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sábado, 7 de abril de 2018

Inveja é mecanismo de comparação

Inveja é mecanismo de comparação

Uma das grandes dificuldades, quando queremos comunicar-nos uns com os outros, é compreender o conteúdo, a intenção das palavras que empregamos, não achais? A profundeza de nossas palavras depende, sem dúvida, de nossa maneira de pensar, sentir e agir. Se pronunciamos as palavras superficialmente, ou se a palavra é meramente uma abstração, pouca significação terá o que dizemos. Mas se, ao contrário, a palavra não é mera abstração e tem um "ponto de referência" que compreendemos, de parte a parte, o qual estabelecemos juntos, com a, equilíbrio, com lucidez, com clareza, haverá então possibilidade de nos pormos em comunicação e uma reunião desta natureza será frutuosa. Mas, em geral, a dificuldade é que vós tendes um "ponto de referência" e eu tenho outro, muito diverso; ou, posso falar muito abstratamente, sem nenhum "ponto de referência" tornando-se, assim, impossível a comunicação, um profundo entendimento entre nós. Nessas condições, parece-me de grande importância possamos comunicar-nos uns com os outros, no mesmo nível e ao mesmo tempo. E esta comunicação só é realizável quando. compreendemos, vós e eu, o inteiro conteúdo das palavras que empregamos. A compreensão, por certo, é instantânea; não é para amanhã nem para depois de terdes ouvido esta conferência.

Para podermos compreender-nos reciprocamente, acho necessário não nos deixarmos enredar pelas palavras. Porque uma palavra como "Deus", por exemplo, pode ter um significado especial para vós, enquanto para mim pode representar uma ideia completamente diversa ou ideia nenhuma. Assim sendo, é quase impossível estarmos em comunicação uns com os outros, a menos que, tenhamos todos a intenção de compreender as palavras, e ultrapassá-las. A palavra "liberdade" em geral implica estar livre de alguma coisa, não é verdade? Significa, comumente, estar livre da avidez, da inveja, do nacionalismo, do rancor, disto ou daquilo. Entretanto, "liberdade" pode significar coisa muito diferente, ou seja o sentimento de ser livre, não de uma coisa, porém a "realização" do fato de "ser livre". E acho muito importante compreender este significado.

Em geral, não estamos bem familiarizados com o sentimento de "ser livre", mas precisamos familiarizar-nos com ele, acostumar-nos com esse sentimento, conhecê-lo. Porque a tirania se está a espalhar pelo mundo inteiro. Sob o disfarce de fascismo, comunismo, socialismo, etc., a sociedade está sendo cada vez mais organizada para ajustar-se a um plano — um plano quinquenal, um plano decenal, etc. — que torna necessária a existência de um corpo administrativo investido de autoridade, para levá-lo a efeito. E começa, assim, a tirania. Entretanto, a sociedade tem de ser organizada. Nestas condições, é verdadeiramente muito complexo o problema da liberdade — o conhecimento da liberdade — e acho muito importante examiná-lo.

Sem liberdade, não há evidentemente possibilidade alguma de explorar e descobrir o que é a verdade. Mas como é difícil a mente ser livre e experimentar, de fato, esse estado — e não apenas pensar que é livre! Para poder explorar e descobrir, deve a mente possuir essa qualidade, essa liberdade que não é o estado negativo de estar livre de alguma coisa. Acho que há uma diferença entre os dois estados. Quando, apenas, estou livre de alguma coisa, esse estado de liberdade é uma negação, um vácuo. Mas a "realização" do fato da liberdade que não é "estar livre de uma coisa", este é um estado positivo. Assim sendo, precisamos compreender o conteúdo desta palavra — "liberdade".

Desde a infância, educam-nos para sermos livres, mas somos condicionados, moldados pelo padrão social. Temendo que a liberdade possa desencaminhar a criança, fazê-la ultrapassar os limites permitidos, estabelecemos, por nossa vez, várias regras e preceitos, permissões e proibições, pensando que guiarão a criança pelo bom caminho, conduzindo-a à bem-aventurança, a Deus, à Verdade — ou como quer que se chame. Desde o início afirmamos ser necessário condicionar a mente, moldá-la. Por isso, nunca investigamos este problema da liberdade. Se o tivéssemos feito, os nossos valores, a nossa ação, toda a nossa perspectiva da vida, seriam completamente diferentes.

A questão, pois, é de saber se a mente, que é resultado de inumeráveis influências, dos livros que leu, do ambiente social, cultural e religioso em que foi educada, da memória que a moldou e a tornou assim como é — a questão é de saber se essa mente pode libertar-se, não abstratamente ou identificando-se com um ideal, porém libertar-se se verdadeiramente do passado. E, que é a continuidade do passado? Compreendeis o problema?

A mente, no momento, é de toda evidência um depósito de memórias — memória, que é acumulação, associação, reconhecimento, e reação. É muito interessante observar que existem atualmente máquinas que podem executar todas estas operações com muito mais rapidez do que a mente humana, provando-se assim que esta é um puro processo mecânico. E a mente que está presa a esse mecanismo, não importa quais sejam as suas atividades, tem de ser também mecânica. Pode, pois, a mente, reconhecendo este fato, manter-se num "estado de liberdade", embora possa fazer uso da máquina?

Não sei se estou esclarecendo bem a questão, mas acho-a muito importante. Porque, parece-me, nossa existência como indivíduos — se somos verdadeiros indivíduos, pois é provável que não o sejamos — é mecânica, rotineira, e, como indivíduos, não somos criadores. Não falo de criação no sentido restrito de "produção"; falo de criação, num sentido completamente diferente, que examinaremos mais adiante.

Ora bem, que é que dá à mente este senso de continuidade, em que não existe um só momento de liberdade, porém, unicamente, uma modificação constante, um processo mecânico de adição e subtração? Sem dúvida, só é possível a criação quando a mente não está sujeita ao mecanismo da memória. Acho que isso se vos tornará bem claro, se lhe prestardes atenção, embora verbalmente possa parecer difícil. Se observardes vossa própria mente, a operar, vereis que está continuamente a reagir, de acordo com aquele "fundo" constituído pela memória. Essa mente não pode conhecer o "estado de liberdade", o único em que é possível a criação. Para mim, é este o problema supremo; porque, é só no instante de "ser livre", que a mente pode descobrir algo completamente novo, não premeditado, não contaminado pelo passado.

Ora, que é que dá à mente essa continuidade mecânica, e porque teme a mente abandoná-la? E que é que cria o tempo — não o tempo cronológico, porém o tempo como sentimento de um movimento vindo de ontem e passando por hoje, para amanhã? Não há dúvida de que, enquanto a mente está em busca de mais, tem de existir este senso de continuidade. Estando insatisfeito comigo mesmo, assim como sou, desejo modificar-me; e para modificar-me digo que preciso de tempo. A modificação é sempre no sentido de mais; e quando peço mais, preciso da continuidade. A exigência de mais, é inveja, e nossa estrutura social está alicerçada na inveja. Há inveja, não só em nossas relações mundanas, mas também em nosso desejo de sermos mais espirituais. Enquanto a mente pensar em termos de mais — interior ou exteriormente — haverá inveja. E a libertação da inveja não é uma negação ou abstração da inveja, mas, sim, a total ausência de inveja, sem luta para ser não-invejoso.

Podemos examinar um pouco "este ponto? Sabeis o que é inveja, não? Penso que quase todos estamos perfeitamente familiarizados com este sentimento e talvez já tenhamos notado que toda a nossa sociedade se assenta na inveja. Há uma luta constante para se ser mais, não só na estrutura hierárquica da sociedade mas também interiormente. Vejo um automóvel, e desejo possuí-lo; vejo um santo, e desejo tornar-me santo. Esta luta incessante para ter ou vir a ser alguma coisa denota uma extraordinária insatisfação com o que somos; mas se desejamos compreender o que somos, não podemos compará-lo com o que gostaríamos de ser. A compreensão de o que é não resulta da comparação de o que é com o que deveria ser.

Não sei se já destes atenção, alguma vez, a este problema da inveja. Em nossos empregos, em nossa vida e trabalho de cada dia, a inveja campeia; transparece no respeito que tributamos ao homem que sabe mais, ao homem que tem poder, posição, prestígio, e na luta constante pelo mais, que se trava em nós mesmos. Todos conhecemos este sentimento de inveja, e enquanto ele existir, existirá frustração e sofrimento.

Ora, pode a mente libertar-se da inveja, totalmente? Considero muito importante esta questão; porque, se nunca for possível a mente libertar-se, de todo, da inveja, perpetuaremos uma sociedade baseada na aquisição, na ambição e todos os horrores que acarreta, e haverá um conflito infindável entre todos nós, a luta inútil para nos tornarmos algo, que se trava em todos os níveis de nossa existência. Pode a mente libertar-se da inveja? Se luto para libertar-me da inveja, pela disciplina, pela prática de um método, não há dúvida que dou continuidade à inveja, sob forma diferente. Aí está ainda presente o desejo de ser alguma coisa, tendo eu apenas mudado o objeto desse desejo: Quero ser agora o que chamo "não invejoso". Mas o desejo continua a ser o mesmo, a exigência de mais continua existente. Assim sendo, apercebida desse fato, pode a mente libertar-se da inveja? Se me acompanhardes lentamente, passo a passo, acho que percebereis isso.

Quando é que estou apercebido da inveja? A inveja não se torna existente pela comparação? Por certo, sou invejoso, porque vós tendes e eu não tenho. O próprio "mecanismo" de comparação é inveja. Eu sou um ente pequenino e insignificante, e vós sois um grande santo, e eu quero tornar-me igual a vós. Assim, onde há comparação, há inveja e, se observardes bem, vereis que somos educados nesta base. Nossa educação, nossa cultura, nossa maneira de pensar, tudo se baseia na comparação e na devoção à capacidade. Pode-se compreender o que quer que seja, pela comparação? Pela comparação, podemos ampliar o nosso saber; mas possuir conhecimentos não significa ter compreensão.

Assim, pois, a palavra inveja implica ambição, avidez, desejo de ser algo, não só socialmente mas também psicologicamente. E pode a mente libertar-se de todo dessa exigência de mais? Porque queremos mais? Esta exigência faz-nos progredir? Quando desejamos uma geladeira, um carro melhor, etc., isso, evidentemente, acarreta progresso, num certo nível. Mas, quando exigimos mais poder, mais preenchimento, mais virtude, quando psicologicamente desejamos alcançar um resultado, esta exigência interior destrói os benefícios do progresso técnico e traz sofrimentos ao homem. Enquanto, psicologicamente, estivermos exigindo mais, nossa sociedade será aquisitiva e continuará a haver conflito e violência. Não significa isto que devamos renunciar aos confortos físicos, aos benefícios produzidos pela tecnologia; mas é o impulso psicológico a nos servirmos dessas coisas como meios de autoexpansão — que é exigência de mais — que nos está destruindo.

Pode a mente libertar-se da inveja? Só poderá libertar-se, quando cessar a comparação, isto é, quando a mente se puser em confronto direto com o fato de que é invejosa. Estais compreendendo, senhores? Estar diretamente em confronto com o fato de que sou invejoso, não é a mesma coisa que o reconhecimento do fato mediante comparação. Espero estejais escutando, não apenas as minhas palavras, a descrição do que estou tentando transmitir-vos, porém escutando, no sentido de estardes verdadeiramente "experimentando" o que estou dizendo. Isto significa: observar a atividade de vossa mente, até vos tornardes apercebidos, diretamente apercebidos, do fato de que sois invejosos.

Ora, quando sabeis que sois invejosos? Sabeis que sois invejoso apenas quando existe comparação e empregais a palavra "inveja"? Não sabeis que sois invejoso, ao verdes uma coisa que desejais, e quando existe o desejo de mais mais prazer, mais prestígio, mais dinheiro, mais virtude, etc.? Ou sabeis que sois invejosos, independentemente do processo de desejar mais? Isto é, pode a mente perceber o fato de que é invejosa, independentemente desse desejar? Pode a mente libertar-se da palavra "inveja"?

A mente, afinal, é constituída de palavras, além de outros fatores. Pois bem; pode a mente libertar-se da palavra "inveja"? Fazei experiência a esse respeito, e vereis que palavras, como "Deus", "Verdade", "ódio", "inveja", produzem um efeito profundo na mente. E pode a mente libertar-se, neurológica e psicologicamente dessas palavras? Se não ficar livre delas, será incapaz de encarar o fato que se chama "inveja". Quando a mente pode olhar diretamente o fato a que chama "inveja", o próprio fato atua então muito mais rapidamente do que o esforço mental para fazer alguma coisa em relação ao fato. Enquanto a mente pensa em libertar-se da inveja, pelo ideal da "não-inveja", etc., está distraída, não está encarando o fato. A própria palavra "inveja" é uma distração, do fato. O mecanismo de reconhecimento se verifica pela palavra. No momento em que reconheço o sentimento por meio da palavra, dou continuidade ao sentimento.

Positivamente, senhores, o homem que está interessado em libertar-se completamente da inveja, tem de considerar bem o assunto; tem de ver que todo o nosso fundo cultural está baseado na inveja, na aquisição, espiritualmente e bem assim mundanamente. Isto é, os mais de nós desejamos ser algo, nesta vida ou na outra. Queremos mais saber, mais poder, posição mais alta, mais virtude; e, assim, a continuidade da mente, como "eu", se deve a essa exigência de mais, que é inveja. A inveja é também um "processo" de dependência.

Agora, em vista desses aspectos extraordinariamente complexos, da inveja, pode a mente libertar-se dela inteiramente? Porque, se não o fizer, a mente não poderá ser livre, para explorar, descobrir, compreender. Ela só pode libertar-se da inveja, quando está diretamente apercebida do fato de que é invejosa; e não estará diretamente apercebida desse fato, enquanto estiver condenando ou comparando. Isto, com efeito, é muito simples. Se desejais compreender o vosso filho, tendes de estudá-lo, não é verdade? Estudar o vosso filho significa observá-lo e não compará-lo com o irmão mais velho ou qualquer outro menino; significa olhá-lo diretamente, sem pensar, a seu respeito, de maneira comparativa. Se pensais comparativamente, o destruís, porque a imagem do outro se torna então mais importante do que o vosso filho.

Nessas condições, pode a mente observar em si mesma esse desdobrar-se da inveja, porém sem condenação nem comparação? Pode tornar-se conhecedora do fato de que é invejosa, sem atuar sobre o fato? A atuação da mente sobre o fato é também inveja, porque a mente quer então transformar o fato noutra coisa. A menos que nossa mente se liberte, de todo, da inveja, continuaremos na escravidão, haverá sempre sofrimento e toda e qualquer atividade da mente só produzirá mais malefícios. A mente que se interessa pela sua total libertação da inveja, tem de se tornar apercebida do fato, sem atuar sobre ele. Ver-se-á então com que rapidez o próprio fato produz um resultado, uma ação, que não é a ação da mente distraída do fato. Só então pode a mente estar tranquila. Não há controle nem auto-hipnose que possa tornar a mente verdadeiramente tranquila; e é essencial se torne a mente tranquila, despreocupada de si mesma, porque então se oferece a possibilidade de descobrir ou experimentar algo novo. Qualquer experiência que tem continuidade, tem por base a inveja, o desejo de mais; assim sendo, a mente tem de morrer para tudo o que aprendeu, adquiriu, experimentou. Vereis então a mente tornar-se silenciosa. E este silêncio tem seu movimento próprio, não contaminado pelo passado, tornando-se, assim, possível manifestar-se algo totalmente novo.

Ao considerarmos juntos as perguntas que aqui tenho, devo repetir que considero importante compreender que não há resposta para nada; e esta compreensão, em si mesma, é uma "experiência" extraordinária. Mas é muito difícil para a maioria de nós compreender que não há resposta para nada, porque nossa mente está buscando algum resultado. Quando a mente busca um resultado, encontrará o que busca; mas este próprio resultado cria problemas.

Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
11 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Descontentamento é sinal de inveja


Descontentamento é sinal de inveja

INTERPELANTE: Existe em mim um descontentamento profundo, e estou em busca de alívio. Instrutores, como Sankara e Ramanuja, recomendaram a submissão a Deus. Recomendaram também o cultivo da virtude e o seguimento do exemplo dos nossos Mestres. Pareceis considerar tudo isso inútil. Tereis a bondade de explicar por quê?

KRISHNAMURTI: Porque estamos descontentes, e que há de mau no descontentamento? Evidentemente, estamos descontentes porque — para dizê-lo com muita simplicidade — queremos ser alguma coisa. Se sou bom pintor, pinto para tornar-me mais famoso; se escrevo um poema, sinto-me insatisfeito por não o achar bom e luto para melhorar a minha capacidade. Se sou dessas pessoas ditas religiosas, também neste terreno quero ser alguma coisa. Sigo o exemplo dos vários santos e desejo alcançar nomeada igual à deles. Desde meninos, nos dizem sempre que devemos ser tão bons ou melhores do que outro. Fui criado na base da comparação, da competição, da ambição e, por isso, levo em toda a vida a carga do descontentamento. Propriamente falando, descontentamento é inveja; e nossa cultura religiosa e social está baseada na inveja. Estimulam-nos a ser alguma coisa, para maior glória de Deus. Por um lado, estimula-se o descontentamento, e, por outro lado, queremos achar meios e modos de dominar o descontentamento. Estando descontentes, economicamente, socialmente, recorremos aos exemplos religiosos, a fim de encontrarmos satisfação; meditamos, praticamos disciplinas, a fim de nos livrarmos do descontentamento, ficarmos em paz. Isto está acontecendo com todos vós e eu vos digo que é uma coisa completamente fútil, sem significação nenhuma. Seguir, imitar, obedecer a uma autoridade em assuntos religiosos é coisa má, assim como é uma coisa má a tirania do governo, porque então está completamente perdida a individualidade.

Atualmente, não sois indivíduos, e sim meras máquinas de imitar, produto de um certo meio cultural, um certo sistema educativo. Sois o corpo coletivo, não sois indivíduo, sendo isto muito óbvio. Todos sois hinduístas ou cristãos, isto ou aquilo, com certos dogmas, crenças, o que significa que sois produto da massa. Por conseguinte, não sois indivíduos. Precisais estar totalmente descontentes, para poderdes descobrir. Mas a sociedade não deseja ver vos descontentes, porque teríeis então vitalidade, começaríeis a inquirir, a investigar, a descobrir e, consequentemente, vos tornaríeis perigosos para ela.

Infelizmente, o descontentamento de quase todos vós está baseado no desejo de satisfação, e no momento em que vos vedes satisfeitos, desaparece o descontentamento. E então definhais e declinais. Já não observastes como pessoas descontentes quando jovens, perdem esse descontentamento logo que obtêm um bom emprego? Dai ao comunista um emprego rendoso, e lá se foi o seu descontentamento. O mesmo acontece com as pessoas religiosas. Não riais — isto também acontece convosco. Desejais encontrar o mestre certo, o guru certo, a disciplina certa: e o que se encontra é uma gaiola que vos asfixiará e destruirá; e esta destruição se chama "busca da verdade"... Isto é, quereis achar-vos satisfeitos permanentemente, para não sofrerdes perturbação, descontentamento, não terdes o desejo de investigar. Foi isso que realmente sucedeu; e quanto mais antiga a civilização, tanto mais destrutiva, porque a tradição gera sempre mediocridade.

Vemos, pois, que o descontentamento, tal como ora o conhecemos, é meramente desejo de encontrar satisfação permanente. E existe de fato satisfação permanente, um permanente estado de paz? Ou só existe um estado em que nada é permanente? Só a mente que, na sua totalidade, é impermanente, incerta, pode descobrir o que é verdadeiro; porque a Verdade não é estática. A Verdade é sempre nova e só pode ser compreendida pela mente que está morrendo para todas as acumulações, todas as experiências e é, por conseguinte, fresca, jovem, "inocente". Agora, existe descontentamento sem objetivo, sem "motivo"? Compreendeis? A mente cujo descontentamento tem um "motivo" procurará uma conclusão que a satisfaça, destruindo o descontentamento; e, então, a mente definha, declina. Todo nosso descontentamento está baseado em algum "motivo", não? Mas agora estamos fazendo uma pergunta completamente diferente: existe descontentamento sem "motivo", que não seja produto de uma causa? Não deveis investigar e averiguar isso? Ora, tal descontentamento é necessário. Ou empreguemos uma palavra diferente — o que aliás é sem importância — digamos que é um movimento sem causa, sem "motivo". Penso que tal movimento existe, e isto não é mera especulação nem promessa. Quando a mente compreende o descontentamento que tem "motivo", o descontentamento nascido do desejo de satisfação, permanência; quando percebe, realmente, a verdade relativa a esse descontentamento, vem então à existência "a outra coisa". Mas "a outra coisa" não pode ser compreendida nem experimentada, se há descontentamento com "motivo", e atualmente todo descontentamento nosso tem "motivo": não posso alcançar o que desejo, minha mulher não me ama, nada valho assim como sou e, portanto, tenho de tornar-me diferente, e assim por diante. Há esta interminável multiplicidade de causas e efeitos, causadora dessa coisa que chamamos "descontentamento".

Ora, se a mente está apercebida de todo esse mecanismo e o compreende integralmente, percebe a sua verdade, vereis então manifestar-se um movimento sem "motivo" algum — um movimento, uma ação, uma coisa não estática, que se pode chamar Deus, a Verdade, ou como quiserdes. Nesse movimento há beleza infinita, e ele se pode chamar "amor"; porque, afinal, o amor é sem "motivo". Se eu vos amo e desejo algo de vós, isto não é amor — embora eu lhe dê esse nome — porque, aí, há "motivo". A atividade social ou religiosa baseada em "motivo", ainda que a denominemos "serviço", não é serviço porém, sim, autopreenchimento.

Pode-se descobrir o que é amar sem "motivo"? Isso é uma coisa que se precisa descobrir e que não pode ser praticada. Se disserdes: "Como alcançarei esse amor?" — estareis fazendo uma pergunta sem significação, porque o desejo de alcançá-lo já é um "motivo". Se empregais um método, para alcançar esse amor, esse método só tornará mais forte o "motivo", que é "vós". Vós sois então importante, e não o amor.

Se penetrardes profundamente esta questão — o que é muito difícil e é, em si, meditação — penso que descobrireis um movimento sem "motivo", um movimento sem causa alguma e é esse movimento que traz a paz ao mundo, e não o movimento de vosso descontentamento, determinado por uma causa. O homem em quem se verifica esse movimento sem causa é um homem religioso, é um homem que ama e, portanto, pode fazer o que deseja. Mas o político, o reformador social, o homem que cultiva a virtude, a fim de ser feliz ou de conhecer Deus, o homem, cujos esforços são o resultado de um "motivo", num nível qualquer, — as atividades desse homem só podem gerar ódios, antagonismos e sofrimentos.

Eis porque muito importa que cada um de nós descubra por si mesmo, deixando de seguir Sankara, Ramanuja, Buda ou Cristo. Para por nós mesmos descobrirmos, acharmos uma coisa, temos de ser livres; e não somos livres, se meramente citamos Sankara ou outra autoridade qualquer. Se seguimos, nunca achamos. Assim, pois, a liberdade está no começo, e não no fim. A liberdade precisa ser buscada agora, não no futuro. Liberdade significa estar livre de autoridade, da ambição, da avidez, da inveja, do descontentamento que tem "motivo" e exige resultados, e que asfixia o verdadeiro descontentamento.

Torna-se necessária uma revolução, não dentro do padrão da sociedade, porém dentro de cada um de nós, a fim de que nos tornemos indivíduos totais e não pequenos Sankaras, pequenos Budas, pequenos Cristos. Temos de empreender a jornada sozinhos, completamente desacompanhados, sem ajuda de ninguém, de nenhuma influência, de nenhum estímulo ou desestímulo; porque, então, já não existe "motivo" algum. A própria jornada representa o "motivo", e só os que a empreendem produzirão algo novo, algo não corrompido, neste mundo — e não os reformadores sociais, os "beneméritos", os mestres e seus discípulos, os pregadores de fraternidade. Estes nunca trarão paz ao mundo. São eles os verdadeiros malfeitores. O "homem da paz" é aquele que repele toda autoridade, que compreende, em todos os seus aspectos, a ambição, a inveja, que se desprende totalmente da estrutura desta sociedade aquisitiva e de todas as coisas envolvidas de tradição. Só então a mente é nova. E é necessária uma mente nova, para encontrar Deus, a Verdade — ou como quiserdes chamá-lo — não uma mente fabricada pela sociedade, pela influência.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Madrasta, 18 de janeiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana

quarta-feira, 4 de abril de 2018

A compreensão do mecanismo social


A compreensão do mecanismo social

TALVEZ convenha, em primeiro lugar, considerarmos o que se entende por “escutar”. Evidentemente, estais aqui para escutar e compreender o que se está dizendo; e acho de importância averiguar como escutamos, uma vez que a compreensão depende da nossa maneira de escutar. Quando escutamos, estabelecemos em nós mesmos uma discussão do que se está dizendo, interpretando-o de acordo com nossas opiniões pessoais, conhecimentos, idiossincrasias, ou ficamos simplesmente a escutar, com atenção, sem intuito de interpretação? E que significa “prestar atenção”? Parece-me realmente importante diferenciar entre “atenção” e “concentração”. Sabemos escutar com uma atenção completamente isenta de interpretação, oposição, ou aceitação, de modo que compreendamos integralmente o que se diz? É bastante óbvio, penso eu, que, se somos capazes de escutar com atenção completa, esta mesma atenção produz um efeito extraordinária.

Por certo, há duas maneiras de escutar. Pode-se seguir superficialmente as palavras, perceber sua significação, alcançando-se meramente o significado exterior da descrição; ou pode-se escutar a descrição, a exposição verbal, e continuá-la interiormente, isto é, podemos estar apercebidos do que se está dizendo, como uma coisa que estamos experimentando diretamente em nós mesmos. Se sabemos proceder desta última maneira, isto é, se através da descrição somos capazes de experimentar diretamente a coisa que se está dizendo, terá isso, a meu ver, grande importância. Espero tenteis experimentar o que estais escutando.

No mundo inteiro há pobreza, em proporções imensas, como na Ásia, e enormes riquezas, como neste país; há crueldade, sofrimento, injustiça, um modo de viver em que não existe nenhum sentimento de amor. Vendo-se isto, que se pode fazer? Qual a maneira correta de nos aplicarmos à solução desses inumeráveis problemas? As religiões, em toda parte, têm sempre encarecido o aperfeiçoamento pessoal, o cultivo da virtude, a aceitação da autoridade, a obediência a certos dogmas, crenças, a necessidade de fazermos um grande esforço de ajustamento aos padrões estabelecidos. Não só religiosamente, mas também politicamente, vemos esse constante impulso de aperfeiçoamento pessoal: “Devo tornar-me mais nobre, mais delicado, mais atencioso, menos violento.” A sociedade, com a ajuda da religião, criou uma civilização baseada no auto-aperfeiçoamento, no sentido mais amplo da palavra. É isto o que cada um de nós está tentando fazer, a todas as horas: estamos tentando melhorar a nós mesmos, o que implica esforço, disciplina, ajustamento, competição, aceitação da autoridade, senso de segurança, justificação da ambição. E o auto-aperfeiçoamento conduz, com efeito, a certos resultados óbvios: torna a pessoa mais sociável. Tem significação social, e nada mais, visto que o auto-aperfeiçoamento não pode revelar a Realidade fundamental. Acho muito importante compreender-se isto.

As religiões que temos não nos ajudam a compreender aquilo que é real, porquanto, essencialmente, estão elas baseadas, não no abandono do “eu”, mas no melhoramento, no aperfeiçoamento do “eu”, o que significa: continuidade do “eu”, sob diferentes formas. São pouquíssimos os que se libertam da sociedade, não das exterioridades sociais, mas de todas as influências de uma sociedade que está baseada na ambição, na inveja, na comparação, na competição. Esta sociedade condiciona a mente de acordo com certo padrão de pensamento, o padrão do auto-aperfeiçoamento, auto-ajustamento, auto-sacrifício, e só os que são capazes de libertar-se de todo condicionamento, só estes podem descobrir aquilo que não é mensurável pela mente.

Agora, que entendemos por esforço? Todos estamos a fazer um esforço, nosso padrão social está baseado no esforço de adquirir, de compreender mais, de ter mais conhecimentos para, com esse fundo de conhecimentos, agirmos. Há sempre um esforço de automelhoramento, auto-ajustamento, autocorreção, impulso para nos preenchermos, com todas as suas frustrações, temores e angústias. De acordo com esse padrão, que todos conhecemos e de que somos parte integrante, é uma coisa perfeitamente justificável ser ambicioso, competir, invejar, perseguir determinado resultado; e nossa sociedade, seja na América ou na Europa, seja na Índia, está essencialmente baseada em tal padrão.

Assim sendo, pode a sociedade, a civilização, em seu sentido mais amplo, ajudar o indivíduo a descobrir a verdade? Ou a sociedade é nociva ao homem, já que o impede de descobrir o que é a verdade? Indubitavelmente, a sociedade, tal como a conhecemos, esta civilização em que estamos vivendo e funcionando, leva o homem a ajustar-se a um padrão determinado, a ser respeitável, e ela é o produto de muitas vontades. Nós criamos esta sociedade; ela não nasceu espontaneamente. E esta sociedade ajuda o indivíduo a achar o que é a Verdade ou Deus — ou o nome que quiserdes, pois as palavras são sem importância — ou deve o indivíduo pôr de parte, totalmente, a cultura, os valores da sociedade, para descobrir a Verdade? O que não significa — e cumpre notá-lo claramente — que ele deve tornar-se anti-social, fazer o que bem entender. Pelo contrário.

A atual estrutura social baseia-se na inveja, no impulso aquisitivo, em que está implicada a conformidade aos padrões, a aceitação da autoridade, a perpétua realização da ambição — e tudo isso representa, essencialmente, o “eu”, o “ego”, a lutar para se tornar alguma coisa. É deste material que está feita a sociedade, e sua cultura — nos seus aspectos agradáveis e desagradáveis, belos e feios — todo o campo de empreendimentos sociais — sua cultura condiciona a mente. Vós sois o resultado da sociedade. Se tivésseis nascido na Rússia e sido educado pelos seus métodos especiais, negaríeis a Deus, aceitaríeis certos padrões, tal como aqui aceitais outros padrões. Aqui, credes em Deus, e acharíeis horrível, se não crêsseis, pois não seríeis pessoas respeitáveis.

A sociedade, pois, em toda parte, está condicionando o indivíduo, e esse condicionamento assume a forma de automelhoramento, que na realidade significa perpetuação do “eu”, do “ego”, sob diferentes formas. Esse melhoramento pode ser grosseiro, ou então muito requintado, quando se torna prática da virtude, da bondade, do chamado amor ao próximo; mas, essencialmente, ele representa a continuação do “eu”, que é produto das influências condicionadoras exercidas pela sociedade. Todos os vossos esforços têm sido aplicados no sentido de vos tornardes alguma coisa, neste mundo, se tiverdes sorte, ou no “outro mundo”; mas o que vos move é sempre a mesma ânsia, o mesmo impulso para manter a continuidade do “eu”.

Ao perceber-se tudo isso — e não é necessário que eu entre em todos os respectivos pormenores — é inevitável esta pergunta: a sociedade ou a cultura existe para ajudar o homem a descobrir isso que se pode chamar a Verdade, Deus? O que importa verdadeiramente é que descubramos, que experimentemos diretamente algo que se acha muito além da mente, e não, apenas, que tenhamos uma crença, pois isso não tem importância nenhuma. E, as chamadas religiões, o seguir vários instrutores e disciplinas, o pertencer a seitas, cultos, pode qualquer dessas coisas ajudar-vos a encontrar aquela bem-aventurança eterna, aquela realidade eterna? Se não vos limitardes a ouvir, apenas, o que se está dizendo, concordando ou discordando, mas perguntardes a vós mesmos se a sociedade vos está ajudando — não no sentido superficial de alimentar-vos, vestir-vos e dar-vos morada, mas fundamentalmente — se de fato fizerdes diretamente esta pergunta a vós mesmos, o que significa que estareis aplicando a vós mesmos o que se está dizendo, tornando-o assim uma experiência direta, e não meramente uma repetição de coisas ouvidas ou aprendidas, vereis então que o esforço só pode existir na esfera do automelhoramento. E o esforço é, bàsicamente, parte integrante da sociedade, a qual condiciona a mente de acordo com um padrão em que o esforço é considerado um fator essencial.

Por exemplo, se sou cientista, tenho de estudar, tenho de conhecer matemática, de saber tudo o que já se disse anteriormente, tenho de possuir um imenso cabedal de conhecimentos. Minha memória tem de ser exercitada no mais alto grau, tenho de torná-la mais forte, mais ampla. Mas a tal memória, tal saber, na, realidade impede descobrimentos mais profundos. Só quando sou capaz de esquecer tudo o que sei, todos os conhecimentos que adquiri — os quais podem ter utilidade noutras ocasiões — só então estou apto a descobrir algo novo. Não me será possível descobrir nada novo com o lastro do passado, com minha carga de conhecimentos — o que, mais uma vez, é um evidente fato psicológico. E estou dizendo isto porque queremos ir ao encontro da realidade, daquele extraordinário estado criador, com toda a carga que a sociedade nos impôs, todo o condicionamento de uma dada cultura, razão por que nunca descobrimos o novo. Por certo, aquela realidade, que constitui o sublime, o eterno, tem de ser sempre nova, estar fora do tempo, e para que o novo possa manifestar-se, nada se deve empreender no terreno em que o esforço só visa ao automelhoramento, ao autopreenchimento. Só quando tal esforço cessar totalmente, se tornará possível a “outra coisa”.

Notai, por favor, que isto é muito importante. Não é uma questão de ficardes contemplando o umbigo e vos deixardes enlevar por uma ilusão qualquer, mas, sim, de compreender-se o mecanismo total do esforço, na sociedade, esta sociedade de que somos produto, esta sociedade que nós mesmos construímos, onde o esforço é uma coisa essencial, porque, sem ele, estamos perdidos. Se não sois ambicioso, sereis destruído; se não sois ganancioso, sereis pisado; se não sois invejoso, nunca tereis, cargos elevados ou grandes êxitos na vida. Por isso, estais constantemente a fazer esforços para serdes ou para não serdes, para vos tornardes algo, terdes êxitos felizes, realizardes as vossas ambições; e com tal mentalidade, que é produto da sociedade, quereis tentar achar algo que não é produto da sociedade.

Ora, se desejamos descobrir o que é a verdade, devemos estar totalmente livres de todas as religiões, de todos os condicionamentos, dogmas, crenças, de toda autoridade que nos força a ajustar-nos a padrões; e isso significa, essencialmente, “estar completamente só” — coisa muito difícil, que não é um simples entretenimento para uma manhã de domingo, para um deleitável passeio de carro e um refrescante descanso debaixo das árvores, ouvindo coisas sem sentido. O descobrimento da Verdade requer uma dose imensa de paciência, de serenidade, de incerteza. O mero estudo dos livros não tem valor algum; mas se, enquanto estais escutando, puderdes manter-vos completamente atentos, vereis que essa atenção vos libertará de todo esforço, de modo que, sem nenhum movimento em qualquer direção, a mente será capaz de receber algo extraordinariamente belo e criador, algo que não pode ser medido pelo saber, pelo passado. Só uma pessoa assim é verdadeiramente religiosa e revolucionária, porque já não faz parte da sociedade. Enquanto o indivíduo for ambicioso, invejoso, ganancioso, competidor, ele é a sociedade. Com uma mentalidade dessas, de que é dificílimo nos libertarmos, esse indivíduo busca Deus, e essa busca não tem significação alguma, já que não passa de um novo esforço que ele faz, para se tornar algo, para ganhar algo. Eis porque é de grande importância compreendermos as nossas relações com a sociedade, estarmos apercebidos de todas as crenças, dogmas, doutrinas e superstições que adquirimos, e deitarmos fora tudo isso — não por meio de esforço, porque nesse caso ver-nos-emos de novo apanhados na mesma rede, mas percebendo essas coisas no seu exato significado e soltando-as de nós, tal como as folhas do outono, que murcham e são levadas pelo vento, deixando a árvore inteiramente nua. Só quando se acha neste estado, completamente nua, a mente pode receber algo portador de uma felicidade imensa para a nossa vida.

Krishnamurti, 7 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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domingo, 28 de setembro de 2014

Na condenação ou justificação, não há compreensão

Você diz que o libertar-nos do “eu”  é uma árdua tarefa, e, ao mesmo tempo, você declara que todo o esforço de libertação constitui um empecilho a essa própria libertação. Como executar essa “árdua tarefa” sem esforço?

Krishnamurti: O que você entende por esforço? Quando é que faz esforço? E se não há esforço algum, implica isso indolência, estagnação? Comecemos, pois, por averiguar o que se entende por esforço, em que sentido estamos fazendo esforço? E por que fazemos esforço.

Quando dizemos “fazer esforço”, entendemos sempre um desperdício de energias com o fim de alcançarmos um resultado, não é isso? Desejamos mais saúde, mais compreensão, uma melhor situação econômica, social ou politica, etc., o que significa que estamos sempre fazendo esforço para chegarmos a alguma parte.

Ou, também, fazemos esforço para afastar certos obstáculos psicológicos. Se somos invejosos, dizemos que não devemos sê-lo, assim, uma resistência contra a inveja.

Ou, ainda, queremos ser muito eruditos, queremos saber mais, para causar impressão nos outros ou para obtermos um emprego melhor; por conseguinte, lemos, estudamos.

Eis tudo o que sabemos a respeito do esforço, não é verdade?

Para a maioria de nos, o esforço ou é positivo ou negativo, um processo de vir a ser ou não vir a ser; e esse mesmo processo provem do centro do “eu”, não é exato? Se sou invejoso e faço esforço para não sê-lo, não há duvida de que a entidade que faz tal esforço é ainda o “ego”, o “eu”.

Todo o esforço para dominar o “eu”, positiva ou negativamente, é ainda parte do “eu                “, e, por conseguinte, só pode dar-lhe mais força; e ficamos presos nesse circulo vicioso.

O problema, pois, é de como quebrar o circulo vicioso, essa cadeia continua de esforços que só servem para fortalecer o “eu”.

Ao perceber que é invejosa, a mente deseja não ser invejosa, pensando que o não ser invejoso traz certa compensação; obtém ela certa satisfação do esforço que faz para não ser invejosa, registra uma vitória espiritual. Assim, em não ser invejosa a mente encontra segurança, proteção, e o produto do esforço é ainda o “ego”, o “eu”.

Tenha a bondade de perceber bem isso, só isso.

Surge assim, o problema: que devo fazer, quando sou invejoso? Estou acostumado a rejeitar a inveja, a levantar resistência contra ela; veja agora o quanto isso é fútil, quanto é absurdo que uma parte de mim mesmo esteja a negar outra parte quando eu sou o todo. Que devo então fazer?

Entretanto, jamais chegamos a esse ponto, não reconhecemos nunca o fato de sermos, ao mesmo tempo, a inveja e o desejo de não ser invejoso. Quando somos invejosos, fazemos vigorosos esforços para dominar a inveja, e pensamos que esse esforçar-se é benéfico, e nos libertará do “eu”. Não o fará.

Mas quando compreendo, quando estou perfeitamente cônscio de que a inveja e o desejo de não ser invejoso constitui um processo total, há então esforço? Ocorre então algo inteiramente diferente, não é verdade?

Muito bem. No momento em que estamos cônscios de ser invejosos, coléricos ou ciumentos, põe-se em funcionamento um processo de condenação; e enquanto estamos condenando, não há compreensão.

As próprias palavras “inveja”, “cólera”, “ciúme”, subentendem julgamento, comparação, condenação, não é exato? Através de séculos de educação, de civilização, de ensino religioso, estas palavras adquiriram um sentido de censura, representam algo que cumpre afastar, algo que devemos resistir, combater, e nossa reação é toda nesse sentido.

Assim, ao dar nome a certos sentimentos, já estou em atitude condenatória; e o próprio ato de condenar, de resistir a um sentimento, dá-lhe mais força. Se não condeno a inveja, isso significa render-me a ela? Tornar-me-ei mais invejoso? Ora, a inveja é sempre inveja, nem mais nem menos.

O desejo, a direção pode variar,  mas a inveja, é sempre a mesma coisa, quer tenha por objeto um “Ford” ou um “Cadillac”, quer objetive uma casa grande ou uma casa pequena. Assim, pois, o não dar nome para a inveja, e portanto o não condena-la, não significa ceder a ela.

Quando compreendemos que a própria palavra “inveja” denota condenação, que o sentimento de antagonismo à inveja é inerente à própria palavra, manifesta-se logo um estado de liberdade. Essa liberdade não se opõe à inveja, não é liberdade da inveja.

Liberdade de uma determinada qualidade não é liberdade nenhuma, e o homem livre de algo assemelha-se ao homem que está contra o governo: enquanto ele está contra alguma coisa não é um homem livre. A liberdade é completa em si; não resulta de alguma atitude, não é contra algum estado ou qualidade.

Vemos, pois, que todo esforço para vencermos alguma coisa, para libertar-nos de alguma coisa, só dá mais força ao “eu”, ao “ego”; e quando compreendemos isso realmente, quando estamos conscientes da qualidade do seu oposto, como um processo total, e percebermos como a própria palavra encerra condenação ou estímulo, então já não estamos na sujeição das palavras e, portanto, nosso espirito está livre para considerar, observar o que é .

A compreensão do que é, e a liberdade que traz, não resulta de exercício persistente, de esforço penoso, a que dedicamos vários minutos todas as manhãs; apenas surge essa compreensão quando estamos conscientes, em todo o ocorrer do dia, das árvores, dos pássaros, das nossas próprias reações, das coisas que sucedem interior e exteriormente, como um processo total.

Quando há condenação ou justificação, não há compreensão do que é; por isso torna-se dificílimo o estar consciente.

O que é só pode ser compreendido momento por momento, e isso significa devemos estar perfeitamente conscientes de que estamos julgando, de que cada palavra implica rejeição ou aceitação. Enquanto a mente for a expressão verbal do seu próprio condicionamento, nunca será livre. Só há liberdade quando a mente está aliviada de todo o pensamento.

Krishnamurti em, Percepção Criadora

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A mente invejosa nunca pode estar tranquila

Pergunta: Afirmam alguns filósofos que a vida tem finalidade e significação; outros, porém, sustentam que a vida é puramente acidental e absurda. Que dizeis vós? negais o valor dos alvos, dos ideais e intenções; mas, sem isso, tem a vida alguma significação?

KRISHNAMURTI: Devemos atribuir tanta atenção ao que dizem os filósofos? Certos intelectuais dizem que a vida tem finalidade, tem significação, enquanto outros dizem que ela é acidental e absurda. Ora, cada um a seu modo, negativa ou positivamente, tanto uns como outros estão conferindo significação à vida, não achais? Um afirma, outro nega, mas essencialmente os dois são iguais. Isso é perfeitamente claro. 

Pois bem. Quando perseguis um ideal, um objetivo, ou indagais qual é a finalidade da vida, tal indagação ou busca está baseada no desejo de dar significação à vida, não está? Não sei se estais seguindo isto.

Minha vida é insignificante — suponhamos — e trato pois de dar-lhe significação. Pergunto: "Qual é a finalidade da vida?" — porque, se a vida tem alguma finalidade, poderei então viver em harmonia com essa finalidade. E, assim, invento ou imagino uma finalidade, ou, pela leitura, pela investigação, pela busca, encontro uma finalidade: estou, por conseguinte, dando significação à vida. Como o intelectual, à sua maneira, dá significação à vida, negando ou afirmando que ela tem finalidade e um significado, nós também atribuímos significação à vida por meio de nossos ideais, da busca de um alvo, de Deus, de Amor, da Verdade. E isso, com efeito, significa que, se não damos significação à vida, nossa existência não terá para nós importância alguma. O viver não nos parece tão bom como desejaríamos que fosse, e por isso desejamos dar significação à vida. Não sei se estais percebendo isto.

Qual é a significação de nossa vida, da vossa e da minha, independentemente dos filósofos? Ela tem alguma significação, ou lhe estamos dando significação pela crença, tal como faz o intelectual que se torna católico,  isto ou aquilo,  encontrando assim um abrigo? Como seu intelecto reduziu tudo a cacos, ele se vê agora sozinho, desamparado, etc., e não podendo suportar tal estado, necessita de uma crença, no catolicismo, no comunismo em qualquer coisa que lhe dê alento e dê significação à sua vida.

Agora, pergunto a mim mesmo: Por que razão queremos uma finalidade? E que significa viver sem finalidade alguma? Compreendeis? Sendo a vossa vida vazia, atribulada, triste, precisamos dar-lhe uma significação. E há possibilidade de ficarmos cônscios de nosso vazio, nossa solidão, nossos sofrimentos, todas as tribulações e conflitos de nossa existência, sem darmos, artificialmente, um significado à vida? Podemos estar cônscios dessa coisa extraordinária que chamamos a vida — que significa ganhar o próprio sustento, que significa inveja, ambições e desenganos — estar cônscios, simplesmente, de tudo isso, sem condenação ou justificação, e passar além? A mim me parece que, enquanto estivermos procurando ou dando alguma significação à vida, estaremos perdendo algo de extraordinário e vital.  O mesmo acontece com o homem que quer achar a significação da morte e está constantemente empenhado em racionalizá-la, explicá-la, e impedindo, assim, de "experimentar" o que é a morte. Apreciaremos este ponto noutra palestra.

Não nos estamos esforçando, todos nós, para acharmos uma razão para a nossa existência? Quando amamos, temos uma razão para isso? Ou é o amor o único estado em que "não há razão de espécie alguma, nem explicação, nem esforço, nem luta para ser alguma coisa?" Talvez desconheçamos esse estado. E, desconhecendo-o, tentamos imaginá-lo, dar uma significação à vida; mas, como nossa mente está condicionada, e portanto é limitada, superficial, a significação que damos à vida, os nossos deuses, os nossos ritos, os nossos esforços, tudo também é medíocre.

Não importa, pois, descubramos por nós mesmos qual a significação que damos à vida, se o fazemos? Não há dúvida de que os intentos, os alvos, os Mestres, os deuses, as crenças, os fins que buscamos nosso preenchimento, são todos inventados pela mente, todos produtos de nosso próprio condicionamento; e, compreendendo-se isto, não é importante "descondicionar" a mente? Quando a mente não está mais condicionada e, por conseguinte, não está dando significação à vida, a vida então se torna uma coisa extraordinária, uma coisa totalmente diferente da estrutura construída pela mente. Mas, primeiro que tudo, precisamos conhecer o nosso condicionamento, não é verdade? E podemos conhecer nosso condicionamento, nossas limitações, nosso fundo, sem procurar forçá-lo ou analisá-lo, sublimá-lo ou reprimi-lo? Pois tal processo implica a entidade que observa e se separa da coisa observada, não é exato? Enquanto houver observador e coisa observada, o condicionamento tem que continuar. Por mais que o observador, o pensador, o censor lute para livrar-se de seu condicionamento, continuará preso nesse condicionamento, uma vez que a divisão entre "pensador" e "pensamento", "experimentador" e "experiência", é o próprio fator que perpetua o condicionamento; e é extremamente difícil fazer desaparecer tal divisão, uma vez que aí está presente todo o problema da vontade.

Nossa civilização se baseia na vontade, a vontade de ser, de "vir a ser", alcançar, realizar; por esta razão, está sempre presente em nós a entidade que quer modificar, controlar, alterar aquilo que observa. Mas há diferença entre aquilo que esta entidade observa, e ela própria, ou ambos são uma só entidade? Aqui está uma coisa que não é para se aceitar irrefletidamente. Ela tem de ser pensada, examinada com muita paciência, delicadeza, cautela, de maneira que a mente não fique separada da coisa em que pensa, e o observador e a cosia observada sejam psicologicamente uma só entidade. Enquanto eu continuar psicologicamente separado daquilo que em mim percebo como "inveja", lutarei para dominar essa inveja; mas esse "eu", essa entidade que faz esforço para dominar a inveja, é diferente da inveja? Ou são ambos a mesma coisa, e o "eu" só se separou da inveja para dominá-la, porque a inveja é um sentimento doloroso, e por várias outras razões? Mas, justamente essa separação é a causa da inveja.

Talvez não estejais habituados a esse modo de pensar, e o acheis um pouco abstrato. Mas a mente invejosa nunca pode estar tranquila, porque está sempre comparando, sempre procurando "vir a ser" algo que ela não é; e se nos decidirmos a penetrar esse problema da inveja, radicalmente, profundamente, toparemos inevitavelmente com este problema, ou seja, se a entidade que deseja libertar-se da inveja não é a própria inveja. Ao perceber perceber-se que é a própria inveja que deseja libertar-se da inveja fica então a mente cônscia desse sentimento chamado inveja, sem nenhuma idéia de condená-lo ou libertar-se dele. E, daí, surge outro problema: Há sentimento, se não há verbalização? Pois a própria palavra "inveja" é condenatória, não é verdade? Estou dizendo algo demasiado muito súbito?

Existe sentimento de inveja, se não dou nome a tal sentimento? Pelo próprio fato de lhe dar nome, não estou nutrindo o sentimento? O sentimento e o dar-lhe nome são quase simultâneos, não é verdade? E é possível separá-los de tal maneira que só se tenha uma sensação de reação, sem nome algum? Se investigardes isso, realmente, vereis que, quando não se dá nome ao sentimento, a inveja se acaba — não simplesmente a inveja que uma pessoa sente porque outra é mais bela ou tem um carro melhor, ou por outra estupidez qualquer, mas a essência profunda da inveja, a raiz da inveja. Todos somos invejosos, de diferentes maneiras, não há um só que não seja invejoso. Mas a inveja não é apenas a manifestação superficial; ela é aquele senso de comparação que penetra tão fundo e ocupa uma tão grande porção da mente. E para ficarmos radicalmente livres da inveja tem de deixar de existir o "observador" da inveja, que quer libertar-se da inveja. Apreciaremos isso noutra ocasião.

Krishnamurti - Realização sem esforço - pág. 40 à 44 - 13 de agosto de 1955 - Ojai, Califórnia, USA
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill