. Sem essa paixão não há possibilidade de se cooperar verdadeiramente, e cooperação é vida, que é relação. Tal cooperação não é a favor de uma ideia; coopera-se, não porque se é levado a isso pelo Estado, nem porque se quer ter uma recompensa ou evitar uma punição, nem porque se trabalha por um certo ideal econômico, por uma utopia; coopera-se, mas não no sentido de trabalhar em comum por algum ideal — tudo isso, para nós, não leva à verdadeira cooperação.

Estou a referir-me ao espírito de cooperação. Se não cooperamos, não pode haver autêntico relacionamento. A vida exige que vós e eu cooperemos, façamos coisas juntos, trabalhemos juntos, sintamos juntos, vivamos juntos, compreendamos coisas juntos. E este “sentido de união” tem de ser ao mesmo tempo, tem de ter a mesma intensidade e estar ao mesmo nível; de outro modo não há união. Se observarmos bem este mundo tão triste e destrutivo, vemos que a mente se está a tornar mecânica, rotineira e, no aspecto tecnológico, está a ser mantida num estreito canal. E, portanto, o sentido de intensidade, a capacidade de sentir intensamente em relação a alguma coisa desaparece gradualmente. E se não somos capazes de sentir intensamente, é óbvio que a mente está sensibilizada, está entorpecida, está com medo, etc...

Assim, a paixão de que estamos a falar é um estado de ser. E realmente um estado extraordinário, como hão de ver se nele penetrarem, um estado sem mancha de sofrimento, sem autopiedade, sem medo. E para o compreender, temos de compreender o desejo. Especialmente os que foram criados com ideias e sanções religiosas de uma dada sociedade, onde a chamada religião tem uma grande influência, pensam que, para “realizar” o que chamam Deus, a mente tem de estar sem desejo; acham que a ausência de desejo, o não ter desejo, é uma das primeiras e mais importantes condições. Provavelmente conheceis todos os livros que falam disto, todas as citações dos livros religiosos, e tudo o resto. Conseguimos matar toda a paixão, exceto num único aspecto — sexualmente. E conseguimos dominar o desejo. A sociedade, a religião, a vida em comum — de tudo isso fizemos uma coisa sem vitalidade, porque temos a ideia de que um homem, um ser humano que sente de modo muito forte, muito próximo de um desejo intenso, não tem possibilidade de compreender aquilo a que se chama Deus.

Que mal há no desejo? Todos o temos, o sentimos, muito intensamente ou de maneira vaga; todos sentem desejo, de uma ou de outra espécie. Que mal há nele? Por que aceitamos tão facilmente subjugar, destruir, perverter, reprimir o desejo? Porque, evidentemente, o desejo traz conflito — o desejo de riqueza, posição, fama, etc. E alcançar fama, adquirir posses, desejar com muita força, implica conflito, perturbação; e não desejamos ser perturbados. E só isso que procuramos essencialmente, profundamente — não ser perturbados. E quando nos vemos perturbados tentamos encontrar uma saída dessa situação e voltar a instalar-nos num estado reconfortante, onde nada nos venha perturbar.

Assim, o desejo é olhado por nós como uma perturbação. Reparemos nisto, por favor. Estamos a apontar fatos psicológicos — não se trata de uma questão de aceitar ou não aceitar, de concordar ou discordar. São fatos, e não opiniões minhas. O desejo torna-se assim uma coisa que é preciso controlar, reprimir; e, portanto, esforçamo-nos nesse sentido — custe o que custar, não vamos deixar-nos perturbar, e tudo o que possa perturbar deve ser reprimido, “sublimado” ou posto de lado.

Como dissemos outro dia e de novo dizemos em cada palestra, o que é importante não é ouvir as palavras, mas escutar realmente. Há grande beleza no escutar. Esta tarde, vimos da janela um pássaro, um alcião. Tinha um bico comprido e penas brilhantes, de cor intensamente azul. Estava a chamar, com o seu canto, e outra ave da mesma espécie, outro alcião, respondia ao longe. Ficar apenas a escutá-lo — sem dizer, “É um alcião. Como é belo!”, ou “Como é feio!”, “Quem me dera que aquela espécie de corvo parasse de grasnar!” — não sei se já alguma vez escutaram com esse estado de espírito. Escutar, simplesmente — quando não há nada a lucrar, quando não há qualquer objetivo utilitário; escutar, quando não se está a tentar alcançar, ou evitar, alguma coisa. Ou olhar o sol poente, aquele esplendor do entardecer, aquele brilho de Venus, aquele pequeno retalho de lua crescente — olhar, apenas, e sentir intensamente tudo isso.

Se escutarmos, de fato, nessa feliz disposição, tranquilamente, sem qualquer tensão, então o próprio ato de escutar é um verdadeiro milagre. Milagre, porque nessa ação, nesse momento, compreendemos tudo o que está contido no ato de escutar, de perceber, de ver; foram eliminadas todas as barreiras, e há espaço, entre nós e o mundo, e aquilo que estamos a escutar. Precisamos de ter esse espaço para observar, ver, escutar; quanto mais amplo, quanto mais profundo ele for, mais beleza e profundidade haverá. E algo de qualidade diferente surge quando há esse espaço entre nós e aquilo que estamos a escutar.

Não estou a ser poético, sentimental ou romântico. Mas, na realidade, não sabemos escutar, escutar simplesmente — escutar a nossa mulher, ou o nosso marido, que está a implicar, a questionar, a zangar-se ou a arreliar-nos. Quando apenas escutamos, compreendemos muito; e os céus abrem-se-nos largamente. Façamos isso, de quando em quando; não o tentemos apenas — façamo-lo, e descobriremos por nós mesmos.

Espero que estejais a escutar dessa maneira. Porque aquilo de que estamos a falar é algo que está além da mera palavra. A palavra não é a coisa. A palavra “paixão” não é paixão. Sentir aquilo que transcende a palavra, e deixar-se “captar” por isso, sem qualquer volição, sem diretiva ou objetivo, escutar aquilo a que se chama desejo, escutar os nossos próprios desejos — e temos tantos, vagos ou intensos — então, quando os escutarmos, veremos o enorme mal que fazemos quando reprimimos o desejo, quando o distorcemos, quando queremos satisfazê-lo, quando queremos fazer alguma coisa em relação a ele, quando temos uma opinião a seu respeito.

A maior parte das pessoas perdeu o sentir apaixonado. Talvez o tenha tido outrora, na juventude — talvez apenas num vago murmúrio — tornar-se rico, alcançar a fama, e viver uma vida burguesa, respeitável... Mas a sociedade — que é o que nós somos — reprime o sentir. E, assim, cada um é levado a ajustar-se àqueles que estão “mortos”, que são “respeitáveis”, que não têm sequer uma centelha de paixão; e passa então a fazer parte deles, perdendo assim o sentir apaixonado.

Para compreender todo este problema do desejo, temos de compreender o esforço. Porque, desde o momento em que vamos para a escola até morrermos, vivemos num constante esforço; a nossa mente, a nossa psique, é um campo de batalha. Nunca há um momento de quietação, de descompressão, de liberdade; estamos sempre a batalhar, a lutar, a esforçar-nos, a adquirir, a evitar, a acumular — é isto a nossa vida! Não estou a descrever uma coisa que não existe. A nossa vida é esforço constante. Não sei se já notastes que quando não fazemos qualquer esforço o que não quer dizer estagnar ou dormir — quando todo o nosso ser está tranquilo, sem esforço, então vemos as coisas com muita clareza e penetração, com vitalidade, energia, paixão.

Fazemos esforço, porque somos impelidos por dois ou mais desejos contrários. Estamos sempre a opor um desejo a outro desejo, o desejo de ter e o desejo de não ter — se temos realmente este problema... Mas se temos um só desejo, não há então problema nenhum. Procuramos satisfazê-lo implacavelmente, lógica ou ilogicamente, com todas as suas consequências — dor, prazer. Mas como em geral somos um pouco civilizados — embora não demais... — temos esses desejos contrários e assim há sempre uma batalha.

Há o preceito religioso que manda viver sem desejo — o padrão, o ideal estabelecido por este ou aquele instrutor, este ou aquele “guru”, por meio de uma constante repetição. Há o padrão implantado na consciência, através de séculos de propaganda, a que chamam “religião”. E há também, por outro lado, o desejo instintivo de cada um, em face das exigências, das pressões, das tensões cotidianas. Há assim contradição entre o padrão religioso e o desejo. E a pessoa tem de reprimir um e aceitar o outro, ou recusar o outro e não abandonar aquele que tem — e tudo isso implica esforço.

Para mim, todo o ato de “vontade”, todo o ato de desejo — e o desejo é uma reação — tem de trazer consigo esforço e contradição, e implica, portanto, uma mente dividida, dilacerada entre desejos inumeráveis. Por exemplo, vê-se uma determinada coisa, um carro, um belo carro; tomamos contacto com ele por meio dos sentidos, e vem-nos então o desejo de o possuir. Ou podemos ter qualquer outra forma de desejo — mas podemos sempre observar por nós mesmos como o desejo nasce. Quando nasce em nós qualquer desejo, temos também consciência do desejo de o reprimir — desejo este inculcado pela tradição, e que está profundamente enraizado nas pessoas. Mas quando um desejo nasce, temos de dar-lhe atenção, de o compreender, de escutar todos os indícios e sinais. Temos de o escutar — em vez de o negar, de o reprimir, de o pôr de lado ou de fugir-lhe. Não é possível fugir dos desejos.

Os “santos” e “yogis” são impelidos, dilacerados pelo desejo. Quando se vestem como ascetas e se cobrem de cinzas, pensam que levam uma vida simples. Nada disso. Interiormente estão em ebulição, tendo, ou não, consciência disso — e não sabem o que hão de fazer. E assim tornam a sua vida e a sua congregação de “santos” uma coisa feia, desumana, envenenada, cheia de ressentimentos. Porque quando não se compreende o desejo, cria-se inimizade e antagonismo. E por mais que se pregue a fraternidade isso não terá qualquer significado se não se compreender essa coisa tão simples chamada desejo. Se negamos o desejo, se dizemos, por exemplo, “Já passei por uma provação com esse desejo e não devo tê-lo mais”, então estamos meramente a comparar o desejo presente com uma experiência que já tivemos e se tornou uma lembrança que irá controlar o desejo. E assim ficamos de novo enredados na batalha.

Mas, ao nascer cada desejo — mesmo que da coisa mais simples — temos de observá-lo, de vê-lo nascer, viver, florescer, ganhar vitalidade. E se não o reprimirmos, se não o compararmos, se ele não for dominado pela lembrança daquela passada experiência, e se pudermos observá-lo com aquele espaço de que falamos, veremos então que esse desejo se vai transformando num sentir intenso e sem objeto, se vai transformando apenas num sentir. Mas para quase todos nós, a vontade é que é importante, necessária, ou pelo menos pensamos que o é. A vontade é uma corda tecida de muitos desejos. E no momento em que existe vontade, vontade de levar até ao fim, ou vontade de negar, está-se num estado de resistência. E, portanto, regressa-se outra vez a um estado de conflito.

Estamos a falar de uma mente amadurecida, que compreende o conflito. A mente que compreende o conflito, que compreende toda esta questão de desejo, com todos os seus problemas, está amadurecida — e só essa mente pode compreender o que é real, o que é verdadeiro. Só ela, e não a mente que reprime o desejo, pode compreender a realidade. Porque para compreender o que é verdadeiro, precisamos de paixão. A paixão é uma energia extraordinária que nos impele e que não é estimulada, nem movida pelo desejo. E uma chama, e sem ela nenhuma transformação podemos criar no mundo, porque o mundo está cheio de problemas.

E como fazemos parte do mundo, estamos cheios de problemas — os conflitos entre marido e mulher, a desumanidade, o problema da fome, neste país, na Ásia, em geral, etc.; os problemas da guerra; a chamada “paz”; o problema da cooperação. Há problemas, e não podemos evitá-los. Em nós, existem a cada minuto e, consciente ou inconscientemente, estão a afetar a nossa mente. E, ou os compreendemos quando eles surgem, quando tomamos consciência deles — e compreendê-los é resolvê-los em nós, imediatamente — ou os transportamos para o dia seguinte. Transportá-los para o dia seguinte é o verdadeiro problema — e não se resolveremos, ou não, os problemas. Porque quando os transportamos para o dia seguinte, a mente torna-se embotada, entorpecida; damos tempo ao problema para se enraizar na nossa mente. Portanto, submetemos as células do cérebro a uma pressão, a uma tensão que as fatiga. Um cérebro cansado não tem possibilidade de compreender. Precisamos de uma mente fresca, em cada dia. Assim, temos de compreender os problemas, e não de os adiar.

E para compreender um problema, a primeira condição é não dizer “Tenho de o resolver, tenho de encontrar uma resposta, preciso de descobrir uma saída; como é que vou encontrar a solução correta?” — não nos inquietarmos com o problema, como um cão com um osso. Mas é só isso o que fazemos, e quanto mais nos afligimos, tanto mais sérios nos julgamos. Observai, por favor, as vossas mentes, a vossa vida, e não as palavras que se estão a dizer. Para resolver problemas — resolvê-los e não adiá-los — temos de olhar para eles; temos de ser bastante sensíveis, para observar as implicações, o significado, a natureza íntima de um problema. Isso significa que temos de o escutar — escutar todos os seus “murmúrios”, todo o seu significado, não apenas verbalmente, mas ver, sentir, tocar o problema, com os olhos, nariz, ouvidos, com todo o nosso ser. Isso significa não ficar enredado na palavra que aponta para o problema. Não sei se compreendeis que a palavra não é o problema. A palavra “árvore” não é árvore. Mas, para quase todos nós, a palavra é que é importante e não o que está por trás da palavra; o símbolo tem muito mais significado do que o fato.

A mente tem, assim, de estar desperta, cheia de vitalidade, a observar, a escutar cada problema. O problema existe, e não podemos negá-lo. Um problema significa uma resposta a um desafio, e podemos responder totalmente, completamente ou de modo inadequado. Uma resposta inadequada ao desafio é que cria o problema. Não estamos sempre despertos, não somos capazes de estar atentos, sensíveis, nas vinte e quatro horas do dia; assim, as nossas respostas são inadequadas, e é isso que cria o problema; além disso, não enfrentamos o problema imediatamente. Enfrentar completamente o problema imediato — um pensamento, um sentimento — não é tentar resolvê-lo, não é fugir dele, não é compará-lo, não é dizer, “Este é o modo de o resolver” — todas as coisas vagas e absurdas de que a mente e o cérebro se ocupam, na esperança de compreender o problema. Encarar o problema de modo completo é escutá-lo, estar sensível a ele. E não podemos estar sensíveis ao problema se estamos a fugir dele, se o estamos a reprimir, se já temos para ele uma “resposta”.

Começamos assim a ver que a mente tem de estar desperta e sensível. Estou a usar a palavra mente para designar a interação entre o cérebro e a “coisa” que controla o cérebro, pois a mente não é formada apenas pelos nervos, pelas células cerebrais; ela é aquilo que não só é transcendente, mas também é constituída por células — a coisa total. A mente de quase todos nós está sobrecarregada de inúmeros problemas, e em cada dia lhes juntamos outros. Assim, todo o nosso ser se torna embotado, e perdemos toda a sensibilidade. E quando não somos sensíveis, fazemos esforço. Vejamos, por favor, o círculo vicioso em que estamos enredados.

Assim, é necessário compreender o desejo. Temos de compreender o desejo, e não de “viver sem desejo”. Se se mata o desejo, fica-se paralisado. Quando olhamos aquele pôr do sol à nossa frente, o próprio ato de olhar é um encantamento, se somos realmente sensíveis. Isso também é desejo — o encantamento. E se não somos capazes de ver o pôr do sol e de nos encantarmos com ele, não somos sensíveis. Se vemos um homem rico num belo automóvel e não somos capazes de gostar de ver isso — não porque desejamos tal coisa, mas simplesmente por vermos alguém a guiar um belo carro — ou se, ao vermos um pobre ser humano, sujo, andrajoso, inculto, desesperado, não sentimos uma pena imensa, afeição, amor, não somos sensíveis. Como podemos então encontrar a Realidade se não temos essa sensibilidade, esse sentir profundo?

Temos, assim, de compreender o desejo. E para compreender cada incitamento do desejo, temos de ter espaço, e de não tentar preencher esse espaço com os nossos pensamentos ou lembranças, ou com a preocupação de como satisfazer ou destruir esse desejo. Dessa compreensão nasce, então, o amor. Geralmente, não temos amor, não sabemos o que ele significa. Conhecemos o prazer, conhecemos a dor. Conhecemos a inconsistência do prazer e, provavelmente, a continuidade da dor. E conhecemos o prazer sexual e também o prazer de alcançar fama, posição, prestígio, e o prazer de exercer um enorme domínio sobre o próprio corpo, como os ascetas, de manter um “Record”... — conhecemos todas estas coisas. Falamos interminavelmente acerca do amor; mas não sabemos o que ele significa, porque não compreendemos o desejo, que é o começo do amor.

Sem amor não há verdadeira moralidade; o que há é ajustamento a um padrão, social ou supostamente religioso. Sem amor não há virtude, integridade. O amor é espontâneo, real, vivo. E a bondade não é uma coisa que se possa criar pelo exercício constante; é espontânea, como o amor. A virtude não é uma lembrança de acordo com a qual funcionamos como ser humano “virtuoso”. Se não temos amor, não somos bondosos. Podemos frequentar templos, levar uma vida familiar extremamente respeitável, seguir as regras da moral social, mas não somos bondosos. O nosso coração é estéril, vazio, está embotado, entorpecido, por não compreendermos o desejo. A vida, portanto, torna-se um constante campo de batalha e o esforço só termina com a morte. Só termina com a morte, porque só sabemos viver com esforço.

Assim, para compreender o desejo precisamos de compreender, de escutar, cada movimento da mente e do coração, cada alteração, cada mudança do pensamento e do sentir, precisamos de observar o desejo, de nos tornarmos sensíveis, despertos a ele. Não podemos tornar-nos sensíveis ao desejo se o condenarmos ou se o compararmos. Temos de estar muito atentos ao desejo, porque ele nos dará uma compreensão imensa. E dessa compreensão nasce a sensibilidade. Somos então sensíveis — e não só fisicamente sensíveis — à beleza, à sujidade, às estrelas, ao sorriso ou às lágrimas, e sensíveis também a todos os murmúrios, a todos os sussurros que nos povoam a mente, aos nossos secretos medos e esperanças.

E desse escutar, desse observar, vem a paixão, esta paixão igual ao amor. Só neste estado se é capaz de cooperar. E, porque se é capaz de cooperar, também só neste estado se pode saber quando não se deve cooperar. Assim com esta profunda compreensão e vigilância, a mente torna-se eficiente, lúcida, cheia de vitalidade e de vigor; e só uma mente assim pode viajar para muito longe.

Krishnamurti, Madrasta, 22 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade

quinta-feira, 19 de abril de 2018

A verdade ou a compreensão vem num clarão

A verdade ou a compreensão vem num clarão

[...] PERGUNTA: A paixão, ou intensidade, é uma qualidade?

KRISHNAMURTI: Que será que entendemos pela palavra “qualidade”? A paixão, ou intensidade, é uma virtude adquirível pela prá tica, pela disciplina, pelo autossacrifício, etc.? É isso que entendeis?

OUTRO INTERROGANTE: Posso jazer uma pergunta?

KRISHNAMURTI: Senhor, já fizeram uma pergunta. Como vedes, tão ocupados nos achamos com os nossos próprios problemas que não prestamos atenção a ninguém mais; isso sempre acontece na vida. Tão envolvidos estamos em nossos problemas, nossas esperanças e ambições, nossos próprios desesperos, que quase nunca enxergamos nada além de nosso pequenino “eu”. Talvez outros aqui tenham outros problemas, mas sugiro, respeitosamente, que não vos ocupeis de tal maneira com a pergunta formulada.

Voltando à pergunta — A paixão ou intensidade é uma qualidade? — não gosto do emprego da palavra “qualidade”. Quando estais “apaixonado”, em relação a alguma coisa, não perguntais se isso é uma qualidade, perguntais? Vós vos achais naquele estado. Quando sentis cólera, ou lascívia, ou quando verbalmente tratais alguém com brutalidade, não perguntais nesse momento se o que sentis é uma “qualidade”. Estais todo em chamas. Mas, mais tarde, dizeis: “Por Deus, foi um momento terrível” — e isso se toma então algo que cumpre evitar no futuro. Ou, se foi um belo momento, tratais de cultivá-lo; mas tudo o que se cultiva é artificial, não é uma coisa pura.

Ora, a paixão, ou intensidade, a cujo respeito estive falando, não é cultivável, não se acha à venda no mercado, não se pode comprar com a prática ou a disciplina; mas, se escutastes e verdadeiramente penetrastes em vós mesmos, se vos empenhastes deveras em compreendê-la, sabereis o que ela é. Essa paixão nada tem em comum com o entusiasmo. Só desponta depois da completa cessação do “eu”, depois de abandonada a ideia de “minha casa”, “minhas posses”, “minha pátria”, “minha mulher”, “meus filhos”. Agora direis, talvez: “Então não vale a pena ter essa paixão”. Talvez para vós não valha a pena. Só vale quando, efetivamente, desejamos descobrir o que é o sofrimento, o que é a verdade, o que é Deus, qual o significado de toda esta terrível e confusa lida da existência. Se esta questão realmente vos concerne, então deveis examiná-la com paixão — e isso significa que não podeis estar vinculado à vossa família. Podeis ter vossa casa, vossa família, mas se psicologicamente lhes estais vinculado, nunca passareis além.

PERGUNTA: Temos todos a mesma capacidade de paixão?

KRISHNAMURTI: Eu não considero a paixão uma “capacidade”. Podeis ter aptidão para escrever livros, compor poesias, tocar flauta, ou para muitas outras coisas; e as aptidões podem ser cultivadas, mantidas, acrescentadas. Mas a paixão, a intensidade, não é uma aptidão. Pelo contrário, se tendes alguma capacidade, deveis morrer para ela, a fim de poderdes “apaixonar-vos”. Se não morreis para a capacidade, ela se torna mecânica, ainda que a aprimoreis e dela façais uso hábil. Vede, estamos ainda pensando em termos de aquisição, e cuidando de proteger o que adquirimos.

PERGUNTA: Dissestes que o sofrimento é uma coisa bela e, no entanto, dizeis que devemos livrar-nos do sofrimento.

KRISHNAMURTI: Eu nunca disse que devemos livrar-nos do sofrimento. O que eu sempre acentuei é que devemos olhar o sofrimento, penetrá-lo, compreendê-lo. Não podeis livrar-vos dele, não podeis “jogá-lo fora”. Quando é que sofremos? Se amais alguém e essa pessoa não corresponde ao vosso amor, sofreis. Por quê? Por que deveis sofrer? Que significa o vosso sofrer? Significa que estais pensando em vossa própria pessoa — eis o fato real. E enquanto só pensardes em vossa insignificante pessoa, desejando ser amado e temendo não ser amado — com todos os desagrados que isso implica — naturalmente tereis de ter isso a que chamais “sofrimento”. De modo idêntico, se desejo ser um homem famoso, e não o sou, sofro, inevitavelmente; e se me satisfaz permanecer nesse estado, então está certo. Mas, se desejo compreender meu sofrimento e transcendê-lo, começo então a olhá-lo; examino rigorosamente o impulso psicológico para ser famoso, o qual é extremamente superficial, imaturo! — e vem então uma compreensão do sofrimento, a qual é o começo de sua própria extinção. E, como disse, depois de transcender essa amargura, descubro que o amor, a aflição e a morte são a mesma coisa. Esse é um estado de grande beleza — beleza não formada pelo homem ou pela natureza.

PERGUNTA: A paixão, ou intensidade, é desejo de saber?

KRISHNAMURTI: Que se entende por “desejo de saber”? O impulso para acumular conhecimentos faz também parte do “vir a ser” e é, por conseguinte, uma causa de conflito. Mas eu não falo do acumular de conhecimentos que podem ser encontrados em qualquer enciclopédia. Eu quero compreender o sofrimento, penetrá-lo de ponta a ponta, para descobrir por mim mesmo o seu significado; e isso não significa que eu preciso saber. Saber, como anteriormente expliquei, é uma coisa, e algo diferente é o aprender. O saber implica acumulação de conhecimentos, e quando tendes conhecimentos acumulados, é com essa base que “experimentais”. Pela experiência adquiris mais saber ainda; mas, nesse mecanismo aquisitivo de acrescentar mais saber ao já obtido, não se acha o “movimento do aprender”. Só se pode aprender quando já não se busca nem se adquire saber.

Senhor, eu não desejo saber nada sobre o sofrimento. Todos padecemos. Não tendes sofrimento, numa ou noutra forma? E desejais saber o que é ele? Então, podeis analisá-lo e explicar porque sofreis. Podeis ler livros acerca do assunto, ou ir à igreja, e, assim, depressa sabereis algo a respeito do sofrimento. O saber não põe fim ao sofrer. Começamos a deixar de sofrer quando encaramos os fatos psicológicos ocorrentes em nosso interior e deles nos cientificamos de momento a momento, avaliando-lhes o total significado. Isso demonstra que não devemos fugir à realidade de que nos achamos em sofrimento, nunca devemos racionalizá-lo, nem propor uma opinião a seu respeito, mas, sim, ‘‘viver inteiramente com o fato”.

Como sabeis, o “vivermos com a beleza daquelas montanhas” e não nos acostumarmos com ela, é muito difícil. Em maioria, vos achais aqui já há cerca de três semanas. Tendes contemplado aquelas montanhas, ouvido o barulho do rio, visto as sombras estenderem-se através do vale, dia após dia; e não notastes como é fácil nos acostumarmos com tudo isso? Dizeis: “Sim, isto é realmente belo” — e passais adiante. “Viver com a beleza” ou “viver com uma coisa feia” e não se deixar acostumar com ela, isso requer imensa energia — um percebimento que não deixa a mente embotar-se. Da mesma maneira, o sofrimento embota a mente, se com ele nos acostumamos. Mas não há necessidade de nos acostumarmos com o penar. Podemos “viver com a amargura”, compreendê-la, penetrá-la — mas não com o fim de sabermos alguma coisa a seu respeito. Sabeis que o sofrimento está presente, que é um fato, e nada mais precisais saber. Cumpre “viver com o sofrimento” e, para viverdes com ele, deveis amá-lo; e, assim, descobrireis que, efetivamente, o amor, o sofrimento e a morte constituem uma só coisa.

PERGUNTA: Não existe amor sem paixão?

KRISHNAMURTI: Que entendeis pela palavra “paixão” e pela palavra “amor”? Não importa se sois homem ou se sois mulher, se sentis amor por outra pessoa, não tendes paixão, pelo menos durante os dois primeiros anos, ou outro período qualquer? Depois, vos acostumais um com o outro e começais a enfastiar-vos. Com aquela paixão, embora a chamemos amor, há luxúria, apego, ciúme, ambição, avidez, e tudo o mais. Ela é como uma chama em meio de densa fumarada. E que acontece? Gradualmente, morre essa chama, e só vos resta fumaça. Mas se desaparecer o apego, a luxúria, o ciúme, e todos os outros elementos que mantêm o conflito e a fumaça produzida por isso que chamamos “paixão” — se tudo isso desaparece, não por ação do tempo ou do hábito, mas, sim, porque nós o penetramos, o compreendemos, vimos-lhe as profundezas e alturas, então o amor pode ser paixão sem causa. Não me refiro à paixão do missionário que, com seu amor a Jesus, sai pelo mundo a converter os pagãos; não é esta a paixão a que aludo. Pelo contrário, a paixão de que falo é a negação de tudo isso, sem nenhum motivo. E dessa negação desponta aquela chama límpida e clara.

PERGUNTA: É possível a um ente humano achar-se em permanente estado de compreensão?

KRISHNAMURTI: Importa compreender o que se entende pela palavra “permanente”. Não acho que possais “achar-vos permanentemente” em coisa alguma. Se permaneceis em alguma coisa, estais morto. E isso é o que em maioria desejamos: queremos que certas coisas — o amor, a paixão, a compreensão, Deus — continuem perenemente. E isso significa o quê? Que não desejamos ser perturbados, que não desejamos ser sensíveis, estar vivos. Como já expliquei, a verdade ou a compreensão vem num clarão, e esse clarão não tem continuidade, não se acha na esfera do tempo. Vede isso por vós mesmo. A compreensão é nova, instantânea, não é a continuidade de algo que antes existiu. O que teve existência anterior não pode trazer-vos nenhuma compreensão. Enquanto buscamos uma continuidade — desejando a permanência nas relações, no amor, na ânsia de encontrar a paz duradoura, etc., etc., — estamos perseguindo uma coisa que se acha na esfera do tempo e que, por conseguinte, não pertence ao eterno.

Krishnamurti, Saanen, 5 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

Despertando a chama pura da paixão sem causa

[...] o medo, o sofrimento e aquilo que chamamos amor andam sempre juntos. Se não compreendemos o medo, não podemos compreender o sofrimento, nem tampouco conhecer aquele estado de amor isento de contradição e atrito. Extinguir o sofrimento é dificílimo, porque o sofrimento está sempre conosco, numa ou noutra forma. Desejo, pois, aprofundar este problema; mas pouco significarão minhas palavras se cada um de nós não examinar o problema dentro de si próprio, sem concordar nem discordar, porém simplesmente observando o fato. Se o pudermos fazer, realmente e não apenas teoricamente, então talvez nos seja possível compreender o imenso significado do sofrimento e, dessa maneira, pôr-lhe fim.

Através dos séculos o amor e o sofrimento sempre andaram de mãos dadas, predominando ora um, ora outro. Aquele estado a que chamamos “amor” depressa passa e de novo nos vemos enredados em nossos ciúmes, nossas vaidades, nossos temores, nossas angústias. Sempre houve essa batalha entre o amor e o sofrimento; e, antes de examinar a questão de pôr fim ao sofrimento, impende compreender o que é paixão.

[...] Aqui estamos para descobrir, por nós mesmos, se é realmente possível deixarmos de sofrer, de modo que a mente fique desanuviada, clara, penetrante, capaz de pensar sem ilusão. E isso não é possível, se vivemos meramente no nível das palavras — como provavelmente em regra acontece. Conceitos, padrões, ideais, palavras, símbolos — tudo isso tem extraordinário significado para a maioria de nós, e aí nos deixamos ficar. Parecemos incapazes de romper o nível verbal e penetrar além dele; mas, para compreendermos o sofrimento, temos de ultrapassar as palavras. Assim, enquanto eu estiver examinando esse problema, espero que também o examinareis intensa e claramente, sem sentimentalidade ou emocionalismo.

Ora, a menos que compreendamos a paixão, acho que não seremos capazes de compreender o sofrimento. A paixão é algo que mui poucos de nós realmente já experimentaram. Poderemos ter experimentado entusiasmo, que significa envolver-se completamente num estado emocional a respeito de alguma coisa. Nossa paixão é sempre por alguma coisa: pela música, pela pintura, pela literatura, por um país, por uma mulher ou um homem; é sempre o efeito de uma causa. Quando vos apaixonais por alguém, sempre ficais num estado de grande emoção, o qual é o efeito daquela causa; e a paixão de que falo é paixão sem causa. É estar apaixonado por tudo, e não simplesmente por uma certa coisa; nós em geral nos apaixonamos por uma certa pessoa ou coisa; e acho necessário perceber claramente esta distinção.

No estado de “paixão sem causa” há uma intensidade livre de todo apego; mas, quando a paixão tem causa, há apego, e apego é o começo do sofrimento. Em geral, temos apego — a uma pessoa, um país, uma crença, uma ideia — e quando o objeto de nosso apego nos é retirado ou, ainda, quando perde o seu significado, vemo-nos vazios, incompletos. Esse vazio nós procuramos preenchê-lo apegando-nos a outra coisa, a qual por sua vez se torna o objeto de nossa paixão.

Enquanto vou falando, tende a bondade de examinar vosso próprio coração, vossa própria mente. Eu não sou mais do que um espelho no qual estais vendo a vós mesmo. Se não desejais olhar, está perfeitamente certo; mas, se desejardes olhar, então olhai-vos claramente, “impiedosamente”, com intensidade — sem nenhuma esperança de dissolverdes vossas angústias, vossas ansiedades, vosso sentimento de “culpa”, porém com o propósito de compreender essa extraordinária paixão que sempre leva ao sofrimento.

Quando a paixão tem causa, torna-se luxúria. Quando há paixão por alguma coisa — por uma pessoa, por uma ideia, por uma certa espécie de preenchimento — então, dessa paixão resulta contradição, conflito, esforço. Lutais para alcançar ou para conservar um certo estado, ou para recuperar outro estado que existiu e se foi. Mas a paixão a que me refiro não dá nascimento à contradição, ao conflito. Não está em relação com nenhuma causa e, por conseguinte, não é um efeito. Deixai-me sugerir-vos que escuteis, simplesmente; não tenteis alcançar esse estado de intensidade, essa paixão que não tem causa. Se pudermos escutar atentamente, com aquela naturalidade que se verifica quando a atenção não é forçada por meio de disciplina, porém nascida do simples impulso para compreender, penso que então descobriremos por nós mesmos o que é paixão.

Há, na maioria de nós, pouquíssima paixão. Podemos ser lascivos, podemos estar ansiando por alguma coisa, desejando fugir de alguma coisa, e tudo isso nos confere uma certa intensidade. Mas, se não estamos despertos e não buscamos acesso a essa chama da “paixão sem causa”, nunca seremos capazes de compreender aquilo que chamamos sofrimento. Para compreender algo precisamos de paixão, da intensidade da atenção completa. Onde há paixão por alguma coisa, a qual produz contradição, conflito, não pode existir aquela chama pura da paixão; e aquela chama pura da paixão precisa existir, para que possamos pôr fim ao sofrimento, dissipá-lo completamente.

Sabemos que o sofrimento é um resultado, o efeito de uma causa. Amo alguém e essa pessoa não me ama — esta é uma espécie de sofrimento. Desejo preencher-me num certo sentido, mas para tanto não possuo capacidade; ou, se tenho capacidade, o mau estado de saúde ou outro fator qualquer impede-me o preenchimento — eis outra forma de amargura. Existe o sofrer da mente medíocre, da mente que está sempre em conflito íntimo, incessantemente lutando, ajustando-se, tateando, submetendo-se. Há o sofrimento ocasionado pelo conflito nas relações, e o motivado pela morte de alguém. Bem conhecemos essas diferentes formas de sofrer, e todas elas resultam de uma causa.

Ora, nós nunca enfrentamos o próprio sofrimento; sempre tratamos de racionalizá-lo, explicá-lo; ou temos um dogma, um padrão de crença que nos satisfaz, que nos dá momentâneo conforto. Alguns tomam uma certa droga, outros dão para beber ou para rezar — qualquer coisa que sirva para diminuir a intensidade, a agonia do sofrimento. O sofrimento e a perpétua luta para fugirmos dele — eis o fado de todos nós. Jamais pensamos em extingui-lo, de modo que a mente nunca se prenda na rede da autopiedade, nunca se veja nas sombras do desespero. Não encontrando possibilidade de terminar o sofrimento, passamos, se somos cristãos, a divinizá-lo, em nossas igrejas, simbolizado nas agonias do Cristo. E, se vamos à igreja para adorar o símbolo do sofrimento, ou se tentamos racionalizá-lo ou esquecê-lo tomando uma bebida — tudo é a mesma coisa: estamos fugindo à realidade de que sofremos. Não me refiro à dor física, que a ciência moderna pode debelar com relativa facilidade. Refiro-me à de natureza psicológica, que impede a clareza, a beleza, que destrói o amor e a compaixão. É possível eliminar o sofrimento?

Acho que essa eliminação depende da intensidade da paixão. Só pode haver paixão quando há total abandono do “eu”. Nunca poderá uma pessoa “apaixonar-se” se não houver a completa ausência disso que chamamos “pensamento”. Como já vimos, o que chamamos pensamento é a reação de vários padrões e experiências da memória, e onde existe essa reação condicionada, não há paixão, não há intensidade. Só pode haver intensidade com a completa ausência do “eu”.

Há um sentimento da beleza que não está ligado ao que é belo e ao que é feio. Não quero dizer que a montanha não seja bela ou que não haja edifícios feios; mas há uma beleza que não é o oposto do feio, há um amor que não é o contrário do ódio. E a renúncia de que falo é aquele estado de beleza sem causa, o qual, por essa razão, é um estado de paixão. E pode-se transcender o que resulta de causa?

Escutai isto com toda a atenção. Posso não ser capaz de explicar-me com muita clareza, mas procurai apreender a significação das palavras, em vez de vos cingirdes apenas às palavras. Na generalidade, estamos sempre reagindo; a reação constitui o inteiro padrão de nossa vida. Nossa maneira de corresponder ao sofrimento é uma reação. “Reagimos”, tentando explicar a causa do sofrimento, ou dele fugir; mas nosso penar não tem fim. Só termina quando realmente o enfrentamos, quando compreendemos e transcendemos tanto a causa como o efeito. Procurar livrar-se do sofrimento pela prática de certos exercícios, ou pelo pensar deliberado, ou pelo recorrer a qualquer das várias modalidades de fuga à amargura — por nenhuma dessas maneiras se desperta na mente a extraordinária beleza, a vitalidade, a intensidade daquela paixão que inclui e transcende o sofrimento.

Que é sofrimento? Ao ouvirdes esta pergunta, como respondeis? Vossa mente trata logo de explicar porque sofremos, e essa busca de explicação desperta lembranças de passadas aflições. Dessa maneira, reverteis sempre, verbalmente, ao passado ou saltais para o futuro, num esforço para explicar a causa do efeito que chamamos sofrimento. Julgo, porém, que devemos ultrapassar tudo isso.

Bem sabemos o que nos faz pensar: pobreza, doença, frustração, não ser amado, etc. E, quando terminamos de explicar as várias causas do sofrimento, não lhe pusemos fim; não apreendemos realmente a extraordinária profundeza e significação do sofrimento, e muito menos compreendemos aquele estado que se chama amor. A meu ver, as duas coisas se relacionam mutuamente — o sofrer e o amor. E, para compreendermos o que é o amor, precisamos sentir a imensidade do sofrimento.

Os antigos falavam a respeito da terminação do sofrimento, tendo estabelecido um método de viver com que supunham extingui-lo. Muitos têm praticado esse “método de viver”. Monges do Oriente e do Ocidente o têm praticado, apenas com o resultado de terem endurecido a si próprios; a mente e o coração deles se fecharam. Vivem atrás das paredes de seu próprio pensamento ou atrás de paredes de tijolo e pedra, mas, realmente, eu não creio que eles tenham “passado além”, para sentir a imensidade dessa coisa que se chama sofrimento.

Deixar de sofrer é enfrentar o fato de nossa própria solidão, de nosso apego, de nossas vulgares exigências de fama, nossa ânsia de sermos amados; é estar livre do interesse egocêntrico e da puerilidade da autopiedade. E, depois de isso ultrapassarmos, e, talvez, de superarmos o sofrimento pessoal, resta ainda o imenso sofrer coletivo, o sofrer do mundo. Uma pessoa pode pôr fim à própria amargura, enfrentando em si mesma o fato e a causa do sofrimento — e isso deve ocorrer à mente que deseja ser completamente livre. Mas, uma vez terminado isso, há ainda o sofrimento oriundo da ignorância existente no mundo — ignorância que não é falta de instrução, de conhecimentos tirados dos livros, porém a ignorância que o homem tem de si próprio. A falta de autocompreensão é a essência da ignorância, causadora do imenso penar da humanidade. E que significa, em verdade, sofrer?

As palavras não podem definir o sofrimento, assim como é impossível explicar verbalmente o que é o amor. O amor não é apego, o amor não é o oposto do ódio, o amor não é ciúme. E quando uma pessoa acabou com o ciúme, com a inveja, com o apego, com todos os conflitos e agonias que sofreu, pensando amar — quando tudo isso terminou, resta ainda saber o que é o amor, resta ainda saber o que é o sofrimento.

Só se pode descobrir o que é o amor e o que é o sofrimento quando a mente rejeitou todas as explicações e já não está imaginando, já não está buscando a causa, já não se está entretendo com palavras ou rememorando prazeres e dores passados. A mente deve achar-se completamente quieta, sem uma só palavra, um único símbolo, uma única idéia. Descobre-se então — ou ele virá por si — o estado em que aquilo que chamávamos amor, aquilo que chamávamos sofrimento, aquilo que chamávamos morte, são a mesma coisa. Já não haverá divisão entre o amor, o sofrimento e a morte; e, não havendo divisão, haverá beleza. Mas, para compreendermos, para nos acharmos nesse estado de êxtase, necessita-se daquela paixão resultante do total abandono do “eu”.

Krishnamurti, Saanen, 5 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A chama da paixão sem causa

A menos que compreendamos a paixão, acho que não seremos capazes de compreender o sofrimento. A paixão é algo que muito poucos de nós realmente já experimentaram. Poderemos ter experimentado entusiasmo, que significa envolver-se completamente num estado emocional a respeito de alguma coisa. Nossa paixão é sempre POR alguma coisa: pela música, pela pintura, pela literatura, por uma país, por uma mulher ou um homem; é sempre o efeito de UMA causa. Quando você se apaixona por alguém sempre fica num estado de grande emoção, o qual é feito DAQUELA causa; e a paixão de que falo é PAIXÃO SEM CAUSA. É estar apaixonado POR TUDO, e não simplesmente por uma certa coisa; nós em geral nos apaixonamos POR uma certa pessoa ou coisa; e acho necessário perceber muito claramente esta distinção. 

No estado de "PAIXÃO SEM CAUSA" há uma intensidade livre de todo apego; mas, quando a paixão tem causa, há apego, e apego é o começo do sofrimento. Em geral, temos apego — a uma pessoa, um país, uma crença, uma ideia — e quando o objeto de nosso apego nos é retirado ou, ainda, quando perde o seu significado, nos vemos vazios, incompletos. Esse vazio nós procuramos preenchê-lo mediante apego a outra coisa, a qual por sua vez se torna o objeto de nossa paixão. 

Enquanto vou falando, tenha a bondade de examinar seu próprio coração, sua própria mente. Eu não sou mais do que um espelho no qual você está vendo a si mesmo. Se não deseja olhar, está perfeitamente certo; mas, se deseja olhar, então olhe-se claramente, "IMPIEDOSAMENTE", com intensidade — sem nenhuma esperança de dissolver suas angústias, suas ansiedades, seu sentimento de "culpa", porém, com o propósito de compreender essa extraordinária paixão que sempre leva ao sofrimento. 

Quando a paixão tem causa, torna-se luxúria. Quando há paixão POR alguma coisa — por uma pessoa, por uma ideia, por uma certa espécie de preenchimento — então, dessa paixão, resulta contradição, conflito, esforço. Você luta para alcançar ou para conservar um certo estado, ou para recuperar outro estado que existiu e se foi. Mas a paixão a que me refiro não dá nascimento à contradição, ao conflito. Não está em relação com nenhuma causa e, por conseguinte, NÃO É UM EFEITO. 

Deixe-me sugerir-lhe que ESCUTE, simplesmente; não tente alcançar esse estado de intensidade, essa PAIXÃO QUE NÃO TEM CAUSA. Se puder escutar atentamente, com aquela naturalidade que se verifica quando a atenção não é forçada por meio da disciplina, porém, nascida do simples impulso para compreender, penso que então descobrirá por si mesmo o que é paixão. 

Há, na maioria de nós, muito pouca paixão. Podemos ser lascivos, podemos estar ansiando por alguma coisa, desejando fugir de alguma coisa, e tudo isso nos confere uma certa intensidade. Mas, se não estamos despertos e não buscamos acesso a essa chama da "PAIXÃO SEM CAUSA", nunca seremos capazes de compreender aquilo que chamamos sofrimento. Para compreender uma coisa, precisamos de paixão, intensidade da atenção completa. Onde há paixão POR ALGUMA COISA, a qual produz contradição, conflito, não pode existir aquela chama pura da paixão; e aquela chama pura da paixão precisa existir, para que possamos colocar fim ao sofrimento, dissipá-lo completamente. 

Sabemos que o sofrimento é um resultado, o efeito de uma causa. Amo alguém e essa pessoa não me ama — esta é uma espécie de sofrimento. Desejo preencher-me num certo sentido, mas para tanto não possuo capacidade; ou, se tenho capacidade, o mau estado de saúde ou outro fator qualquer impede-me o preenchimento — eis outra forma de sofrimento. Há o sofrimento da mente medíocre, da mente que está sempre em conflito consigo mesma, incessantemente lutando, tateando, submetendo-se. Há o sofrimento ocasionado pelo conflito das relações, e o sofrimento motivado pela perda de alguém, por morte. Todos conhecem essas diferentes formas de sofrimento, e todas elas resultam de uma só causa. 

Ora, nós nunca enfrentamos o fato do sofrimento; sempre tratamos de racionalizá-lo, explicá-lo; ou temos um dogma, um padrão de crença que nos satisfaz, que nos dá momentâneo conforto. Alguns tomam uma certa droga, outros dão para beber ou rezar  — qualquer coisa que sirva para diminuir a intensidade, a agonia do sofrimento. O sofrimento é a perpétua luta para nos escaparmos dele — eis o fardo de todos nós. Nunca pensamos em terminar de todo o sofrimento, de modo que a mente nunca se veja nas sombras do desespero. Não encontrando possibilidade de terminar o sofrimento, passamos, se somos cristãos, a divinizá-lo, em nossas igrejas, simbolizado nas agonias do Cristo. E, se vamos à igreja para adorar o símbolo do sofrimento, ou se tentamos racionalizar o sofrimento ou esquecê-lo tomando uma bebida — TUDO É A MESMA COISA: ESTAMOS FUGINDO AO FATO DE QUE SOFREMOS. Não me refiro à dor física, que a ciência moderna pode debelar com relativa facilidade. Refiro-me ao sofrimento, à DOR PSICOLÓGICA, que impede a clareza, a beleza, que destrói o amor e a compaixão. É possível colocar fim a todo o sofrimento? 

Acho que o terminar do sofrimento depende da INTENSIDADE DA PAIXÃO. Só pode haver paixão, quando há total abandono do "eu". Nunca pode uma pessoa "apaixonar-se" se não houver a completa ausência disso que chamamos "PENSAMENTO". Como vimos outro dia, o que chamamos pensamento é a reação de vários padrões e experiências da memória, e onde existe essa reação condicionada, NÃO HÁ PAIXÃO, NÃO HÁ INTENSIDADE. Só pode haver intensidade com a completa ausência do "eu". 

(...) Nossa maneira de compreender ao sofrimento é uma reação. REAGIMOS, tentando explicar a causa do sofrimento, ou escapar ao sofrimento; mas nosso sofrimento não tem fim. Só termina o sofrimento quando o enfrentamos como FATO, quando compreendemos e transcendemos tanto a causa como o efeito. Procurar livrar-se do sofrimento pela prática de certos exercícios, ou pelo pensar deliberado, ou pelo recorrer a qualquer das várias modalidades de fuga ao sofrimento — por nenhuma dessas maneiras se desperta na mente a EXTRAORDINÁRIA BELEZA, A VITALIDADE, A INTENSIDADE DAQUELA PAIXÃO QUE ENVOLVE E TRANSCENDE O SOFRIMENTO. 

Que é sofrimento? Ao ouvir esta pergunta, como você reage? Sua mente trata de explicar imediatamente a causa do sofrimento, e essa busca de explicação desperta lembranças dos passados sofrimentos. Dessa maneira, você reverte sempre, verbalmente, ao passado ou salta para o futuro, num esforço para explicar a causa do efeito que chamamos sofrimento. Julgo, porém, que devemos ultrapassar tudo isso. 

Sabemos muito bem o que é a causa do sofrimento: pobreza, má saúde, frustração, não ser amado, etc. E, quando terminamos de explicar as várias causas do sofrimento, não colocamos fim ao sofrimento; não aprendemos realmente a extraordinária profundeza e significação do sofrimento, assim como, também, não compreendemos aquele estado que se chama AMOR. A meu ver, as duas coisas estão relacionadas entre si — o sofrimento e o amor. E, para compreendermos o que é o amor, precisamos SENTIR a imensidade do sofrimento.

(...) Terminar o sofrimento é enfrentar o fato de nossa própria solidão, de nosso apego, de nossas pequenas exigências de fama, nossa fome de ser amados; é estar livre do interesse egocêntrico e da puerilidade da autopiedade. E, depois de ter ultrapassado tudo isso e, talvez, de ter terminado o próprio sofrimento pessoal, resta ainda o imenso sofrer coletivo, o sofrer do mundo. Uma pessoa pode colocar fim ao seu próprio sofrimento, enfrentando em si própria o fato e a causa do sofrimento — e isso deve ocorrer à mente que deseja ser completamente livre. Mas, uma vez terminado tudo isso, há ainda o sofrimento que vem da extraordinária ignorância existente no mundo — a ignorância que não é falta de instrução, de conhecimentos tirados dos livros, porém, a ignorância que o homem tem de SI PRÓPRIO. A falta de COMPREENSÃO PRÓPRIA é a essência da ignorância, causadora do imenso sofrimento existente no mundo inteiro. E que é, em verdade, o sofrimento?

Não há palavras com que explicar o sofrimento, assim como não há palavras para explicar o que é o amor. O amor não é apego, o amor não é o oposto do ódio, o amor não é ciúme. E quando uma pessoa acabou com o ciúme, com a inveja, com o apego, com todos os conflitos e agonias que sofreu, PENSANDO AMAR — quando tudo isso terminou, resta ainda saber o que é o amor, resta ainda saber o que é o sofrimento. 

Só se pode descobrir o que é o amor e o que é o sofrimento quando a mente rejeitou TODAS AS EXPLICAÇÕES e já não está mais IMAGINANDO, já não está BUSCANDO a causa, já não está se entretendo com PALAVRAS ou rememorando prazeres e dores passados. A mente deve estar completamente quieta, sem uma só palavra, um único símbolo, uma única ideia. Descobrirá então — ou ele virá por si mesmo à existência — aquele ESTADO, no qual aquilo que chamávamos amor, aquilo que chamávamos sofrimento, aquilo que chamávamos morte, SÃO A MESMA COISA. Já não haverá divisão entre o amor, o sofrimento e a morte; e, não havendo divisão, haverá beleza. Mas, para compreendermos, para nos acharmos nesse estado de êxtase, necessita-se daquela paixão resultante do total abandono do "eu".

Jiddu Krishnamurti — O Homem e seus desejos em conflito    

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Nossa vida é só fumaça sem a chama da paixão

A palavra “paixão” é ordinariamente reservada para uma coisa: o sexo. Mas, para mim, paixão não é sexo. Precisamos de paixão, intensidade, para podermos viver realmente com uma coisa; para vivermos plenamente, contemplarmos uma montanha, uma árvore, olharmos realmente para um ente humano, devemos ter intensidade apaixonada. Mas essa paixão, essa chama é negada, quando estamos tolhidos por vários impulsos, exigências, contradições, temores. Como pode sobreviver uma chama se a sufocamos com uma quantidade de fumo? Nossa vida é só fumaça; buscamos a chama, mas a estamos negando pelo reprimir, controlar, moldar a coisa que chamamos desejos.

Sem a paixão, como pode haver beleza? Não me refiro à beleza de quadros, edifícios, pinturas de mulheres, etc., que têm suas peculiares formas de beleza, mas não estamos tratando da beleza artificial. Uma coisa construída pelo homem, como uma catedral, um templo, um quadro, um poema, ou uma estátua, pode ser ou pode não ser bela. Mas existe uma beleza superior ao sentimento e ao pensamento que não pode ser percebida, compreendida ou conhecida se não existe paixão. Mas não interpretem erroneamente a palavra “paixão”. Não é uma palavra feia; não é uma coisa adquirível no mercado ou de que se pode falar romanticamente. Não tem absolutamente nenhuma relação com a emoção, o sentimento. Não é coisa respeitável; é uma chama destruidora de tudo que é falso. E temos sempre tanto medo de deixar essa chama consumir as coisas que nos são caras, as coisas que chamamos importantes!

Afinal de contas, a vida que atualmente levamos, baseada em necessidades, desejos e métodos de controlar o desejo, nos faz mais superficiais e vazios do que nunca. Podemos ser talentosos, ilustrados, e capazes de repetir tudo o que aprendemos; mas as máquinas eletrônicas fazem a mesma coisa e já, em certos setores, as máquinas se tornaram mais capazes do que o homem, mais exatas e rápidas em seus cálculos. E assim estamos sempre voltando a este mesmo tópico, ou seja, que a vida que vivemos atualmente é bem superficial, estreita, limitada, e isso porque, profundamente, estamos vazios, sós, e sempre tentando encobrir, preencher esse vazio; por isso, a necessidade, o desejo se torna uma coisa terrível. Nada pode preencher esse profundo vazio interior — nem deuses, nem salvadores, nem o saber, nem as relações, nem os filhos, nem o marido, nem a esposa — nada. Mas se a mente, o intelecto, a totalidade de vosso ser, é capaz de encará-lo, de “viver com ele”, verão então que, psicológica, interiormente, não há necessidade de coisa alguma. Esta é a verdadeira liberdade.

Isso, porém, requer profundo discernimento, profunda investigação, incessante vigilância; e desse modo talvez venhamos saber o que é o amor. Como pode haver amor quando há apego, ciúme, inveja, ambição e todas as hipocrisias que acompanham esta palavra? Mas, se tivermos passado por aquele vazio — que é uma realidade e não um mito nem uma ideia — veremos que o amor e o desejo e a paixão são uma mesma coisa. Se se destrói uma, destrói-se a outra; se se corrompe uma, corrompe-se a beleza. Para se penetrar tudo isso requer-se, não uma mente desapegada, dedicada ou uma mente religiosa, mas uma mente disposta a investigar, uma mente nunca satisfeita, que está sempre a olhar, a vigiar, a observar a si própria — a conhecer a si mesma. Sem o amor, nunca será possível descobrir o que é a verdade.

Krishnamurti — Paris, 12 de setembro de 1961

sábado, 1 de dezembro de 2012

Descobrindo o que se acha infinitamente além da mente, dos desejos, vaidades e paixões

Quando a mente busca um determinado estado, a solução de um determinado problema, quando busca a Deus, a Verdade, ou deseja uma certa experiência, mística ou de outra ordem, ela já concebeu, já formulou coisa que deseja; e, visto que já a concebeu e formulou, é infinitamente vã a sua busca. E uma das coisas mais difíceis é o libertarmos a mente desse desejo de resultado.

A meu ver, os nossos incontáveis problemas só podem ser resolvidos quando ocorrer uma revolução fundamental da mente, porque só uma revolução dessa ordem pode proporcionar a compreensão do Verdadeiro. Nessas condições, importa compreendermos o funcionamento de nossa própria mente, não por um processo de auto-análise ou introspecção e, sim, pelo percebimento claro do seu processo total que desejo investigar nestas palestras. Se não nos vermos como somos, se não compreendermos o "pensador" — a entidade que busca, que está perpetuamente a exigir, a interrogar, a querer descobrir, a entidade que está criando o problema, isto é, o "eu", o "ego" — então o nosso pensar, a nossa busca, não terá significação alguma. Enquanto o nosso "instrumento de pensar" não for lúcido, enquanto estiver pervertido, condicionado, tudo o que pensarmos há de ser, inevitavelmente, limitado, estreito.

Nosso problema, pois, é de como libertarmos a mente de todos os condicionamentos, é não "de que maneira controlá-la melhor". Compreendeis, senhores? Quase todos nós estamos em busca de um condicionamento melhor. Os comunistas, os católicos, os protestantes e as demais seitas, por todo o mundo, inclusive hinduístas e budistas — todos visam a condicionar a mente de acordo com um padrão mais nobre, mais virtuoso, mais abnegado, ou um padrão religioso. Cada indivíduo, no mundo inteiro, está interessado em condicionar sua mente de uma maneira melhor, e nunca levantar a questão do libertar a mente de todo e qualquer condicionamento. Mas quer-me parecer que, enquanto a mente não estiver livre de todo o seu condicionamento, isto é, enquanto estivermos condicionados como cristãos, budistas, hinduístas, comunistas, etc., não pode deixar de haver problemas.

Sem dúvida, só é possível descobrir o que é real ou se existe Deus, quando a mente está livre de todo condicionamento. A mera ocupação da mente a respeito de Deus, da Verdade, do Amor, não tem nenhuma significação, porquanto essa mente só pode funcionar dentro da esfera de seu condicionamento. O comunista que não crê em Deus, pensa de um modo, e o homem que crê em Deus, que está ocupado com um dogma, pensa de outro modo; mas a mente de todos os dois está condicionada e, portanto, nem um nem outro é capaz de pensar livremente, e todos os seus protestos, suas teorias e crenças muito pouco significam. Religião, pois, não é frequentar a igreja, ter certos dogmas e crenças. A religião deve ser uma coisa de todo diversa, pode significar a total libertação da mente de toda esta vasta e secular tradição; porque só a mente livre é que pode achar a Verdade, a realidade, aquilo que transcende todas as projeções mentais.

Pode-se ver que isso não é uma teoria pessoal, minha, se observarmos o que está acontecendo no mundo. Os comunistas pretendem solucionar os problemas da vida de uma maneira, os hinduístas de outra maneira, os cristãos ainda de outra maneira; a mente de todos eles, por consequência, está condicionada. Vossa mente está condicionada como cristã, quer admitais, quer não. Podeis libertar-vos superficialmente da tradição cristã, mas as camadas profundas do vosso inconsciente estão cheias dessa tradição, condicionadas por séculos de educação segundo um determinado padrão; e, por certo, a mente que deseja achar algo mais além — se tal coisa existe — essa mente tem de libertar-se, em primeiro lugar, de todo condicionamento.

Fica entendido, pois, que nestas palestras não vamos de modo nenhum tratar da questão do aperfeiçoamento pessoal, nem tampouco nos interessa o aperfeiçoamento de nenhum padrão; não pretendemos condicionar a mente segundo um padrão mais nobre, ou um padrão de maior alcance social. Pelo contrário, o que pretendemos é descobrir como libertar a mente, a consciência total de todo o condicionamento, porque, a menos que isso aconteça, nunca haverá o experimentar da realidade. Podeis falar sobre a realidade, ler inúmeros volumes a seu respeito, ter todos os livros sagrados do Oriente e do Ocidente, mas se vossa mente não estiver cônscia de seus próprios processos, não perceber que ela própria está funcionando dentro de um determinado padrão, e não for capaz de libertar-se desse condicionamento, é bem de ver que sua busca será sempre vã.

Nessas condições, parece-me de maior importância comecemos por nós mesmos comecemos por estar cônscios de nosso próprio condicionamento. E como é difícil uma pessoa saber que está condicionada! Superficialmente, nas camadas conscientes da mente, podemos perceber que estamos condicionados; podemos libertar-nos de um padrão e adotar outro, abandonar o Cristianismo e nos tornarmos comunistas, deixar o Catolicismo e aderir a outro grupo igualmente tirânico, e, assim fazendo, pensar que estamos volvendo para a Realidade. Mas isso, pelo contrário, é mera troca de padrões.

Todavia, é isto o que quase todos queremos: encontrar um lugar seguro, no nosso pensar. Queremos seguir um padrão fixo e não ser perturbados em nossos pensamentos, em nossas ações. Mas só a mente capaz de observar com paciência o seu condicionamento e dele libertar-se, só essa mente é capaz de uma revolução, uma transformação radical, e descobrir, assim, o que se acha infinitamente além da mente, além de todos os nossos desejos, nossas vaidades, e paixões. Sem o autoconhecimento, sem nos conhecermos exatamente como somos — e não como gostaríamos de ser, que é simples ilusão, fuga idealística — sem conhecermos os movimentos do nosso pensar, todos os nossos "motivos", nossos pensamentos, nossas inumeráveis reações, não haverá possibilidade de compreendermos e ultrapassarmos o processo do pensar.

(...) estamos falando a respeito de algo de imensa importância, porque, se não houver uma revolução fundamental em cada um de nós, não percebo como será possível operarmos uma vasta e radical transformação no mundo. E esta transformação radical, decerto, é sumamente relevante. A mera revolução econômica, de caráter comunista ou socialista, é destituída de qualquer importância. Só pode haver revolução de natureza religiosa; e a revolução religiosa não será possível se a mente está apenas ajustada ao padrão de um condicionamento anterior. Enquanto uma pessoa for cristã ou hinduísta, não poderá haver revolução fundamental, no sentido verdadeiramente religioso da palavra. E nós temos real necessidade desta revolução. Quando a mente estiver livre de todo condicionamento, ver-se-á surgir a ação criadora da Realidade, de Deus, ou o nome que preferirdes; e só a mente que se acha nesse estado, a mente que está a experimentar constantemente essa criação, só ela poderá criar uma perspectiva nova, valores diferentes, um mundo diferente.

É, pois, importante compreendermos a nós mesmos, pois não? O autoconhecimento é o começo da sabedoria. O autoconhecimento não se consegue de acordo com algum psicólogo, livro ou filósofo; ele consiste em conhecermos a nós mesmos tais como somos, de momento a momento. Compreendeis isso? Conhecer a si mesmo é cada um observar o que pensa, o que sente, não apenas superficialmente, pois devemos estar profundamente cônscios do que é, sem condenação, sem julgamento, sem avaliação ou comparação. Experimentai-o, e vereis como é difícil a uma mente que foi exercitada durante séculos para condenar, julgar e avaliar, deter todo esse processo e ficar simplesmente a observar o que é. Entretanto, se não se fizer esta observação, não apenas no nível superficial, mas em todo o conteúdo da consciência, nunca será possível penetrarmos as profundezas da mente.

Veja, por favor, se estais aqui realmente com o fim de compreender o que se está dizendo, que é isto que deve interessar-nos, e nada mais. Vosso problema não é o de saber a que sociedade pertencer, a que gênero de atividades entregar-vos, que livros ler, e outras superficialidades dessa ordem, mas, sim, de saber como libertar a mente do condicionamento. A mente não é apenas a consciência desperta, ocupada com as atividades diárias, mas é também as camadas profundas do inconsciente, onde se encontra todo o resíduo do passado, da tradição, dos instintos raciais. Tudo isso é a mente, e a menos que essa consciência total seja livre, de ponta a ponta, a nossa busca, nossa investigação, nosso descobrimento, será limitado, estreito, insignificante.

A mente está toda condicionada. Não há uma só parte da mente que não esteja condicionada. Nosso problema, portanto, é este: Pode a mente, assim condicionada, libertar-se? E quem é a entidade que poderá libertá-la? Compreendeis o problema? A mente é a consciência total, com todas as suas camadas de conhecimentos, aquisições, tradições, instintos raciais, memórias. Esta mente pode libertar-se? Ou só pode libertar-se ao perceber que está condicionada e que todo movimento que faça para sair de seu condicionamento é outra forma de condicionamento? Espero que estejais compreendendo. Se não, continuaremos a examinar esse ponto em dias vindouros.

A mente está toda condicionada, o que é um fato evidente, se refletirmos a tal respeito. Isso não é invenção minha, é um fato. Pertencemos a uma dada sociedade, fomos educados de acordo com determinada ideologia, certos dogmas, tradições, e a vasta influência da civilização, da sociedade, condiciona-nos incessantemente o espírito. Como pode esse espírito ser livre, se todo movimento para libertar-se resulta de seu condicionamento e, por conseguinte, produzirá, forçosamente, mais condicionamento? Só há uma resposta: a mente só pode ser livre quando está completamente tranquila. Embora tenhamos problemas e inúmeros impulsos, conflitos e ambições, se — mercê de autoconhecimento, da autovigilância sem aceitação ou condenação — ela estiver cônscia, imparcialmente, do seu próprio processo, então, desse percebimento há de resultar um silêncio extraordinário, uma tranquilidade de espírito em que não se observa movimento de espécie alguma. É só então que a mente é livre, porquanto nada mais deseja, nada mais busca, não visa a nenhum objetivo ou ideal — que são as projeções de toda mente condicionada. E se logrardes alcançar essa compreensão em que não há automistificação, encontrareis a possibilidade de ver surgir aquela coisa extraordinária que se chama criação. Só então está a mente apta a compreender aquela imensidade que se pode chamar Deus, a Verdade, ou como quiserdes — a palavra tem muito pouca importância. Podeis ser prósperos socialmente, possuir muitos bens — automóveis, casas, geladeiras — ter paz superficial, mas, sem o surgimento daquilo que é imensurável, encontrareis sempre aflições. A libertação da mente de seu condicionamento é o fim do sofrimento.

Krishnamurti - Realização sem Esforço

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill