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quinta-feira, 19 de abril de 2018

O estado de inocência e de inteligência desperta


O estado de inocência e de inteligência desperta

[...] PERGUNTA: A inocência que tendes descrito difere da meditação?

KRISHNAMURTI: Em algumas de nossas reuniões, aqui, tive ocasião de falar a respeito do estado de “inocência”. Disse que a mente inocente é aquela que não está aprisionada na estrutura psicológica da sociedade e, por conseguinte, se acha livre de conflito; sobre ela não pesam as lembranças de coisas passadas — o que, entretanto, não significa um estado de amnésia. Já não a prende nenhuma técnica, embora a técnica seja necessária. E o interrogante deseja saber se há diferença entre esse “estado de inocência” e a meditação, sobre que estive falando esta manhã.

Uma de nossas dificuldades, assim me parece, é que nos apoderamos de uma palavra, tal como “inocência”, ou “imensidade”, ou “criação”, e depois procuramos relacionar todas as coisas com essa palavra. Como já disse, a palavra não é a realidade. A palavra “meditação” não é a própria meditação; a palavra “inocência” não é o estado de inocência. Mas, quando existe esse estado de inocência, ele é também estado de meditação. Não podeis alcançar essa inocência enquanto fordes ambicioso, enquanto vossa mente for medíocre, enquanto estiverdes aprisionado na estrutura psicológica da sociedade e nada fordes senão uma técnica “corporificada”, como o somos na generalidade. Exercemos certa atividade, pois temos de ganhar o sustento, e pouco melhores somos do que máquinas, por mais talentosos, sagazes e sutis que sejamos. Uma mente “maquinal” não é uma mente “inocente”. Os computadores, os cérebros eletrônicos provavelmente são “inocentes”, mas são feitos de metais e não são entes vivos como nós. Com o tempo poderá ser inventada uma máquina com uma determinada espécie de vida própria — e talvez não estejamos muito longe disso. Mas, quando nos reduzimos ao ponto de funcionar como máquinas em nosso esforço tecnológico, nossa aquisição de saber, nosso acumular de experiência — assim não haverá inocência. A inocência é aquele estado no qual a mente é sempre jovem e fresca. A mente inocente nenhum medo tem da morte, nem de coisa alguma e está, portanto, livre do tempo.

PERGUNTA: Talvez possamos ficar nesse estado de inocência, ou meditação, enquanto despertos; mas que acontece quando dormimos?

KRISHNAMURTI: Estamos despertos durante o dia? Presumimos que sim. Achamo-nos despertos se deixamo-nos aprisionar em hábitos de pensamento, em atividades e condutas rotineiras? Se constantemente condenais, comparais, julgais, avaliais, ou vos considerais como pertencente a uma certa raça, nacionalidade, “cultura” ou religião — estais desperto? Se o hábito vos domina e, por conseguinte, não vos achais desperto durante o dia, o sono, nesse caso, é apenas uma continuação desse mesmo estado mental. Faz, então, muito pouca diferença se, fisicamente, estais dormindo ou acordado. Podeis frequentar assiduamente a igreja, recitar orações, ou cantar um mantra, como acontece na Índia, ou entregar-vos a qualquer das outras práticas como habitualmente fazem as chamadas pessoas religiosas; ou podeis repetir chavões (slogans), como os políticos, ou contemplar a vida do ponto de vista artístico; mas constitui qualquer dessas coisas um estado de inteligência desperta? Encontrar-se nesse estado de “inteligência desperta” é ser a luz de si mesmo. Não se tem então nacionalidade, nem igreja, nem Deus; não se depende da música, da pintura, da beleza das montanhas; não se depende da família, do marido, da mulher, dos filhos. E quando, interiormente, uma pessoa se acha desperta, que é então o sono? Que significação tem o sono quando tanto o consciente como o inconsciente se mantêm totalmente despertos?

É a pessoa embotada, envolvida em conflito, que sonha. Os sonhos são apenas sugestões do inconsciente. Conservando-nos atentos durante o dia, tudo observando, dentro e em redor de nós — mas não de um centro de julgamento ou condenação, se assim nos achamos, ao dormir, não sonhamos. Se quando estais desperto — tomando um ônibus, ouvindo um concerto, passeando a sós, conversando com amigos — percebeis, de imediato e sem reação, as sugestões ou mensagens do inconsciente; se todas as coisas que se passam interior e exteriormente são de pronto observadas, reconhecidas, compreendidas, então, ao dormirdes vossa mente estará quieta; e, porque está quieta, pode alcançar grandes profundidades. E vereis que esse estado de profundo silêncio durante o sono traz frescor, purificação, e, assim, o dia seguinte é um dia diferente, traz consigo algo novo. Mas tudo isso requer uma extraordinária percepção interior.

Krishnamurti, Saanen, 9 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


quinta-feira, 5 de abril de 2018

É possível superar as superficiais lutas mentais?


É possível superar as superficiais lutas mentais?

PERGUNTA: Há muitos anos que vos ouço, e já me tornei bastante treinado em observar os meus pensamentos e manter-me apercebido de tudo o que faço, mas nunca atingi "as águas profundas” nem experimentei a transformação de que falais. Por quê?

KRISHNAMURTI: Acho bastante clara a razão por que nenhum de nós experimenta algo que ultrapassa a mera observação. Pode haver raros momentos de um estado emocional, que nos permite ver, por assim dizer, a claridade do céu por entre as nuvens, mas eu não me refiro a coisa alguma dessa espécie. Todas as experiências dessa natureza são passageiras e de muito pouca significação. O interrogante deseja saber porque, depois de tantos anos de vigilância, não atingiu “as águas profundas”. Porque deveria atingi-las? Compreendeis? Pensais que, pela vigilância dos vossos pensamentos, ides obter uma recompensa: se fizerdes isto, ganhareis aquilo. Em verdade não estais vigilante, em absoluto, visto que vossa mente está toda interessada em obter aquela recompensa. Pensais que pelo observar, pelo estar vigilante, sereis mais amorável, sofrereis menos, sereis menos irritadiço, alcançareis algo superior; assim, a vossa vigilância é uma operação de compra. Com esta moeda quereis comprar tal coisa, o que significa que vossa vigilância é um mecanismo de escolha; por conseguinte, não é vigilância, não é atenção. Estar vigilante é observar sem escolha, é a pessoa ver a si mesma exatamente como é, sem nenhum movimento do desejo, para alterar o que vê, o que é dificílimo; mas isso não quer dizer que permanecereis no vosso estado presente. Não sabeis o que acontecerá, se virdes a vós mesmo como sois, sem desejardes modificar o que vedes. Compreendeis?

Vou aduzir um exemplo e apreciá-lo em todos os seus aspectos, para melhor esclarecimento. Suponhamos que eu sou violento, como o é a maioria das pessoas. Toda a nossa civilização é violenta, mas não pretendo examinar agora a anatomia da violência, pois não é este o problema que estamos considerando. Sou violento, e percebo que o sou. Que acontece? Minha reação imediata é de fazer alguma coisa a esse respeito, não é verdade? Digo que me devo tornar não-violento. É isso o que dizem há séculos todos os instrutores religiosos — que quando uma pessoa é violenta, deve tornar-se não-violenta. E assim, começo a exercitar-me, a fazer as coisas necessárias, de ordem ideológica. Mas depois percebo quanto isto é absurdo, porque a entidade que observa a violência e deseja transformá-la em não-violência, continua violenta. Agora, o que me interessa já não é a manifestação daquela entidade, mas a própria entidade. Espero que estejais seguindo tudo isso.

Ora, que entidade é essa, que diz: “Não devo ser violenta”? Essa entidade é diferente da violência, que ela está observando? São dois estados diferentes? Compreendeis, senhores, ou isto é abstrato demais? Já estamos chegando ao fim da palestra, e provavelmente vos sentis um tanto fatigados. Ora, não pode haver dúvida de que a violência e a entidade que diz “Tenho de transformar a violência em não-violência” são uma mesma entidade. Reconhecer este fato é pôr fim a todos os conflitos, não achais? Já não existe então o conflito que há no esforço que faço para modificar-me, porque percebo que o próprio movimento da mente para não ser violento é produto da violência.

O interrogante indaga por que razão não consegue ir além, dessas lutas superficiais da mente. Pela razão muito simples de que, consciente ou inconscientemente, a mente está sempre a buscar alguma coisa, e esta mesma busca produz violência, competição, o sentimento de total insatisfação. Só quando a nossa mente está na mais completa quietude, existe a possibilidade de serem atingidas as águas profundas.

Krishnamurti, 21 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Corpo e mente: nossa ignorância dual

Dizem-nos os Sábios que deixaremos de identificar-nos com o nosso corpo — e assim nos libertaremos de uma vez por todas dos sofrimentos que surgem por intermédio dele — apenas quando alcançarmos a experiência direta do Ser real. Assim como agora temos a experiência direta do corpo, devemos ter a experiência direta desse Ser como ele realmente é. Essa ignorância, que nos leva a identificar-nos  com o corpo, é um hábito mental arraigado, engendrado na mente durante longo tempo de ações e pensamentos errôneos. Deles surgiram os vários apegos às coisas. Tais hábitos mentais formam a própria estrutura da mente; e a simples introdução de um pensamento contrário — que é muito fraco, igual a um recém-nascido — fará pouca diferença. A mente fluirá pelos mesmos canais habituais. Continuará sujeita às mesmas atrações e repulsões. E isso acontecerá porque enquanto é possível ao filósofo livresco sentir às vezes que ele não é o seu corpo, não pode, com a mesma facilidade, chegar a sentir que não é a mente. E esta dupla ignorância só terá o fim quando conhecermos o Ser — não teórica mas praticamente, isto é, pela experiência real do Ser. 

Até surgir essa compreensão, não se pode dizer que o filósofo tenha se descartado de sua ignorância. Ela sobrevive com todo rigor. Seu conhecimento filosófico não faz qualquer diferença em seu caráter. De fato, como assinala Ramana Maharshi, o filósofo livresco está até mesmo em piores condições do que os outros homens. Seu coração é assediado por novos apegos — dos quais o iletrado está livre — que não lhe dão tempo para dedicar-se à tarefa de descobrir o Ser real. Muitas vezes não tem nem mesmo consciência da presente necessidade de se prepararem para tal empresa, harmonizando o conteúdo de sua mente e dirigindo suas energias para o Ser, e não para o mundo. Infere-se daí que, quem conhece o Ser apenas por intermédio de livros, não conhece mais do que a gente simples. Por essa razão o Sábio compara o filósofo livresco ao gramofone. Não é melhor do que ninguém pela sua erudição, assim como o gramofone não é melhor pelas coisas que repete. 

os livros, devemos lembrar, não passam de sinais indicadores na estrada para a sabedoria, que nos liberta; logo, essa sabedoria não pode ser encontrada nos livros. O Ser que precisamos conhecer está no INTERIOR e não no exterior. Caso a sabedoria desperte, nessa oportunidade, o Ser, refulgindo em todo o seu esplendor, mostrar-se-á diretamente, sem qualquer agente intermediário. O estudo dos livros porém engendra a ideia de que o Ser é algo externo, que se precise conhecer como um objeto, por intermédio da mente. 

A vasta confusão que reina nas especulações filosóficas e teológicas é devida, diz Ramana Maharshi, a essa ignorância. Todos estão totalmente convencidos de que as questões abstrusas, referente ao mundo, à alma e a Deus, podem ser resolvidas, final e satisfatoriamente, pelas especulações intelectuais sustentadas por argumentos tirados da experiência humana COMUM, a qual é o que é, devido a essa ignorância. Filósofos e teólogos desde o início da criação — se é que houve criação — sobre a causa primeira, o modo da criação, a natureza do tempo e do espaço, a realidade ou irrealidade do mundo, a discordância entre o determinismo e o livre-arbítrio, o estado de libertação, e assim por diante, numa sucessão infinita. E NÃO CHEGAM A NENHUMA CONCLUSÃO. Ramana Maharshi explica-nos que não pode haver conclusão final — uma conclusão que não possa ser derrubada por argumentos novos, ou aparentemente novos, enunciados por outros comentadores, a menos que o Ser real SEJA ALCANÇADO. Para aquele que atingiu o Ser real, estas controvérsias chegaram ao fim. Mas para os outros, elas devem continuar, a menos que ouçam o conselho de Ramana Maharshi, cuja finalidade é fazer com que deixem de lado TODAS ESSAS QUESTÕES e se dediquem de coração a busca do Ser. Ou aceitamos o ensino dos Sábios sobre essas ESPECULAÇÕES, pelo menos à título de hipótese, DE MODO A NÃO SERMOS DESVIADOS, por elas, da nossa busca, ou reconhecemos a profunda verdade de que esses assuntos NÃO TÊM A MENOR IMPORTÂNCIA E NÃO PRECISAM DE RESPOSTAS — que a única coisa necessária é encontrar o Ser. Essas questões surgem, se é isso que acontece, apenas para aqueles que consideram a mente e o corpo como o Ser. 

Compreendemos assim, que todos os nosso sofrimentos são devidos à nossa ignorância sobre o Ser real. Devemos vencê-las se quisermos gozar a VERDADEIRA FELICIDADE, pois, a remoção da causa é a única forma de cura radical que existe. O mais é TRATAMENTO PALIATIVO, que pode até mesmo, no final de contas, SER MALÉFICO, agravando, na verdade, a doença. E só poderemos ficar livres dessa ignorância, por meio da experiência com o Ser. 

MAHA YOGA

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Características do "Estado Místico"

O estado místico, quer espontâneo quer induzido mediante a meditação e outras práticas, produz a liberação de ENERGIA do inconsciente que permite a realização das POTENCIALIDADES mais elevadas do ser humano. Parece conveniente, portanto, que o estado místico seja estudado pela ciência sem preconceitos, num esforço para descobrir se ele pode, de fato, fornecer a chave que leve o indivíduo e a sociedade à vida saudável.
RENÚNCIA VOLUNTÁRIA - Outra característica que Prince considera comum ao esquizofrênico e ao místico é a renúncia aos apegos mundanos. Contudo, o esquizofrênico abandona o trabalho e a família não por escolha, mas por estar muito doente para assumir responsabilidades ou enfrentar a vida. O místico, por outro lado, de modo VOLUNTÁRIO E COM PLENA CONSCIÊNCIA, renuncia aos prazeres e às recompensas da vida mundana para ir em busca daquilo que considera o bem supremo. Desse modo, Buda abandonou sua herança régia a fim de descobrir as causas do sofrimento humano e os modos de mitigá-lo.

Um exemplo recente de renúncia às coisas deste mundo pode ser encontrado na vida de Albert Schweitzer, que abandonou uma carreira auspiciosa na Europa para fundar um hospital no coração da selva africana. Ele declarou que a base de sua filosofia, a "reverência pela vida", foi-lhe revelada através de um súbito vislumbre místico. Um ato semelhante de RENÚNCIA VOLUNTÁRIA pode ser visto na decisão de Thoreau de abandonar a oportunidade de fazer riqueza com sua descoberta de um novo método para a fabricação de grafita a fim de procurar a autocompreensão nos bosques de Walden.

A relação daqueles que, conscientemente, rejeitam os valores e confortos materiais para perseguir um ideal, não se limita àqueles indivíduos de orientação religiosa. O momento transcendente que transforma as atitudes e os hábitos da vida não conhece limites espaciais ou temporais; ele pode atingir tanto o homem ativo no mundo quanto o filosófico. A história preservou-nos os nomes de incontáveis pessoas que abandonaram a segurança, o amor e a riqueza pessoais a fim de devotarem-se ao serviço de outras, o que não traz nenhum rendimento a não ser sua própria recompensa.

A vida de uma pessoa mentalmente doente, mergulhada há anos num estupor catatônico, fora do alcance de qualquer contato humano, constitui uma trágica perda. Como é possível comparar tal retraimento em relação ao mundo com vidas plenas e gratificantes que resultaram da RENÚNCIA CONSCIENTE das satisfações pessoais — vidas que amiúde tanto beneficiaram a humanidade? — (Claire Myres Owens)

ÊXTASE - Um resultado universalmente comprovado da experiência mística é o êxtase, a felicidade ou o júbilo. Na opinião de Prince, trata-se apenas de uma regressão à experiência bem-aventurada da amamentação ou de um estado semelhante à falsa elação dos estados psicóticos. Aqui, mais uma vez, sua limitada compreensão é transmitida aos seus leitores através de uma citação enganosa de Francisco de Sales, colocada fora de contexto: " Nesse estado [a oração da quietude], a alma assemelha-se a uma criancinha ainda no seio da mãe".

A simplificação demasiada de Prince é resultado da confiança atual depositada nas técnicas freudianas, nas quais as configurações simbólicas perdem uma parte de seu significado. O conhecimento profundo da literatura do misticismo, por outro lado, revela o grau em que aqueles que experimentaram o estado de consciência expandida são obrigados a confiar no símbolo, na parábola, na imagem e na analogia em seus esforços para comunicar na linguagem formal a qualidade essencial de uma realidade informe.

O tema da criança constitui uma dessas tentativas de exprimir a natureza da experiência mística em termos que possam ser compreendidos pela maioria dos homens; possui um efeito redentor. A imagem da inocência e da pureza, não contaminada pelo interesse mundano ou egoísta, que vai ao encontro da realidade com uma visão pura, espontânea e serena, tem sido repetidamente evocado para exprimir o estado mental e interior NECESSÁRIO àquele que aspira ao conhecimento espiritual. Assim disse Jesus: "A menos que vos torneis semelhantes a uma criança, não podereis entrar no reino do céu."

Levando em consideração essa prática, de Sales talvez estivesse querendo dizer que os místico, do mesmo modo que o lactente, tem a sensação de estar retornando à sua fonte — cósmica, não maternal; que ele também está se entregando, com segurança, a um poder infinitamente mais forte que ele próprio — um poder universal e não-pessoal; que ele está participando de uma nutrição primária, elementar, natural ao homem e superior a todas as outras — alimento para a mente e para o espírito, e não para o corpo; e que seu êxtase o purifica de modo a sentir-se, mais uma vez, puro e inocente como um bebê.

O êxtase do místico tem sido uma fonte de poder redentor, que o purga da dúvida a respeito de si mesmo e da vacilação. A experiência de Moisés diante da sarça ardente deu-lhe força e coragem para libertar os israelitas do cativeiro. A visão de Pascal de uma enorme fogueira e de uma cruz em chamas alterou sua filosofia e sua vida. Ainda que reconheçamos que essas visões simbólicas sejam projeções psicológicas, não podemos desprezar o testemunho histórico de seu poder transformador.

O psicótico pode ter sensações momentâneas de êxtase ou excitação e acreditar que descobriu os segredos do universo, mas suas fantasias não geram nenhuma compreensão da verdade ou da realidade. O esquizofrênico pode manifestar distorções e exageros dos padrões básicos do inconsciente coletivo que ele compartilha com todos os homens; mas essas distorções, por si só, não determinam o caráter essencial do inconsciente.


Mais interessante é a alegação de Prince de que não s de que não só a elação mas também a condição depressiva, que o místico chama de "a noite escura da alma", são comuns aos estados místicos e maníacos. É verdade que muitos místicos testemunharam essa condição de esterilidade espiritual. Prosseguindo a comparação de Prince, parece-me que o psicótico perde contato com a assim chamada realidade (talvez um termo melhor seja atualidade) do mundo. O místico, contudo, em sua "noite escura", perde contato com a realidade suprema que ele conheceu. Tudo o que lhe resta, nesse PERÍODO DE ARIDEZ, é o mundo dos fenômenos que, como contraste, é insípido, limitado e desinteressante. A porta de seu inconsciente mais profundo, que dá acesso ao princípio integrador universal, está fechada para ele; ele se sente excluído e o resultado pode ser uma profunda depressão. Afinal de contas, os místicos são seres humanos com fraquezas humanas. Depois de um despertar espontâneo de certa duração, eles podem ingressar num período natural de reação, resultado do fluxo e refluxo da vida psíquica, tão mal compreendido. É interessante notar que aqueles que escreveram com uma tristeza exaltada acerca da "noite escura" geralmente são aqueles que passaram por súbitas e espontâneas experiências, em relação às quais estavam DESPREPARADOS. As alusões a essa condição, na literatura hinduísta e budista, ocorrem num contexto tão sistematizado, devido a seus métodos de preparação à descoberta de si mesmo, que são aceitas como parte do processo de crescimento.

MORTIFICAÇÃO - Depois das experiências místicas desse nível mais profundo de consciência, ele descobre que seus padrões de vida anteriores NÃO MAIS SÃO SATISFATÓRIOS. Sente que devem ser DEPURADOS ou MORTIFICADOS, o que Underhill interpreta como "A Purificação do Eu". Na linguagem da dicotomia dos níveis de consciência de Willian James, a nova consciência subliminal, com a qual o indivíduo acabou de entrar em contato, é acentuadamente diferente da consciência diária no mundo social, já não são se aplicam a essa experiência mais pessoal e, portanto, DEVEM SER DESCARTADOS.

As práticas ascéticas extremas de muitos místicos, que ocorrem durante este estágio, destinam-se a DEPURAR o indivíduo de sua necessidade de antigas relações que ele mantinha com a realidade social. Assim que isto for concluído, o processo de depuração ou mortificação termina. Como assinala Underhill, a despeito de sua etimologia, o objetivo da mortificação, para o místico, é a vida, mas essa vida só pode surgir através da "morte" do antigo "eu".

ILUMINAÇÃO DO EU - Depois que o indivíduo DEPUROU-SE do seu interesse anterior e de seu envolvimento com o mundo social, ele entra no terceiro estágio ou no que Underhill chama de "A Iluminação do Eu". Aqui, ele experimenta de modo mais pleno aquilo que se encontra além dos limites de seus sentidos imediatos. A principal característica atribuída a este estágio consiste na apreensão jubilosa daquilo que o místico experimenta ser o Absoluto, o que inclui extravasamentos refulgentes de êxtase e arroubo nos quais o indivíduo exulta de seu relacionamento com o Absoluto. Aquilo que distingue este estágio dos estágios posteriores, contudo, é o fato de que o indivíduo ainda experimenta a si próprio como uma entidade separada, ainda não unificada com o que ele considera ser o Supremo. Ainda persiste uma SENSAÇÃO do estado-do-eu, do ego, de si mesmo.

NOTE ESCURA DA ALMA - talvez este seja o estágio mais notável do processo místico. Embora possa ser encontrado em todas as experiências místicas, sua expressão emocional só aparece na tradição ocidental, onde recebeu seu nome a partir da frase evocativa de São João da Cruz: "A Moite escura da Alma". Há, aqui, a total negação e rejeição do júbilo do estágio precedente. O indivíduo sente-se TOTALMENTE AFASTADO e DISTANTE de suas experiências anteriores, bem como EXTREMAMENTE SOZINHO e DEPRIMIDO. É como se tivesse sido atirado para o meio de uma região devastada ou de um IMENSO DESERTO, sem nenhuma esperança de sobrevivência.

Durante o período purificador, o indivíduo deve depurar-se de seus APEGOS ANTERIORES AO MUNDO SOCIAL. Agora, ele deve depurar-se de sua EXPERIÊNCIA DO EU. Sua própria vontade deve tornar-se totalmente SUBMERSA pela "força" desconhecida que ele experimenta ESTAR DENTRO DELE. Enquanto afirma sua própria vontade ou individualidade, ele mantém distância ou separação daquilo que sente ser o Supremo.

A VIDA UNITIVA - este estágio, embora não seja o estágio final, constitui o ponto culminante da busca do místico: a completa e total absorção no mundo pessoal, insocial, que tem sido chamado de "A Vida Unitiva". Ele consiste na obliteração dos sentidos e até mesmo da sensação do eu, resultado na experiência da unidade com o universo. Este estágio tem sido descrito como um estado de CONSCIÊNCIA PURA, no qual o indivíduo não experimenta nada — nenhuma coisa. O indivíduo APARENTEMENTE fez contato com as regiões mais profundas de sua consciência e experimenta o processo como tendo sido concluído. Emocionalmente, o indivíduo sente-se totalmente tranquilo e em paz.

RETORNO DO MÍSTICO - Embora não mencionado como um estágio independente pelos comentadores, o retorno do místico, da experiência de unicidade com o universo, para as exigências da vida social constitui a parte MAIS IMPORTANTE de seu caminho. Em muitos místicos, pode-se observar que eles renovam seu envolvimento prático nas situações sociais com uma vitalidade e forças novas. Como observou santa Tereza: "marta e Maria devem trabalhar em conjunto quando oferecem pousada ao Senhor", dando a entender que o envolvimento material e espiritual são igualmente importantes. As vidas de santa Tereza, de são Francisco de Assis e de santo Inácio, para citar apenas três, dão testemunho do importante PAPEL PRÁTICO que os místicos têm exercido no mundo. Na tradição clássica oriental, encontra-se a mesma ênfase dada ao retorno ao mundo. O exemplo principal é Buda, que retornou de seu êxtase sob a árvore BO ao mundo social do qual ele "fugira".

O místico agora não mais considera detestável seu envolvimento com o mundo mas, na verdade, parece ACOLHER COM ALEGRIA a oportunidade de entrar no mundo social que ele abandonara. Este paradoxo aparente torna-se compreensível quando se considera que não foi ao mundo que o místico esteve renunciando mas, meramente, A SEUS APEGOS e NECESSIDADES em relação a ele, que impossibilitavam o desenvolvimento de sua experiência pessoal, insocial. Depois que se tornou capaz de abandonar essas necessidades sociais, condicionadas, e sentiu-se livre da atração exercida pelo mundo social, ele experimentou a liberdade de viver no interior da sociedade conjuntamente com seus esforços interiores, deixando de ver os costumes e as instituições sociais como obstáculos à sua auto-realização.

Jonh White — O Mais Elevado Estado de Consciência

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A ideia de que alguém pode lhe despertar, não tem validade alguma

Pergunta: Você não admite a necessidade da orientação dada por um guia? Se, como diz, não deve mais haver nem tradição nem autoridade, nesse caso todos terão de lançar novas bases para a sua existência. Assim como o corpo físico teve um começo, não deve haver também um começo para o nosso corpo espiritual e mental e não deve este ascender de cada degrau para o degrau superior, imediato? Assim como o nosso pensamento se inflama, quando lhe ouvimos, não é necessário despertá-lo, pelo contato com os grandes espíritos do passado?

Krishnamurti: Senhor, este é um problema velho como o mundo. Pensamos que necessitamos de um guru, um instrutor, para nos despertar a mente. Pois bem. No que implica isso? Implica, de um lado, o homem que sabe, de outro lado, o homem que não sabe. Continuemos devagar, sem nos deixarmos influir por preconceitos. "O homem que sabe" se torna a autoridade, e "o homem que não sabe" se torna seu discípulo. E o discípulo vai sempre seguindo o mestre, na esperança de alcançá-lo, de se colocar no mesmo nível que ele. Agora, preste atenção! Quando o guru diz que sabe, já não é guru. Porque o homem que diz que sabe, não sabe. E veja por que não sabe: porque a Verdade, a Realidade, ou o "outro estado", não se acha num ponto fixo, não se pode alcançar por um certo caminho, e temos de descobrí-la momento por momento. Se está num ponto fixo, nesse caso esse ponto se acha dentro dos limites do tempo. Para um ponto fixo pode haver caminho, como há um caminho para a sua casa; mas para uma coisa viva que não tem um pouso fixo, que não tem começo nem fim, não pode haver caminho algum. 

Ora, um guru que se oferece para ajudar-lhe a conhecer a Realidade só pode ajudar-lhe a reconhecer o que você já conhece; porque o que se pode reconhecer, experimentar, tem de ser reconhecível, não acha? Quando o reconhece, você diz: "Experimentei" — mas o que é reconhecível, não pode ser aquele outro estado. O outro estado não é reconhecível, pois nunca foi conhecido; não é uma coisa que você já experimentou e que é capaz de conhecer. O "outro estado" é uma coisa que tem de ser descoberta momento por momento; e para descobri-la, a mente tem de ser livre. Senhor, a mente tem de estar livre para descobrir qualquer coisa; e a mente agrilhoada pela tradição, antiga ou moderna, a mente que leva a carga da crença, dos dogmas, dos ritos, evidentemente, não é livre. Para mim, a ideia de que um outro pode despertar-lhe , não tem validade alguma. isto não é uma opinião: é um fato. Se um outro lhe desperta, você fica sobre sua influência, depende dele; por conseguinte, você não é livre; e só a mente livre pode descobrir. 

É este, portanto, o problema, não acha? 

Aspiramos àquele "outro estado", e uma vez que não sabemos como alcançá-lo, passamos inevitavelmente a depender de alguém, a quem chamamos instrutor, guru, ou a depender de um livro, ou de nossa experiência. E está criada, assim, a dependência, e onde há dependência há também autoridade. A mente se torna, por conseguinte, escrava da autoridade, escrava da tradição, e essa mente, evidentemente, não é livre. Só a mente que é livre, pode descobrir; e contar com ajuda de outro para o despertar da mente, é o mesmo que recorrer a uma droga que lhe fará ver as coisas com muita nitidez, muita clareza. Há drogas que podem fazer a vida parecer, momentaneamente, muito mais "vital", de modo que todas as coisas assumem um relevo, um brilho extraordinário — as cores que você vê todos os dias, sem lhes dar atenção, se tornam extraordinariamente belas, etc. Tal poderá ser o seu "despertar" da mente, mas estará então na dependência da droga, como você depende agora do seu guru ou de um certo livro sagrado. E quando se torna dependente, a mente se embota. Da dependência provém o temor — o temor de não se realizar o que se quer, o temor de não ganhar. Quando dependemos de outro, seja o Salvador, seja outro qualquer, isso significa que a mente está em busca de um resultado feliz, um fim satisfatório. Você pode chamá-lo Deus, a Verdade, ou como quiser — mas é sempre uma coisa que se quer ganhar. E, assim, a mente fica prisioneira, se torna escrava e, não importa o que faça — sacrificar-se, disciplinar-se, torturar-se — essa mente nunca descobrirá "o outro estado". 

O problema, pois, não é quem seja o instrutor correto, mas sim descobrir se a mente pode manter-se desperta. E só se pode descobrir isso quando todas as relações se tornam um espelho, em que ela se vê exatamente como é. Mas a mente não pode ver-se como é, quando há condenação ou justificação daquilo que vê, ou se há qualquer forma de identificação. Todas essas coisas tornam a mente embotada e, embotados que estamos, desejamos ser despertados. Por essa razão amparamo-nos em outro, para que nos desperte. Mas, em virtude do próprio desejo de ser despertada, a mente embotada se torna mais embotada ainda, porquanto não percebe a causa de seu embotamento. É só quando a mente percebe e compreende todo esse processo, e não depende de explicações de ninguém, é só então que ela é capaz de libertar-se. 

Mas, como é fácil nos satisfazermos com palavras, com explicações! São muitos poucos os que rompem a barreira das explicações, ultrapassando as palavras e descobrindo por si mesmos o que é verdadeiro. A capacidade é produto de aplicação, não é? Mas nós nos satisfazemos com palavras, com especulações, com as tradicionais respostas e explicações com que fomos criados.

Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Sobre a visão intuitiva e a morte

K: ...Estávamos realmente falando a respeito da visão intuitiva que efetivamente altera a natureza do próprio cérebro.

DB: Sim, ao dissipar a escuridão no cérebro, a visão intuitiva permite que ele funcione de uma nova maneira.

K : O pensamento tem atuado na escuridão, criando sua própria escuridão e funcionando nela; e a visão intuitiva é, como dissemos, como um lampejo que atravessa a escuridão. Quando, então, essa visão intuitiva clareia a escuridão, o homem pode atuar, ou funcionar, racionalmente?

DB: Sim, o homem poderá, então, funcionar racionalmente, e com percepção, em vez de fazê-lo por meio de regras e da razão. Há, porém, uma razão que flui livremente. Veja bem, algumas pessoas identificam a razão com certas regras de lógica que seriam mecânicas; mas pode existir a razão como uma forma de percepção da ordem.

K: Estamos dizendo, então, que a visão intuitiva é percepção?

DB: Ela é o lampejo de luz que torna possível a percepção.

K: Certo, é isso mesmo.

DB: Ela é até mais fundamental do que a percepção.

K: A visão intuitiva é, pois, pura percepção, e a partir dessa percepção há ação, que é então sustentada pela racionalidade. É isso?

DB: Sim.

K: Exatamente.

DB: E a racionalidade é percepção da ordem.

K: Diria então que existe a visão intuitiva, percepção e ordem?

DB: Sim.

K: Mas essa ordem não é mecânica porque não está baseada na lógica.

DB: Não há regras.

K: Não há regras; vamos colocar as coisas dessa maneira; é melhor. Essa ordem não está fundamentada em regras. Isso significa visão intuitiva, percepção, ação, ordem. Chegamos então à pergunta: a visão intuitiva é contínua, ou ela ocorre em lampejos?

DB: Já abordamos isso, e achamos que essa era uma pergunta errada, de forma que talvez possamos encará-la de modo diferente. Ela não está ligada ao tempo.

K: Não está ligada ao tempo. Sim, concordamos com isso. Vamos um pouco mais adiante então. Dissemos, não foi, que a visão intuitiva é a eliminação da escuridão que é o próprio centro do self, a escuridão que o self cria? A visão intuitiva dissipa exatamente esse centro.

DB: Sim. A percepção não pode ocorrer quando há escuridão. É uma espécie de cegueira.

K: Certo; o que vem a seguir então? Sou um homem comum, com todos os meus instintos animais, prazer e dor, recompensa e castigo, e assim por diante. Ouço você dizer isso, e percebo que o que está dizendo tem uma espécie de razão, de lógica, e de ordem.

DB: Sim, faz sentido até onde podemos observar.

K: Faz sentido. Como posso então ter razão na minha vida? Como vou fazê-la surgir? Você entende que essas palavras que são difíceis estão todas ligadas ao tempo. Porém isso é possível?

DB: Sim, sem o tempo, entende?

K: O homem com sua mente estreita poderá ter essa visão intuitiva, de forma que este padrão de vida seja rompido? Como dissemos no outro dia, tentamos tudo isso, tentamos todas as formas de autonegação, e contudo essa visão intuitiva não apareceu. De vez em quando ocorre uma visão intuitiva parcial, mas essa não é visão intuitiva completa, de modo que ainda existe uma escuridão parcial.

DB: Que não dissipa o centro do self. Ela poderá dissipar alguma escuridão numa área determinada, mas a origem da escuridão, seu criador, seu sustentador, ainda está lá.

K: Ainda está lá. Portanto, o que faremos? Mas essa é uma pergunta errada. Não nos levará a nenhum lugar. Já especificamos o plano geral, certo? E temos então de avançar, ou não avançar em absoluto. Não tenho a energia. Não possuo a capacidade de percebê-lo rapidamente, pois isso é imediato, e não apenas algo que pratico e eventualmente alcanço. Não tenho a capacidade, não possuo o senso de urgência, da ação imediata. Tudo está contra mim: minha família, minha esposa, a sociedade. Tudo! E isso quer dizer que eventualmente terei de me tornar um monge?

DB: Não. Tornar-se um monge é a mesma coisa que tornar-se qualquer outra coisa.

K: Exatamente. Tornar-se um monge é como tornar-se um homem de negócios! Percebo tudo isso, tanto verbal como racionalmente, intelectualmente, mas não consigo captar essa coisa. Existe uma abordagem diferente para esse problema? Estou sempre fazendo a mesma pergunta, porque estou preso no mesmo padrão. Portanto, existe uma maneira completamente diferente? Uma abordagem totalmente diferente de todo o turbilhão da vida? Há um modo diferente de encará-lo? Ou a antiga maneira é a única que existe? Dissemos que enquanto o centro estiver criando a escuridão, e o pensamento estiver operando nela, haverá a desordem, e a sociedade será como é agora. Para nos afastarmos disso, temos de ter a visão intuitiva. A visão intuitiva só pode ocorrer quando há um lampejo, uma luz repentina, que elimina não apenas a escuridão como também o seu criador.

DB: Sim.

K: Agora estou perguntando se existe uma abordagem diferente desse assunto como um todo, embora uma antiga resposta pareça tão absoluta.

DB: Bem, possivelmente. Quando você diz que ela parece absoluta está querendo uma abordagem menos completa?

K: Estou dizendo que se essa é a única maneira, então estamos condenados.

DB: Não podemos criar esse lampejo voluntariamente.

K: Não, ele não pode ser criado por meio da vontade, através do sacrifício, através de qualquer forma de esforço humano. Isso está fora de cogitação; sabemos que já eliminamos tudo isso; e também concordamos com o fato de que para algumas pessoas — para "X" — essa visão intuitiva parecia tão natural, e perguntamos por que ela não é natural para outras pessoas.

DB: Se começarmos com a criança, parece natural que ela responda com seus instintos animais, com uma grande intensidade que arrebata. A escuridão surge porque isso é tão esmagador.

K: Sim, mas por que as coisas são diferentes com "X"?

DB: Em primeiro lugar, parece natural para a maior parte das pessoas que os instintos animais assumam o comando.

K: Sim, é verdade.

DB: E elas diriam que o outro indivíduo, "X", não é natural.

K: Sim.

DB: Essa é a maneira como a espécie humana tem pensado, dizendo que se efetivamente há pessoas que são diferentes, elas devem ser bastante incomuns e não naturais.

K: Exatamente. Os seres humanos têm respondido ao ódio com ódio, e assim por diante. Há aqueles poucos, talvez muitos, que dizem que isso não é natural ou racional. Por que ocorreu essa divisão?

DB: Se dissermos que prazer e dor, medo e ódio, são naturais, sentimos então que temos de lutar para controlá-los, caso contrário eles nos destruirão. O melhor que podemos esperar é controlá-los por meio da razão, ou de qualquer outra maneira.

K: Mas isso não funciona! Serão as pessoas como "X", que funcionam de forma diferente, os poucos privilegiados, devido a algum milagre, a algum estranho evento fortuito?

DB: Muitas pessoas diriam isso.

K: Mas isso é contra a minha natureza. Eu não aceitaria isso.

DB: Bem, se isso não é assim, então, você teria de dizer por que existe tal diferença.

K: É aí que estou querendo chegar, uma vez que "X" nasceu dos mesmos pais.

DB: Sim, fundamentalmente dos mesmos; então, por que ele se comporta de modo diferente?

K: Essa pergunta foi feita muitas vezes, repetidamente, em diferentes partes do mundo. Por que existe essa divisão?

INTERROGANTE: A divisão é realmente total? Veja, até o homem que responde ao ódio com ódio vê que isso não faz sentido, não é natural, e deveria ser diferente.

K: Deveria ser diferente, mas ele ainda está lutando com ideias. Está tentando sair fora disso usando o pensamento, o que produz a escuridão.

I: Quero apenas dizer que a divisão não parece tão integral.

K: Oh, mas a divisão é integral, completa.

I: Bem, então por que as pessoas não estão simplesmente dizendo: vamos continuar a viver dessa maneira, e vamos aproveitá-la até o último momento?

K: Porque não conseguem enxergar nada além da sua própria escuridão.

I: Contudo elas querem se libertar dela.

K: Espere um instante. Elas querem se livrar dela? Elas realmente percebem o estado em que estão, e deliberadamente querem sair dele?

I: Elas são ambivalentes a respeito. Querem continuar a obter os frutos da escuridão, mas têm uma sensação de que a coisa está errada e que conduz ao sofrimento.

DB: Ou então elas julgam que não podem fazer nada a respeito. Veja bem, quando chega a ocasião de elas vivenciarem a raiva ou o prazer, não conseguem escapar.

K: Elas não podem fazer nada a respeito.

I: Mas elas querem se libertar, embora estejam indefesas. Há forças que são mais poderosas do que a sua vontade.

K: O que faremos então? Ou será que essa divisão é falsa?

DB: Esse é o ponto. Seria melhor se falássemos a respeito de uma diferença entre essas duas abordagens. Essa diferença não é fundamental.

K: Não penso que elas tenham qualquer coisa em comum.

DB: Por quê? Você diz que a diferença é falsa, embora fundamentalmente as pessoas sejam as mesmas, mas que uma diferença se desenvolveu entre elas. Talvez a maior parte das pessoas tenha dado um passo na direção errada.

K: Sim, vamos colocar as coisas assim.

DB: Mas a diferença não é intrínseca, não é estrutural, não está embutida como a diferença entre uma árvore e uma pedra.

K: Concordo. Como você diz, há uma diferença entre uma pedra e uma árvore, mas não é assim. Sejamos simples. Há duas respostas. Elas começam da origem; uma tomou uma direção, e a outra tomou uma direção diferente. A origem, porém, é a mesma. Por que ambas não avançaram na direção correta?

DB: Não conseguimos responder a isso. Eu estava exatamente dizendo que se uma pessoa entender isso, e depois voltar à origem, ela não terá que dar o passo na direção errada. Em certo sentido, estamos continuamente dando o passo errado, de forma que se pudermos entender isso, torna-se então possível mudar; e estamos continuamente começando da mesma origem, e não voltando a ela no tempo.

K: Espere um minuto, espere um minuto.

DB: Há duas maneiras de interpretar a nossa declaração. Uma é dizer que a origem está no tempo, que bem longe no passado começamos juntos e tomamos caminhos diferentes. A outra maneira é dizer que a origem não está ligada ao tempo, e que estamos continuamente dando o passo errado. Certo?

K: Sim, constantemente dando o passo errado. Por quê?

I: Isso significa que há possibilidade permanente de darmos o passo certo.

K: Sim, naturalmente. É isso. Se dissermos que há uma origem a partir da qual todos começamos, seremos capturados no tempo.

DB: Não podemos voltar.

K: Não, isso está eliminado. Consequentemente, é evidente que estamos dando o passo errado o tempo todo.

DB: Constantemente.

K: Estamos constantemente dando o passo errado. Mas por quê? Aquele que vive com a visão intuitiva e o outro que não vive com ela — são permanentes? O homem que vive na escuridão pode ir a qualquer momento para o outro lado. Esse é o ponto. Em qualquer ocasião.

DB: Então nada o segura, a não ser o fato de ele estar constantemente dando o passo errado. Poderíamos dizer que a escuridão é tal, que ele não percebe que está dando o passo errado.

K: Estamos indo na direção certa, fazendo a pergunta correta? Suponha que você tenha essa visão intuitiva, e que a sua escuridão, o centro mesmo da escuridão, tenha sido completamente dissipado; e que eu, um ser humano sério, razoavelmente inteligente, escute-o; e não importa que pareça razoável, racional, sensato, qualquer coisa que você tenha dito. Eu questiono a divisão. Ela é criada pelo centro que produz a escuridão. O pensamento a criou.

DB: Bem, na escuridão, o pensamento cria a divisão.

K: Uma sombra é arremessada da escuridão; ela faz uma divisão.

DB: Se tivermos essa visão intuitiva, diremos que não há divisão.

K: Sim. E o homem não aceitará isso, porque na sua escuridão não há nada, exceto a divisão. Nós, então, morando na escuridão, criamos a divisão. Nós a criamos nos nossos pensamentos...

DB: Estamos criando-a continuamente.

K: Sim, estamos sempre querendo viver permanentemente num estado no qual não há divisão. Esse movimento, contudo, ainda é o movimento da escuridão. Certo?

DB: Sim.

K: Como poderei dissipar essa escuridão contínua e permanente? Essa é a única pergunta, porque, enquanto eu existo, crio essa constante divisão. Veja, isso é andar em círculos. Só posso dissipar a escuridão através da visão intuitiva, e não posso obter essa visão intuitiva através de qualquer esforço da vontade, de modo que sou deixado com nada. Então, qual meu problema? Meu problema é perceber a escuridão, perceber o pensamento que está criando a escuridão, e compreender que o self é a origem dessa escuridão. Por que não posso perceber isso? Por que não posso vê-lo nem mesmo de forma lógica?

DB: Bem, logicamente, está claro.

K: Sim, mas de algum modo não parece funcionar. Então o que farei? Percebo pela primeira vez que o self cria a escuridão que está constantemente formando a divisão. Vejo isso muito claro.

DB: E a divisão produz, de qualquer forma, a escuridão.

K: Vice-versa, de trás para diante. E a partir de tudo isso, todas as coisas começam. Vejo isso muito claro. O que farei então? Portanto não admito a divisão.

I: Krishnaji, não estamos, contudo, introduzindo novamente a divisão quando dizemos que existe o homem que precisa da visão intuitiva?

K: Mas o homem tem a visão intuitiva. "X" possui a visão intuitiva, e ele explicou muito claramente como a escuridão desapareceu. Eu o escuto, e ele afirma que a sua própria escuridão está criando a divisão. Esta, na verdade, não existe, não há nenhuma divisão como luz e escuridão. Então ele me pergunta como podemos banir, como podemos afastar esse sentido de divisão?

DB: Você parece estar trazendo de volta uma divisão ao dizer que eu deveria fazê-lo, entende?

K: Não, "deveria" não.

DB: De certa forma você está dizendo que o processo mental de pensamento parece criar espontaneamente a divisão. Você diz, tente colocá-lo de lado e, ao mesmo tempo, ele está tentando fazer a divisão.

K: Entendo. Mas a minha mente pode afastar a divisão? Ou essa é uma pergunta errada?

I: Pode ela afastar a divisão enquanto ela própria está dividida?

K: Não, não pode. Então o que devo fazer? Ouça. "X" diz algo tão extraordinariamente verdadeiro, de um significado e de uma beleza tão imensos que todo o meu ser diz "Apreenda-o". Isso não é uma divisão. Reconheço que sou o criador da divisão, porque vivo na escuridão, e então a partir desta escuridão, eu crio. Mas escutei "X", que afirma que não há divisão e reconheço que essa é uma afirmação extraordinária. Portanto, o próprio fato de isso ser dito a alguém que tem vivido numa divisão permanente tem um efeito imediato. Certo?

DB: Penso que temos, como você diz, de afastar a divisão...

K: Abandonarei isso; não o afastarei. Quero me aprofundar nessa afirmação de que não há divisão. Estou chegando a algum lugar com ela. A afirmação de "X", a partir dessa visão intuitiva, de que não há divisão, tem um tremendo efeito sobre mim. Tenho vivido constantemente na divisão e ele se aproxima e diz que ela não existe. Que efeito isso tem sobre mim?

DB: Você diz então que não há divisão. Isso faz sentido. Mas por outro lado, parece que ela existe.

K: Reconheço a divisão, mas a declaração de que ela não existe tem esse impacto imenso sobre mim. Parece natural, não? Quando vejo algo que é inabalável, isso deve ter algum efeito sobre mim. Respondo com um tremendo choque.

DB: Veja, se você estivesse falando sobre alguma coisa que se encontrasse à nossa frente, e dissesse: "Não, não é dessa maneira", isso mudaria, naturalmente, todo nosso modo de vê-la. Então, você diz que a divisão não é dessa maneira. Tentamos olhar e ver se é de fato assim — correto?

K: Nem mesmo digo: "É assim?". "X" explicou cuidadosamente todo o assunto, e diz no final que não há divisão. Além disso, sou sensível, observo cuidadosamente, e percebo que estou permanentemente vivendo em divisão. Quando "X" faz essa afirmação, ele rompe o padrão. Está acompanhando o que estou tentando explicar? Ele rompeu o padrão porque disse uma coisa que é fundamentalmente verdadeira. Não existe Deus e o homem. Certo, senhor, mantenho-me fiel a isso. Vejo algo — que é: onde há o ódio não existe o outro. Porém, ao odiar, eu quero o outro. Desse modo, uma divisão constante nasce da escuridão; e a escuridão é permanente. Mas tenho escutado muito cuidadosamente, e "X" faz uma afirmação que parece absolutamente verdadeira. Isso penetra em mim, e o ato dessa afirmação dissipa a escuridão. Não estou fazendo um esforço para me livrar da escuridão, mas "X" é a luz. Exatamente, eu mantenho essa posição. Chegamos então a uma coisa, que é: posso eu escutar com a minha escuridão — na minha escuridão, que é permanente? Nessa escuridão, posso lhe escutar? Naturalmente que sim. Vivo em constante divisão, o que causa a escuridão. "X" se aproxima e me diz que não há divisão.

DB: Certo. Entretanto, por que diz que pode escutar na escuridão?

K: Oh, sim, posso escutar na escuridão. Se isso não for possível, estarei condenado.

DB: Mas isso não é um argumento.

K: Claro que não é um argumento, mas é assim!

DB: Não vale a pena viver na escuridão; mas agora estamos dizendo que é possível ouvir na escuridão.

K: Ele, "X", explica-me, muito, muito cuidadosamente. Eu sou sensível, tenho-o escutado em minha escuridão, mas isso está me tornando sensível, vivo, observador. É isso que tenho feito. Temos feito isso juntos; e ele afirma que não há absolutamente nenhuma divisão; e sei que estou vivendo em divisão. Essa própria afirmação fez com que o constante movimento chegasse a um fim. Caso contrário, se isso não ocorrer, não terei nada — entende? Estou perpetuamente vivendo na escuridão. Há, porém, uma voz no deserto, e ouvir essa voz tem um efeito extraordinário.

DB: Ouvir atinge a origem do movimento, ao passo que observar, não.

K: Sim, observei, escutei, participei de todos os tipos de jogos durante toda minha vida; e agora vejo que existe apenas uma coisa. Que existe essa escuridão permanente e que estou atuando na escuridão; nesse deserto que é a escuridão; cujo centro é o self. Percebo isso totalmente, completamente; não posso lutar mais contra isso. "X" então se aproxima e me diz isso. Nesse deserto uma voz afirma que existe água. Entende? Não é esperança. Há uma ação imediata em mim. A pessoa tem de perceber que esse movimento constante na escuridão é a sua vida. Percebe o que estou dizendo? Posso eu, com toda a experiência, com todo o conhecimento que reuni em um milhão de anos, de repente verificar que estou vivendo numa total escuridão? Porque isso significa que atingi o fim de qualquer esperança. Certo? Mas a minha esperança também é escuridão. O futuro está eliminado como um todo, de forma que sou deixado com essa enorme escuridão, e estou lá. Isso quer dizer que a percepção disso é o final da transformação. Atingi o ponto em que "X" me diz que isso é natural. Veja, todas as religiões disseram que essa divisão existe.

DB: Sim, mas elas dizem que ela pode ser superada.

K: É o mesmo padrão que se repete. Não importa quem o disse, mas o fato é que alguém nesse deserto está dizendo alguma coisa, e que nesse deserto tenho escutado todas as vozes, inclusive a minha, o que deu origem a uma escuridão ainda maior. E, contudo, isso está correto. Quer dizer que quando existe a visão intuitiva não há separação, não é?

DB: Sim.

K: Não é a sua visão intuitiva ou a minha visão intuitiva, é visão intuitiva simplesmente; e nela não há divisão.

DB: Sim.

K: O que nos conduz à base à qual nos referimos...

DB: Como assim?

K: Naquela base não há escuridão como escuridão, ou luz como luz. Naquela base não há divisão. Nada tem origem na vontade, no tempo, ou no pensamento.

DB: Está dizendo que aquela luz e aquela escuridão não estão divididas?

K: Exatamente.

DB: O que é a mesma coisa que dizer que não há nem uma nem outra.

K: Nenhuma nem outra; é isso mesmo! Há algo mais. Há uma percepção de que existe um movimento diferente, que é "não-dualista".

DB: O que significa não-dualista? Que não há divisão?

K: Não há divisão. Não empregarei o termo "não-dualista". Não há divisão.

DB: Mas contudo existe movimento.

K: Naturalmente.

DB: Então, o que isso quer dizer, sem divisão?

K: Quero me referir ao movimento, o movimento que não é tempo. Esse movimento não cria a divisão. Portanto, quero voltar, chegar à base. Se, nessa base, não há nem escuridão nem luz, nem Deus nem o filho de Deus - não há divisão — o que acontece então? Você diria que a base é movimento?

DB: Bem, poderia ser, sim. O movimento é indiviso.

K: Não. Eu diria que existe movimento na escuridão.

DB: Sim, mas dissemos que não há divisão de escuridão e luz, e contudo você disse que há movimento.

K: Sim. Diria você que a base é movimento interminável?

DB: Sim.

K: O que isso quer dizer?

DB: Bem, é difícil de expressar.

K: Continue se aprofundando nisso; vamos expressá-lo. O que é o movimento, sem ser o movimento daqui para ali, sem ser a partir do tempo — há qualquer outro movimento?

DB: Sim.

K: Existe. O movimento de ser para o devir psicologicamente. Há o movimento da distância, há o movimento do tempo. Dizemos que tudo isso são divisões. Existe um movimento onde não haja divisão? Quando afirmou que não existe divisão, há com certeza esse movimento?

DB: Bem, você está dizendo que quando não há divisão esse movimento está ali?

K: Sim, e afirmei que "X" diz que ele é a base.

DB: Correto.

K: Diria que não há fim, não há começo?

K: O que significa tempo, mais uma vez.

DB: Podemos dizer que o movimento não possui forma?

K: Não possui forma — tudo isso. Quero ir um pouco mais adiante. O que estou perguntando é que quando você afirmou que não há divisão, isso significa que não há divisão no movimento.

DB: Ele flui sem divisão, entende?

K: Sim, é um movimento no qual não há divisão. Será que consigo captar o significado disso? Será que entendo a profundidade dessa afirmação? Um movimento onde não há divisão; o que significa que não existe tempo nem distância como os conhecemos. Não há nenhum elemento de tempo nele. Então estou tentando verificar se esse movimento circunda o homem.

DB: Sim, ele o envolve.

K: Quero chegar lá. Estou preocupado com a espécie humana, com a humanidade, que sou eu. "X" fez várias afirmações e eu captei uma afirmação que parece absolutamente verdadeira — que não há divisão. O que significa que não há nenhuma ação que seja divisora.

DB: Sim.

K: Percebo isso; e também pergunto se esse movimento não possui tempo, etc... Parece que ele é o mundo, entende?

DB: O universo.

K: O universo, o cosmos, o todo.

DB: A totalidade.

K: A totalidade. Não há uma expressão no mundo judaico que diz: "Apenas Deus pode dizer: eu sou"?

DB: Bem, é assim que a linguagem é construída. Não é necessário expressá-la.

K: Não, eu entendo. Percebe aonde estou querendo chegar?

DB: Sim, que somente esse movimento é.

K: Pode a mente pertencer a esse movimento? Porque ele é eterno, e portanto imortal.

DB: Sim, o movimento não contém a morte; na medida em que a mente toma parte nele, ele é o mesmo.

K: Entende o que estou dizendo?

DB: Sim. Mas o que é que morre quando o indivíduo morre?

K: Isso não tem significado, pois, uma vez que eu tenha compreendido que não existe divisão...

DB: ... então isso não é importante.

K: A morte não tem significado.

DB: Ela ainda possui um significado em algum outro contexto.

K: Oh, o término do corpo; isso é totalmente irrelevante. Mas você entende? Quero captar o significado da afirmação de que não há divisão; ela quebrou o encantamento da minha escuridão, e eu percebo que existe um movimento, e isso é tudo. O que significa que a morte tem um significado muito pequeno.

DB: Sim.

K: Você aboliu completamente o medo da morte.

DB: Sim, entendo que quando a mente está participando desse movimento, ela é esse movimento.

K: Isso é tudo! A mente é esse movimento.

DB: Você diria que a matéria também é esse movimento?

K: Sim, diria que tudo é esse movimento. Na minha escuridão, escutei "X". Isso é extremamente importante. E esse discernimento rompeu meu encantamento. Quando ele disse que não há divisão, ele aboliu a divisão entre a vida e a morte. Não tenho certeza se você está percebendo isso.

DB: Sim.

K: Uma pessoa nunca poderá dizer, então: "Sou imortal". Isso é muito infantil.

DB: Sim, isso é a divisão.

K: Ou: "Estou em busca da imortalidade"; ou: "Estou me transformando!" Acabamos com todo esse sentido de nos movermos na escuridão.

I: Qual seria, então, a importância do mundo? Existe alguma importância nele?

K: No mundo?

I: Com o homem.

DB: Quer dizer, com a sociedade?

I: Sim, parece que quando você faz essa afirmação, não há divisão e que a vida é a morte — qual é então a importância do homem com toda sua luta...?

K: O homem na escuridão. Que importância tem isso? É como nos debatermos numa sala trancada. Essa é toda a questão.

DB: A importância só pode surgir quando a escuridão for dissipada.

K: Naturalmente.

I: A única coisa significativa é a dissipação da escuridão.

K: Oh, não, não!

DB: Não estamos dizendo que algo mais pode ser feito além de dissipar a escuridão?

K: Escutei com bastante cuidado tudo que você, que possui visão intuitiva falou. O que você fez foi dissipar o centro. Na escuridão eu podia inventar muitas coisas importantes; que existe luz, que existe Deus, que existe beleza, que existe isso e aquilo. Mas tudo isso ainda está na área da escuridão. Seu eu ficar preso numa sala escura, posso inventar uma porção de imagens, mas quero obter algo mais. A mente é a única que possui essa visão intuitiva — e que portanto dissipa a escuridão e tem uma compreensão da base que é movimento sem tempo — essa mente em si é o movimento?

DB: Sim, mas não a totalidade. A mente é o movimento, mas estamos dizendo que o movimento é matéria, que o movimento é mente. Além disso, estávamos dizendo que a base poderá estar além da mente universal. Você disse anteriormente que o movimento, que a base, é mais do que a mente universal, mais do que o vazio.

K: Dissemos isso; muito mais do que isso.

DB: Muito mais. Mas temos de esclarecer isso. Dissemos que a mente é esse movimento.

K: Sim, a mente é o movimento.

DB: Não estamos dizendo que esse movimento é apenas a mente?

K: Não, não, não.

DB: Esse é o ponto que eu estava tentando corrigir.

K: A mente é o movimento — mente, no sentido de "a base".

DB: Mas você disse que a base vai além da mente.

K: Espere um minuto: o que quer dizer com "ir além da mente"?

DB: Voltando ao que examinamos há alguns dias: dissemos que temos o vazio, a mente universal, e depois, que a base está além de tudo isso.

K: Diria que ela está além desse movimento?

DB: Sim. A mente emerge do movimento como uma base, e cai de volta na base; é isso que estamos dizendo.

K: Sim, exatamente. A mente emerge do movimento.

DB: E ela morre no movimento.

K: Isso mesmo. Ela tem sua existência no movimento.

DB: E a matéria também.

K: Concordo. Então, eis aonde quero chegar: sou um ser humano que está enfrentando esse fim e esse começo. E "X" elimina isso.

DB: Sim, não é fundamental.

K: Não é fundamental. Um dos maiores temores da vida, que é a morte, foi eliminado.

DB: Sim.

K: Percebe o que significa para um ser humano o fato de não haver a morte? Significa que a mente não envelhece — estou me referindo à mente comum. Não sei se estou conseguindo transmitir isso.

DB: Vamos devagar. Você diz que a mente não envelhece, mas e o fato de as células do cérebro envelhecerem?

K: Questiono isso.

DB: Mas como podemos ter certeza disso?

K: Porque não há conflito, porque não há tensão, não há transformação, não há movimento.

DB: Isso é uma coisa que é difícil de transmitir com certeza.

K: Naturalmente. Não podemos provar nada disso.

DB: Mas, quanto ao outro, dissemos até aqui...

K: ... que podemos raciocinar a respeito dele.

DB: Isso é lógico, e também podemos senti-lo. Mas agora você está afirmando uma coisa sobre as células cerebrais a respeito da qual não sinto nada. Talvez seja assim; poderia ser assim.

K: Penso que é assim. Não vou discutir isso. Quando uma mente viveu na escuridão e está em constante movimento, existe o desgaste, a degeneração das células.

DB: Poderíamos dizer que esse conflito fará com que as células degenerem. Mas alguém poderá argumentar que talvez mesmo sem conflito elas se degenerariam numa taxa mais lenta. Digamos que se vivêssemos centenas de anos, por exemplo, com o tempo as células se degenerariam, não importa o que fizéssemos.

K: Vá devagar.

DB: Posso facilmente aceitar que a taxa de degeneração das células seria reduzida se nos livrássemos do conflito.

K: A degeneração pode ser reduzida.

DB: Talvez bastante.

K: Bastante. Noventa por cento.

DB: Isso poderíamos entender. Mas se disser cem por cento, fica difícil de entender.

K: Noventa por cento. Espere um pouco. Ela pode ser muito, enormemente reduzida. E isso significa o quê? O que acontece a uma mente que não tem conflito? O que é essa mente, qual é a qualidade dessa mente que não tem problemas? Veja, suponha que uma mente viva num ar puro e despoluído com a espécie adequada de alimento, e assim por diante; por que ela não pode viver duzentos anos?

DB: Bem, é possível, algumas pessoas viveram cento e cinquenta anos, num ar bastante puro e comendo boa comida.

K: Mas veja, se essas mesmas pessoas que viveram cento e cinquenta anos não tivessem conflito, poderiam viver muito mais tempo.

DB: Talvez. Li a respeito de um caso de um homem na Inglaterra que viveu até cento e cinquenta anos. Os médicos ficaram interessados nele. Deram-lhe vinho e jantares, e ele morreu em poucos dias!

K: Pobre coitado!

I: Krishnaji, você normalmente diz que qualquer coisa que viva no tempo também morre no tempo.

K: Sim, mas o cérebro, que teve a visão intuitiva, alterou as suas células.

I: Está insinuando que até o cérebro orgânico não vive mais no tempo?

K: Não, não introduza ainda o tempo. Estamos dizendo que a visão intuitiva acarreta uma mudança nas células cerebrais. O que significa que as células cerebrais não pensam mais em termos de tempo.

I: Do tempo psicológico?

K: Naturalmente, isso está claro.

DB: Se elas não estiverem tão perturbadas, permanecerão em bom estado e possivelmente se degenerarão mais lentamente. Talvez possamos aumentar o limite de idade de cento e cinquenta para duzentos anos, desde que a pessoa tenha também uma vida saudável em todos os níveis.

K: Sim, mas tudo isso soa muito superficial.

DB: Sim, não parece fazer muita diferença, embora seja uma idéia interessante.

K: E se eu viver mais cem anos? Estamos tentando descobrir qual o efeito que esse extraordinário movimento tem sobre o cérebro.

DB: Sim. Se dissermos que o cérebro está de algum modo diretamente envolvido nesse movimento, isso o faria ficar em boas condições. Existe, porém, um fluxo direto, fisicamente.

K: Não apenas fisicamente.

DB: Mas também mentalmente.

K: Sim. Ambos. Isso deve ter um efeito extraordinário sobre o cérebro.

I: Você se referiu anteriormente à energia. Não à energia de todo dia...

K: Dissemos que o movimento é energia total. Essa visão intuitiva captou, viu, esse extraordinário movimento, e ele é parte dessa energia. Quero me aproximar muito mais da terra; tenho vivido com o medo da morte, medo de não vir a ser, e assim por diante. De repente, percebo que não há divisão, e compreendo a coisa toda. O que aconteceu então ao meu cérebro — entende? Vamos ver uma coisa; ver toda essa coisa, não verbalmente, mas como uma tremenda realidade, como a verdade. Com todo o seu coração, sua mente, você percebe essa coisa. Essa própria percepção deve afetar o seu cérebro.

DB: Sim, ela produz ordem.

K: Não apenas ordem na vida mas também no cérebro.

DB: É possível provar que quando estamos sob tensão, as células cerebrais começam a degenerar e que se temos ordem nessas células, as coisas são bem diferentes.

K: Tenho um sentimento, senhor — não ria dele; talvez ele seja falso, talvez seja verdadeiro — sinto que o cérebro nunca perde a qualidade desse movimento.

DB: Uma vez que a possua.

K: Naturalmente. Estou falando da pessoa que acabou com tudo isso.

DB: Portanto, provavelmente, o cérebro nunca perde essa qualidade.

K: E consequentemente ele não está mais envolvido no tempo.

DB: Ele não seria mais dominado pelo tempo. O cérebro, com base no que estávamos dizendo, não está evoluindo em qualquer sentido; é apenas uma confusão. Não podemos dizer que o cérebro do homem evoluiu durante os últimos dez mil anos. Veja, a ciência e o conhecimento evoluíram, mas as pessoas sentem hoje a respeito da vida o mesmo que sentiam há milhares de anos.

K: Quero descobrir o seguinte: o cérebro está absolutamente imóvel nesse vazio silencioso que atravessamos? No sentido de não ter movimento.

DB: Não completamente. Veja, o sangue passa pelo cérebro.

K: Não estamos falando disso.

DB: Que espécie de movimento estamos estudando?

K: Estou me referindo ao movimento do pensamento, o movimento de qualquer reação.

DB: Sim. Não há nenhum movimento no qual o cérebro se mova de forma independente. Disse que existe o movimento do todo, mas o cérebro não parte por conta própria, como pensamento.

K: Veja bem, você aboliu a morte, o que é uma coisa extremamente importante; e você pergunta o que é o cérebro, a mente, quando não há a morte. Entende? Ele passou por uma operação cirúrgica.

DB: Dissemos que o cérebro normalmente possui bem no fundo, de modo contínuo, a noção da morte, e que essa noção está permanentemente perturbando o cérebro, porque este antevê a morte, e tenta impedi-la.

K: Impedir o próprio fim, e assim por diante.

DB: Ele antevê tudo isso, e pensa que deve impedi-lo, mas não pode.

K: Não pode.

DB: E consequentemente ele tem um problema.

K: Uma luta permanente com ela; e desse modo, tudo isso chega a um fim. Que coisa extraordinária aconteceu! Como isso afeta minha vida diária, considerando que eu tenha que viver nesta terra? Minha vida diária é agressão, esse vir a ser interminável, essa luta pelo sucesso — tudo isso passou. Prosseguiremos com isso, embora tenhamos compreendido bastante hoje.

DB: Ao introduzir o assunto da vida diária, podemos apresentar o tema da compaixão.

K: Naturalmente. Esse movimento é compaixão?

DB: Ele estaria além dela.

K: Exatamente. É por isso que temos de ser extremamente cuidadosos.

DB: Então, mais uma vez, a compaixão deve surgir dela.

Diálogo entre Krishnamurti e David Bohm em 17 de abril de 1980, Ojai, Califórnia

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill