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sábado, 21 de abril de 2018

É possível libertar-se de toda dependência psicológica?


É possível libertar-se de toda dependência psicológica?

PERGUNTA: Podem os conservar nossos empregos, e trabalhar sem competição?

KRISHNAMURTI: Não podemos, senhor? Podeis frequentar o escritório e conservar vosso emprego sem competir? Não me cabe dizer se o podeis ou não, ou que deveis trabalhar sem competir. Mas, só vós podeis ver os efeitos do espírito de competição: ele gera antagonismos, medo, um cruel empenho em alcançar vossas pretensões, espirituais ou mundanas. Vedes tudo isso e perguntais a vós mesmo se é possível viver neste mundo sem competir. Isso significa viver sem comparar; significa fazer o que realmente gostais de fazer, o que sobremodo vos interessa. Ou, se vos vedes preso a um emprego de que não gostais — por terdes responsabilidades — significa que deveis descobrir como exercer esse emprego eficientemente, sem competir. E isso requer muita atenção, não achais? Tendes de estar sumamente vigilante para cada pensamento, cada sentimento, que em vós se manifestam, porque, do contrário, estareis meramente impondo a vós mesmo a ideia de que não deveis competir — o que se torna mais um problema. Mas, podeis tornar conhecimento de tudo o que a competição implica; perceber seu verdadeiro significado, e como gera conflito, luta incessante; compreendes que a competição inevitavelmente conduz o homem (ainda que se verifique considerável progresso —, o que se costuma chamar “progresso” — e maior eficiência na competição) ao antagonismo, à falta de afeição. Se perceberdes tudo isso, então, como resultado dessa percepção, atuareis — competindo ou não competindo, plenamente.

INTERROGANTE: Não creio que uma ação que se repete seja necessariamente fastidiosa.

KRISHNAMURTI: Deveis saber que se está começando a verificar que um homem que trabalha numa fábrica, fazendo a mesma coisa repetidamente, não é uma entidade muito produtiva, e dizem-me que na América se está agora experimentando, em certas fábricas, dar aos trabalhadores oportunidade de aprender, ao mesmo tempo que exercem suas atribuições. O resultado é que o seu trabalho se torna menos monótono e, por conseguinte, mais produtivo. Ainda que nos dê muito prazer fazer uma certa coisa, se prosseguimos incessantemente na mesma ação, ela se torna rotineira e cansativa.

PERGUNTA: E que dizeis a respeito do artista?

KRISHNAMURTI: Se o artista está meramente repetindo, por certo já não é artista. Parece-me que estamos confundindo as duas palavras — “repetição” e “criação” — será que estamos? Que é criação?

INTERROGANTE: Um homem que faz bons sapatos é criador.

KRISHNAMURTI: Fazer bons sapatos, cozinhar pão, gerar filhos, escrever poesias, etc. etc. — isso é criação? Por favor, não concordeis nem discordeis. Um minuto!

INTERROGANTE: Não percebo com o é possível viver-se num espaço vazio.

KRISHNAMURTI: Minha senhora, parece que nos estamos desentendendo. Lamento-o. Provavelmente isso se deva à minha escolha das palavras, que pode não ser tão boa como deveria ser, e talvez não compreendais exatamente o que entendo por “vazio”. Mas, estávamos falando sobre criação.

Ouvi dizer que em certa universidade estão ensinando o que chamam “literatura criadora”, “pintura criadora”. Mas pode-se ensinar a ser criador? A contínua prática de determinada coisa pode suscitar o espírito criador? Pode-se aprender de um professor a técnica de tocar violino, mas é óbvio que a técnica, por si só, não faz do homem um gênio, já quando a pessoa tem aquela criatividade, ela produzirá a técnica — e não vice-versa (isto é, a técnica não pode gerar o ânimo criador). Em geral pensamos que, adquirindo a técnica, encontraremos a outra coisa (o poder de criar). Consideremos um exemplo muito simples, embora todos os exemplos sejam precários. Que é vida simples? Vida simples, dizemos, é ter poucas posses, comer pouco, ter minguados haveres, e abster-se de fazer isto ou aquilo. Na Ásia, aquele que anda de tangas e só toma uma refeição diária é considerado um homem de vida simples; mas, interiormente, esse homem pode estar em ebulição, como um vulcão, ardendo em desejos, paixões, ambições. A vida simples desse homem é meramente uma ostentação, que todos podem reconhecer e dizer “Que homem simples!” — Esse é o verdadeiro estado da maioria dos santos: exteriormente apresentam simplicidade, porém, interiormente, são homens ambiciosos que disciplinam a mente, que se obrigam a ajustar-se a um certo padrão, etc. Assim, eu acho que a simplicidade deve, primeiro, vir de dentro, e não de fora. Analogamente, a criação não pode verificar-se por meio de expressão. Temos de achar-nos no estado de criação, e não de buscar a criação através da expressão. Achar-se no estado de criação é o descobrimento do Supremo, e isso só pode acontecer quando não há atividade do “eu” em nenhum sentido.

Voltando ao que disse aquela senhora sobre o vazio. Em regra, embora em exterior relação uns com os outros, vivemos no isolamento; mas não é sobre esse isolamento que falo. Vazio é coisa totalmente diferente de isolamento. Deve haver vazio entre nós, para que possamos ver um ao outro; deve haver espaço mediante o qual possais ouvir o que estou dizendo, e vice-versa. Na mente, por igual, o espaço precisa existir; isto é, ela não deve estar atravancada de tantas coisas, que nenhum espaço reste. Só quando há espaço dentro da mente — o que significa não haver atividade egocêntrica — só então é possível saber o que é viver. Mas, viver no isolamento — isso não é possível.

PERGUNTA: Poderíeis dizer mais alguma coisa a respeito da energia?

KRISHNAMURTI: Qualquer coisa que se faça, até a mais insignificante, requer energia, não é verdade? O levantar-se e sair deste pavilhão, o pensar, o comer, o conduzir um carro — toda espécie de ação exige energia. E, ordinariamente, ao fazermos alguma coisa, há, em nós uma forma de resistência que dissipa energia — a não ser que a ação nos proporcione prazer, caso em que não há conflito, nem resistência na continuidade da energia.

Como já disse, precisamos de energia para estarmos completamente atentos, e nessa energia não há resistência, porquanto não há distração. Mas, se ocorrer distração — no momento em que desejais concentrar-vos numa coisa e ao mesmo tempo olhar pela janela — há uma resistência, um conflito. Ora, o olhar pela janela é tão importante como o olhar para outra coisa qualquer — e, com a percepção dessa verdade, não haverá então distração, nem conflito.

Para terdes energia física, deveis naturalmente tomar alimentos adequados, ter a justa proporção de repouso, etc. Isto vós mesmos podeis experimentar e não há necessidade de o discutirmos. Mas existe também a energia psicológica, a qual se dissipa de várias maneiras. Para ter essa energia, a mente busca estímulos. Frequentar a igreja, assistir a partidas de futebol, entregar-se à literatura, ouvir música, etc., — todas essas coisas vos estimulam; e se o que desejais é ser estimulado, isso significa que, psicologicamente, sois dependente. A busca de estímulo implica dependência de alguma coisa — de uma bebida, uma droga, um orador, ou de entrar numa igreja; e, por certo, o depender de estímulo não apenas embota a mente, mas também ocasiona dissipação da energia. Assim, para conservarmos nossa energia, deve desaparecer toda espécie de dependência ou de estímulo; e, para desaparecer a dependência, precisamos aperceber-nos dela. Se, para ter estímulo, a pessoa depende de sua mulher ou de seu marido, de um livro, de seu cargo, de ir aos cinemas — qualquer que seja o incentivo — deve, em primeiro lugar, perceber isso. O aceitar simplesmente os estímulos, e com eles viver, dissipa energia e deteriora a mente. Mas, cientificando-nos dos estímulos e do significado que têm em nossa vida, poderemos livrar-nos deles. Pelo autopercebimento — que não é autocondenação, etc., porém estar simplesmente apercebido, sem escolha, de si próprio — pode o homem conhecer todas as formas de influência, todas as formas de dependência, todas as formas de estímulo; e esse próprio movimento da ação de aprender dá-lhe a energia necessária para libertar-se de todas as dependências e de todos os estímulos.

Krishnamurti, Saanen, 26 de julho de 1964,
A mente sem medo

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Enquanto há apego, não há liberdade


Enquanto há apego, não há liberdade

[...] Penso que todos nós estamos cientes das extraordinárias transformações exteriores ocorrentes no mundo, mas são bem poucos os que se transformam intimamente. Ou seguimos um certo padrão de pensamento estabelecido por outrem, ou criamos nossa própria estrutura ideológica, dentro da qual ficamos funcionando. E a maioria de nós acha dificílimo libertar-se desse padrão “conceitual”. Vivemos passando de conceito para conceito, de ideia para ideia, e pensamos que esse movimento é transformação; mas, como qualquer um pode ver se o observar atentamente, isso, em verdade, não é transformação nenhuma. O pensamento não pode produzir transformações profundas. O pensamento pode ser a causa de certos ajustamentos superficiais, poderá criar um novo padrão e a ele se ajustar, mas interiormente não se verifica nenhuma transformação significativa: somos, e provavelmente continuaremos a ser, o que sempre fomos. Esses ajustamentos exteriores correspondem sempre à nossa instabilidade interior, nossa interior incerteza, nosso interior sentimento de medo, e à nossa ânsia de fugir dos recantos escuros e inexplorados de nossa mente.

[...] Nesta manhã desejo examinar uma coisa que sinto ser muito importante, mas penso que primeiramente devemos compreender que o movimento exterior e o movimento interior da vida são essencialmente a mesma coisa. Importa não dividirmos esse movimento em “mundo exterior” e “mundo interior”. Ele é idêntico à maré, que vai para muito longe e retorna, sempre profunda. É quando dividimos esse movimento da vida em “exterior” e “interior”, “material” e “espiritual”, que começam todos os conflitos e contradições. Mas, se experimentamos verdadeiramente esse movimento como um processo unitário, incluindo tanto o “interior” como o “exterior”, então não há conflito. O movimento interior já não é, então, uma reação ao “exterior”, uma fuga ao mundo e, portanto, não precisamos retirar-nos para um mosteiro ou para o isolamento de uma torre de marfim. A o compreendermos o significado do “exterior”, o movimento interior deixa de ser o oposto do exterior; não é então, uma reação e, portanto, pode penetrar mais profundamente. Julgo, pois, ser esta a primeira coisa que cumpre compreender: que não podemos separar o interior do exterior. Trata-se de um processo unitário, e há grande beleza no perceber a sua indivisibilidade. Mas, para penetrarmos mais amplamente nesse mecanismo, precisamos compreender a natureza da humildade.

Em geral, não sabemos realmente o que significa ser humilde, ter o sentimento de humildade completa. A humildade não é uma virtude cultivável. No momento em que se cultiva a humildade, já não há humildade. Ou sois humilde, ou não sois. Para terdes o sentimento de completa humildade, deveis perceber esse movimento interior e exterior como um mecanismo único. Deveis compreender o significado da vida como um todo — a vida de sofrimento, de prazer, de dor, a vida que busca perpetuamente um pouso, que busca algo a que chama “Deus” ou por outro nome qualquer. Tendes de compreender tudo isso, e não rejeitar uma de suas partes para aceitar outra. Compreender é achar-se num estado de pleno percebimento. Significa escutar, passivamente, vossa esposa, vosso marido, o vento entre as árvores, o murmúrio das águas que passam, significa ver as montanhas, estar inteirado de tudo. Nesse estado de percebimento objetivo, há uma compreensão do exterior e do interior como um movimento total, unitário, e com essa compreensão se apresenta o senso de humildade. A humildade é importante, porque a mente sem humildade não pode aprender. Poderá acumular conhecimentos, reunir mais e mais informações, mas conhecimento e informações são coisas superficiais. Não sei porque tanto nos orgulhamos de nosso saber. Tudo se encontra em qualquer enciclopédia, e é estultícia acumular conhecimentos para satisfação de nosso orgulho e arrogância pessoal.

A humildade, pois, não é uma coisa que se deve alcançar com esforço. Alcançá-la-eis naturalmente, facilmente, “graciosamente”, uma vez percebido como um mecanismo total esse movimento do exterior e do interior. Então, começareis a aprender. Aprender é o estado da mente que jamais acumula experiência como memória, por mais agradável que seja a experiência; é o estado da mente que nunca evita um pesar, uma frustração. Ela se acha sempre num “estado de aprender”, de humildade. E vereis que da humildade provém a disciplina. Em maioria, não somos disciplinados. Submetemo-nos, ajustamo-nos, imitamos, reprimimos, sublimamos, mas nada disso é disciplina. Submissão não é disciplina e, sim, meramente, um produto do medo; por conseguinte, torna a mente estreita, estulta, embotada. Refiro-me a uma disciplina que existe espontaneamente quando há esse extraordinário senso de humildade e, por conseguinte, nos achamos num “estado de aprender”. Não é então necessário impor à mente nenhuma disciplina, porquanto o “estado de aprender” é, em si mesmo, uma disciplina.

Espero estar explicando isso bem claramente. Não falo da disciplina mecânica do soldado, que é exercitado para matar ou ser morto, nem da disciplina da técnica. Os escritórios, oficinas, fábricas, laboratórios e as diversas profissões técnicas requerem eficiência e, a fim de funcionar eficientemente num dado trabalho, a pessoa se disciplina, para corresponder ao padrão estabelecido. Não me refiro a nada disso. Refiro-me a uma disciplina completamente diferente, uma disciplina que nasce espontaneamente quando se compreende esse extraordinário mecanismo da vida, não em fragmentos, mas como um todo indiviso. Quando vos compreendeis, não “especializado” como músico, artista, orador, iogue, etc., mas como ser humano total, então, como resultado dessa autocompreensão, há um “estado de aprender”, e ele constitui uma disciplina isenta de ajustamento, imitação. A mente não está sendo moldada de acordo com nenhum padrão e, portanto, é livre, e nessa liberdade há um espontâneo senso de disciplina. Acho importante compreender isso, porquanto, para a maioria de nós, liberdade significa fazer tudo o que desejamos, ou obedecer aos nossos instintos, ou seguir o que, infelizmente, chamamos “nossa intuição”. Mas nada disso é liberdade.

Liberdade significa esvaziar a mente do conhecido. Não sei se já alguma vez o tentastes, vós mesmo. O relevante é libertarmos a mente do conhecido, ou, melhor, que a mente se liberte do conhecido. Isso não significa que a mente deva libertar-se do conhecimento “fatual”, pois em certo grau necessitamos desse conhecimento. É claro que não deveis libertar-vos do conhecimento do lugar onde residis, etc. Mas a mente pode libertar-se do seu fundo de tradição, de experiências acumuladas, e dos vários impulsos conscientes e inconscientes que representam reações daquele fundo; e ficar completamente livre desse fundo significa rejeitar, pôr de lado, morrer para o conhecido. Se assim fizerdes, descobrireis por vós mesmo quanto é realmente significativa a liberdade.

Falo de uma total liberdade interior em que não há dependência psicológica, nem apego de espécie alguma. Enquanto há apego, não há liberdade, porque o apego implica sentimento de íntima solidão, vazio interior, o qual exige um estado de relação exterior em que amparar-se. A mente livre não é apegada, embora possa ter relações. Mas não pode nascer a liberdade, se não há aquele “estado de aprender” que traz consigo uma profunda disciplina interior, não baseada em ideias nem em nenhum padrão “conceitual”. Quando a mente se liberta constantemente pelo morrer de instante em instante para o conhecido, daí provém uma disciplina espontânea, uma austeridade nascida da compreensão. A verdadeira austeridade é uma coisa maravilhosa; não é a seca disciplina, e sem nenhum valor, da renúncia destrutiva, que em geral imaginamos.

Não sei se já alguma vez experimentastes esse extraordinário sentimento de “ser completamente austero” — coisa que nada tem em comum com a disciplina de controle, ajustamento, submissão. E essa austeridade deve existir, porque, nela, há grande beleza e intenso amor. Nessa austeridade há paixão; ela só se apresenta ao existir solidão interior.

Agora, penso que é preciso perceber bem a diferença entre “isolamento” e “solidão”. Em regra, conhecemos a “solidão do isolamento” sempre que nos tornamos conscientes de nós mesmos. Talvez já tenhais conhecido a experiência de vos sentirdes subitamente isolado de tudo, de não estardes em relação com coisa alguma. Podeis achar-vos no meio de uma multidão, ou no círculo da família, ou numa reunião social, ou ainda passeando a sós pela margem de um rio, e subitamente vos vem um sentimento de completo isolamento. Esse sentimento de isolamento é essencialmente um “estado de medo”, e ele sempre existe, emboscado no segundo plano da mente. Desse medo procuramos fugir constantemente, fazendo coisas de todo gênero: lendo um livro, ouvindo o rádio, vendo televisão, bebendo, procurando mulheres, voltando-nos à busca de Deus, etc. É desse isolamento e por temermos isolar-nos que decorrem todas as nossas ações e reações. “Isolamento” é coisa completamente diferente de “solidão”.

A mente que se vê isolada, e com medo, está à mercê de inumeráveis influências; como um pedaço de barro, ela é maleável, pode ser modelada, ser forçada a ajustar-se a um molde. Mas, solidão é a mente livre de qualquer influência: influência da esposa, do marido, da tradição, da igreja, do Estado. Ela significa estar libertado da influência de leituras e das próprias e inconscientes exigências. Por outras palavras, solidão é a completa libertação do passado. É o “estado de aprender” que surge quando a mente compreende o mecanismo total da vida; daí vem uma disciplina que não é a disciplina da Igreja, ou do exército, ou do especialista, ou do atleta, ou do homem que cultiva o saber. É a disciplina nascida de um profundo senso de humildade; e não pode haver humildade, se a mente não está completamente só.

O que até agora se disse é razoável, lógico, são, saudável, e se compreendemos as palavras e lhes aprofundamos o sentido, não terá havido dificuldade em apreenderdes os dizeres do orador. Mas é necessário mais, muito mais do que isso. O exposto semelha o lançamento dos alicerces de uma casa — só os alicerces, e nada mais. Mas esses alicerces precisam ser lançados, e lançados com ardor, intensidade, beleza e, por conseguinte, com amor. Não podem ser lançados sob o impulso do desespero, do conflito, ou do desejo de alcançar um certo e estulto resultado, porque então a mente não se acha num estado livre do conhecido, do passado.

Não sei se já alguma vez notastes como acumulais, como vossa mente se aferra a inumeráveis e insignificantes experiências. A mente fornece o terreno no qual as experiências passageiras cravam raízes e continuam a moldá-la. Quase toda experiência deixa sua marca, e a experiência, por conseguinte, só pode perpetuar a limitação da mente. Mas, após lançar os alicerces corretos, pela percepção e compreensão de que esse mecanismo constitui sua própria limitação, a mente — com toda a facilidade, sem conflito algum — se liberta do “conhecido” e nasce, daí, um movimento que é criação.

Na maioria, buscamos Deus, e nosso Deus é uma mera questão de crença. A palavra God (Deus) escrita às avessas é dog (cachorro), e esta última serve tão bem como a primeira para designar aquilo que chamamos Deus. Mas, fomos educados, desde a meninice, para aceitar aquela palavra; e a religião organizada com sua milenária propaganda, condiciona a mente para crer naquilo que se supõe que a palavra representa. E aceitamos tal crença com tanta facilidade, exatamente como no mundo comunista aceitam a crença de que não há Deus, porque nessa crença foram eles educados. Esse é um outro gênero de propaganda. O crente e o não crente são iguais, porquanto ambos são escravos da propaganda.

Ora, para descobrirdes se há ou não há Deus, deveis destruir, em vós mesmos, tudo o que seja produto de propaganda. O que hoje chamamos “religião” foi organizado, formado durante séculos pelo homem, com seu medo, sua avidez, sua ambição, sua esperança e desespero. E para descobrir se há ou não há Deus, a mente deve destruir totalmente, sem nenhum motivo, todas as acumulações do passado; deve eliminar radicalmente todas as crenças e descrenças e desistir completamente de buscar. Deve a mente estar vazia do “conhecido”, vazia do Salvador, vazia de todos os deuses manufaturados pelo pensamento e esculpidos na madeira ou na pedra. Só quando livre do conhecido, pode a mente encontrar-se num estado de absoluta tranquilidade, não provocada por uma certa maneira de respirar, por exercícios, artifícios, drogas. E precisamos chegar até esse ponto — que na realidade não está longe, pois não há distância nenhuma para percorrer. Mas, para se abolir a distância, o tempo deve cessar; e só pode cessar o tempo, quando há o conhecimento de nós mesmos como realmente somos, fato por fato. Nesta extraordinária liberdade, que começa com a autocompreensão, há um movimento — um movimento imensurável, que supera todos os conceitos. Esse movimento é criação; e quando a mente chegar a esse movimento, descobrirá, por si própria, que o amor, a morte e a criação são a mesma coisa.

Krishnamurti, Saanen, 12 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

segunda-feira, 9 de abril de 2018

O mecanismo da necessidade e da dependência

O mecanismo da necessidade e da dependência

Há dias estivemos falando sobre o desejo e o conflito resultante do desejo; e gostaria de continuar com esse mesmo assunto e falar também sobre a necessidade, a paixão e o amor, pois acho que tudo isso está relacionado entre si. Se pudermos examinar esta matéria profunda e fundamentalmente, talvez então possamos compreender todo o significado do desejo. Mas, antes de podermos compreender o desejo, com todos os seus conflitos e torturas, acho necessário compreender-se a questão da necessidade.

Naturalmente, temos necessidade de certas coisas exteriores, superficiais, tais sejam roupas, teto e alimentos. Estas coisas são essenciais para todos nós. Mas, necessitamos realmente de mais alguma coisa? Psicologicamente, existe uma necessidade real de sexo, de fama, do imperioso impulso da ambição, do perpétuo ansiar por mais e mais? De que necessitamos, psicologicamente? Pensamos que necessitamos de muitas coisas, e daí é que resulta todo o sofrimento da dependência. Mas, se examinarmos realmente, se investigarmos profundamente a questão, existe alguma necessidade essencial, psicologicamente, interiormente? Acho que valeria a pena fazermos seriamente esta pergunta a nós mesmos. A dependência psicológica de outra pessoa nas relações, a necessidade de estar em comunhão com outro, a necessidade de aderir a um dado padrão de pensamento e de atividade, a necessidade de preenchimento, de nos tornarmos famosos — todos conhecemos essas necessidades e constantemente estamos cedendo a elas. E penso que seria significativo se pudéssemos, cada um de nós, tentar descobrir quais são realmente as nossas necessidades e até que ponto delas dependemos. Porque, se não compreendermos a necessidade, não seremos capazes de compreender o desejo, não seremos capazes de compreender a paixão e, por conseguinte, o amor. Seja rico, seja pobre, um homem necessita evidentemente de comida, de roupa e de teto, embora, mesmo aí, a necessidade possa ser limitada, pequena, ou expansível. Mas, além dessa, existe realmente alguma necessidade? Por que se tornaram tão importantes as nossas necessidades psicológicas, por que se tornaram uma força tão imperiosa e compulsiva? São elas, meramente, uma fuga de algo muito mais profundo?

Em nossa investigação não estamos procedendo analiticamente. Estamos tentando encarar o fato, ver exatamente o que é; e isso não requer nenhuma espécie de análise, de psicologia, de engenhosas e digressivas explicações. O que estamos tentando é ver por nós mesmos quais são as nossas necessidades psicológicas, e não explicá-las, não racionalizá-las, e sem perguntar: “Que faremos sem elas? Eu tenho de tê-las”. Isso fecha a porta à ulterior investigação. E, evidentemente, a porta está também hermeticamente fechada quando a investigação é puramente verbal, intelectual ou emocional. A porta está aberta quando desejamos realmente enfrentar o fato, e isso não requer um intelecto extraordinário. Para se compreender um problema muito complexo, necessita-se de uma mente clara, simples; mas nega-se a simplicidade e a clareza quando temos uma quantidade de teorias e estamos tentando evitar o problema.

A questão, pois, é: Por que temos essa imperiosa necessidade de preencher-nos, por que somos tão cruelmente ambiciosos, por que tem o sexo tão extraordinária importância em nossa vida? Não importa a qualidade ou a quantidade de nossas necessidades, ou se alguém tem “o máximo” ou “o mínimo”; mas, por que existe esse tremendo impulso para nos preenchermos, na família, num nome, numa posição, etc., com todas as respectivas ansiedades, frustrações e sofrimentos — impulso que a sociedade estimula e a igreja abençoa?

Ora, se examinardes isso, pondo de parte a reação de dizer: “Que me aconteceria se eu não tivesse êxito na vida?” — descobríreis, sem dúvida, algo muito mais profundo, ou seja o medo de “não ser”, do isolamento completo, do vazio e da solidão. Ele lá está, profundamente oculto, esse anseio tremendo, esse medo de se ver isolado de tudo. Eis a razão por que nos apegamos a todas as formas de relação. Eis por que existe a necessidade de pertencer a alguma coisa, a um culto, uma sociedade, de entregar-se a certas atividades, de ater-se a determinada crença; porque, dessa maneira, podemos fugir da realidade interior, profunda. É esse medo, por certo, que força a mente, o intelecto, nosso ser inteiro, a aderir a uma dada forma de crença ou de relação, a qual se torna, então, necessidade.

Não sei se alcançastes este ponto, nesta investigação, — não verbalmente, porém realmente. Isso significa descobrir diretamente e enfrentar o fato de se ser nada, de se estar interiormente vazio como uma concha e coberto das joias do saber e da experiência que, na realidade, nada mais são do que palavras e explicações. Ora, para enfrentar esse fato sem desespero, sem sentir quanto ele é terrível, porém, simplesmente, “ficar com ele”, é necessário em primeiro lugar compreender a necessidade. Se compreendermos o significado da necessidade, ela não terá mais tanta preponderância, em nossa mente e coração.

Voltaremos a este tópico mais tarde. Mas passemos a considerar o desejo. Conhecemos — não é verdade? — o desejo que se contradiz, se tortura, se lança em diferentes direções; a dor, a agitação, a ansiedade do desejo, e o disciplinar, o controlar dele. E, em nossa eterna batalha com ele, torcemo-lo, desfiguramo-lo, tornamo-lo irreconhecível; mas ele subsiste, vigilante, expectante, premente. O que quer que se faça — sublimá-lo, fugir-lhe, rejeitá-lo ou aceitá-lo, soltar-lhe as rédeas — ele está sempre presente. E sabemos que os instrutores religiosos e outros têm dito que devemos ser isentos de desejos, cultivar o desapego — coisa realmente absurda, porquanto o desejo tem de ser compreendido e, não, destruído. Se destruís o desejo, podeis destruir a própria vida. Se pervertemos o desejo, se o moldamos, controlamos, dominamos, reprimimos, podemos estar destruindo algo extraordinariamente belo.

Temos de compreender o desejo; mas é dificílimo compreender essa coisa tão cheia de vitalidade, tão exigente e premente, pois no próprio preenchimento do desejo gera-se a paixão, com os prazeres e dores respectivos. E para se compreender o desejo não deve, naturalmente, haver escolha. Não se pode julgar o desejo chamando-o “bom” ou “mau”, “nobre” ou “ignóbil”, ou dizer: “Conservarei este desejo e rejeitarei aquele”. Tudo isso deve ser posto de parte para podermos descobrir a verdade relativa ao desejo — sua beleza, fealdade, ou o de adquirir conhecimentos e acumular vários tipos de experiência, ao que quer que seja. Este é um assunto muito interessante, mas aqui no Oeste, ou Ocidente, muitos desejos podem ser preenchidos. Tendes carros, prosperidade, melhor saúde, a possibilidade de ler livros, ao passo que no Oriente existe ainda carência de alimentos, de roupa e de moradia, bem como a desdita e a degradação da pobreza. Mas tanto no Ocidente como no Oriente, o desejo sempre arde em todos os sentidos; ele está sempre presente, exteriormente e também interiormente, bem entranhado. O homem que renuncia ao mundo está tão tolhido pelo seu desejo de buscar Deus, como o está o homem que busca a prosperidade. Assim, o desejo está presente a todas as horas, ardente, contraditório, criando agitação, ansiedade, culpa e desespero.

Não sei se já fizestes experiências a esse respeito; mas que aconteceria se não condenássemos o desejo, se não o julgássemos “bom” ou “mau”, porém ficássemos simplesmente apercebidos dele? Será que sabeis o que significa “estar apercebido de alguma coisa”? Em geral, não estamos “apercebidos”, porque nos acostumamos a condenar, a julgar, a avaliar, a identificar, a escolher. A escolha, evidentemente, impede o percebimento, porque a escolha é sempre feita como resultado de conflito. Estar apercebido, ao entrar numa sala, ver os móveis, o tapete ou a falta dele, etc. — ver, simplesmente, estar apercebido de tudo sem tendência para julgar — é dificílimo. Já experimentastes olhar para uma pessoa, uma flor, uma ideia, uma emoção, sem fazer escolha, sem emitir julgamento?

E se fizermos o mesmo com o desejo, se “vivermos com ele” — sem rejeitá-lo ou dizer “Que farei com este desejo? Ele é tão feio, veemente, violento”, sem lhe aplicar um nome, um símbolo, sem encobri-lo com uma palavra — existe então ainda a causa da agitação? É então o desejo algo que se deve lançar fora, destruir? Desejamos destruí-lo porque um desejo está em antagonismo com outro, criando conflito, sofrimento e contradição; e pode-se ver como tentamos fugir desse conflito perene. Assim, pode-se estar apercebido da totalidade do desejo? O que entendo por “totalidade” não é simplesmente um desejo ou muitos desejos, mas a “qualidade total” do próprio desejo. E só se pode estar apercebido da totalidade do desejo, quando não há opinião a seu respeito, nem palavra, nem julgamento, nem escolha. Estar apercebido de cada desejo ao surgir, não se identificar com ele nem condená-lo — nesse estado de alerta existe desejo ou o que existe é uma chama, uma paixão, que nos é necessária? A palavra “paixão” é de ordinário reservada para uma coisa: o sexo. Mas, para mim, paixão não é sexo. Precisamos de paixão, intensidade, para podermos viver realmente com uma coisa; para vivermos plenamente, contemplarmos uma montanha, uma árvore, olharmos realmente para um ente humano, devemos ter intensidade apaixonada. Mas essa paixão, essa chama é negada, quando estamos tolhidos por vários impulsos, exigências, contradições, temores. Como pode sobreviver uma chama se a sufocamos com uma quantidade de fumo? Nossa vida é só fumaça; buscamos a chama, mas a estamos negando pelo reprimir, controlar, moldar a coisa que chamamos desejos.

Sem a paixão, como pode haver beleza? Não me refiro à beleza de quadros, edifícios, pinturas de mulheres, etc., que têm suas peculiares formas de beleza, mas não estamos tratando da beleza superficial. Uma coisa construída pelo homem, como uma catedral, um templo, um quadro, um poema, ou uma estátua, pode ser ou pode não ser bela. Mas existe uma beleza superior ao sentimento e ao pensamento e que não pode ser percebida, compreendida ou conhecida se não existe paixão. Mas não interpreteis erroneamente a palavra “paixão”. Não é uma palavra feia; não é uma coisa adquirível no mercado ou de que se pode falar romanticamente. Não tem absolutamente nenhuma relação com a emoção, o sentimento. Não é coisa respeitável; é uma chama destruidora de quanto é falso. E temos sempre tanto medo de deixar essa chama consumir as coisas que nos são caras, as coisas que chamamos importantes!

Afinal de contas, a vida que atualmente levamos, baseada em necessidades, desejos e métodos de controlar o desejo, faz-nos mais superficiais e vazios do que nunca. Podemos ser talentosos, ilustrados, e capazes de repetir tudo o que aprendemos; mas as máquinas eletrônicas fazem a mesma coisa e já, em certos setores, as máquinas se tornaram mais capazes do que o homem, mais exatas e rápidas em seus cálculos. E assim estamos sempre voltando a este mesmo tópico, ou seja, que a vida que vivemos atualmente é bem superficial, estreita, limitada, e isso porque, profundamente, estamos vazios, sós, e sempre tentando encobrir, preencher esse vazio; por isso, a necessidade, o desejo se torna uma coisa terrível. Nada pode preencher esse profundo vazio interior — nem deuses, nem salvadores, nem o saber, nem as relações, nem os filhos, nem o marido, nem a esposa — nada. Mas se a mente, o intelecto, a totalidade de vosso ser, é capaz de encará-lo, deviver com ele”, vereis então que, psicológica, interiormente, não há necessidade de coisa alguma. Esta é a verdadeira liberdade.

Isso, porém, requer profundo discernimento, profunda investigação, incessante vigilância; e desse modo talvez venhamos a saber o que é o amor. Como pode haver amor quando há apego, ciúme, inveja, ambição e todas as hipocrisias que acompanham esta palavra? Mas, se tivermos passado por aquele vazio — que é uma realidade e não um mito nem uma ideia — veremos que o amor e o desejo e a paixão são uma mesma coisa. Se se destrói uma, destrói-se a outra; se se corrompe uma, corrompe-se a beleza. Para se penetrar tudo isso requer-se, não uma mente desapegada, dedicada ou uma mente religiosa, mas uma mente disposta a investigar, uma mente nunca satisfeita, que está sempre a olhar, a vigiar, a observar a si própria — a conhecer a si mesma. Sem o amor, nunca será possível descobrir o que é a verdade.

PERGUNTA: Como se pode descobrir qual é o nosso problema principal?

KRISHNAMURTI: Por que dividir os nossos problemas em principais e secundários? Não é tudo problema? Por que fazer deles pequenos problemas ou grandes problemas, problemas essenciais ou não essenciais? Se pudéssemos compreender um só problema, examiná-lo muito profundamente, por maior ou menor que ele seja, esclareceríamos todos os outros problemas. Esta não é uma resposta retórica. Consideremos um problema qualquer: cólera, ciúme, inveja, ódio — conhecemo-los todos muito bem. Se examinardes com profundeza a cólera, em vez de procurardes expulsá-la, que encontrais então? Por que se encoleriza uma pessoa? Porque se sente magoada: alguém lhe disse algo ofensivo; e se lhe dizemos algo que a lisonjeia, sente-se satisfeita. Por que se ofende uma pessoa? Porque atribui importância a si mesma, não é verdade? E por que existe essa importância própria? Porque cada um tem de si mesmo uma ideia, um símbolo, uma imagem — uma ideia do que deveria ser, do que é, do que não deveria ser. Por que cria uma pessoa uma imagem a respeito de si própria? Porque nunca estudou o que ela é realmente. Pensamos que devemos ser isto ou aquilo, o ideal, o herói, o exemplo. O que nos desperta a cólera é ver que está sendo atacado o nosso ideal, a ideia que temos de nós mesmos. E a ideia que temos de nós mesmos representa nossa fuga ao fato, ao que somos realmente. Mas, quando estais observando o fato real, o que sois realmente, ninguém vos pode ofender. Então, se uma pessoa é mentirosa e lhe dizem que ela é mentirosa, isso não pode significar uma ofensa, porque se trata de um fato. Mas, se queremos aparentar que não somos mentirosos e alguém nos diz que o somos, tornamo-nos encolerizados, violentos. Assim, estamos sempre vivendo num mundo imaginário, mítico, e nunca no mundo da realidade. Para se observar o que é, vê-lo, familiarizar-se com ele, não deve haver julgamento, nem avaliação, nem opinião, nem medo.[...]

PERGUNTA: Por que nos assalta o medo ao nos tornarmos apercebidos de nosso próprio vazio?

KRISHNAMURTI: O medo só se manifesta quando estamos fugindo da coisa que é; quando a estamos evitando, repelindo. Se vos adiais verdadeiramente em presença da coisa, olhando-a de frente, existe medo então? Fugir, movimentar-se para longe do fato, atemoriza. O temor é “mecanismo” de pensamento, e o pensamento origina-se do tempo; e se não compreenderdes todo o “mecanismo” do pensamento e do tempo, não compreendereis o medo. Olhar o fato, sem procurar evitá-lo, é pôr fim ao temor. [...]

PERGUNTA: A libertação pode ser realizada por todos?

KRISHNAMURTI: Decerto. Ela não é dada só a uns poucos. O estado de libertação não é uma espécie de “aristocracia”; está ao alcance de quantos queiram investigá-lo. Lá está, com beleza e força sempre mais ampla e profunda, quando há autoconhecimento. E cada um pode começar a conhecer-se observando a si próprio, como quem se vê ao espelho. O espelho não mente; mostra-vos vossas feições exatamente como são. Da mesma maneira podeis observar-vos, sem desfiguração. Começais então a descobrir-vos. É uma coisa extraordinária o autoconhecimento. O caminho da realidade, daquela imensidão desconhecida, não passa pela porta de uma igreja nem por livro nenhum, mas apenas pela porta do autoconhecimento.

Krishnamurti, Paris, 12 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

sábado, 7 de abril de 2018

Onde há dependência, há autoridade


Onde há dependência, há autoridade

PERGUNTA: Não admitis a necessidade da orientação dada por um guia? Se, como dizeis, não deve mais haver nem tradição nem autoridade, nesse caso todos terão de lançar novas bases para a sua existência. Assim como o corpo físico teve um começo, não deve haver também um começo para o nosso corpo espiritual e mental e não deve este ascender de cada degrau para o degrau superior, imediato? Assim como nosso pensamento se inflama, quando vos ouvimos, não é necessário despertá-lo, pelo contacto com os grandes espíritos do passado?

KRISHNAMURTI: Senhor, este é um problema velho como o mundo. Pensamos que necessitamos de um guru, um instrutor, para nos despertar a mente. Pois bem. Que implica isso? Implica, de um lado, o homem que sabe, de outro lado, o homem que não sabe. Continuemos devagar, sem nos deixarmos influir por preconceitos. "O homem que sabe" se torna a autoridade, e "o homem que não sabe" se torna seu discípulo. E o discípulo vai sempre seguindo o mestre, na esperança de alcançá-lo, de se colocar no mesmo nível que ele. Agora, prestai atenção! Quando o guru diz que sabe, já não, é guru. Porque o homem que diz que sabe, não sabe. E vede porque não sabe: porque a Verdade, a Realidade, ou "o outro estado", não se acha num ponto fixo, não se pode alcançar por um certo caminho, e temos de descobri-la momento por momento. Se está num ponto fixo, nesse caso esse ponto se acha dentro dos limites do tempo. Para um ponto fixo pode haver caminho, como há um caminho para vossa casa; mas para uma coisa viva que não tem pouso fixo, que não tem começo nem fim, não pode haver caminho algum.

Ora, um guru que se oferece para ajudar-vos a conhecer a Realidade só poderá ajudar-vos a reconhecer o que já conheceis; porque o que se pode reconhecer, experimentar, tem de ser reconhecível, não achais? Quando o reconheceis, dizeis: "Experimentei" — mas o que é reconhecível, não pode ser aquele outro estado. O outro estado não é reconhecível, pois nunca foi conhecido; não é uma coisa que já experimentastes e que sois capazes de reconhecer. O "outro estado" é uma coisa que tem de ser descoberta momento por momento; e para descobri-la, a mente tem de ser livre. Senhor, a mente tem de estar livre para descobrir qualquer coisa; e a mente agrilhoada pela tradição, antiga ou moderna, a mente que leva a carga da crença, dos dogmas, dos ritos, não é livre, evidentemente. Para mim, a ideia de que um outro pode despertar-vos, não tem validade alguma. Isto não é uma opinião; é um fato. Se um outro vos desperta, ficais sob sua influência, dependente dele; por conseguinte não sois livre; e só a mente livre pode descobrir.

É este, portanto, o problema, não achais?

Aspiramos àquele outro estado, e uma vez que não sabemos como alcançá-lo, passamos invariavelmente a depender de alguém, a quem chamamos instrutor, guru, ou a depender de um livro, ou de nossa própria experiência. E está criada, assim, a dependência, e onde há dependência há também autoridade. A mente se torna, por conseguinte, escrava da autoridade, escrava da tradição, e essa mente, de toda evidência, não é livre. Só a mente que é livre, pode descobrir; e contar com a ajuda de outro para o despertar da mente, é o mesmo que recorrer a uma droga que vos fará ver as coisas com muita nitidez, muita clareza. Há drogas que podem fazer a vida parecer, momentaneamente, muito mais "vital", de modo que todas as coisas assumem um relevo, um brilho extraordinário — as cores que vedes todos os dias, sem lhes dar atenção, se tornam extraordinariamente belas, etc. Tal poderá ser o vosso "despertar" da mente, mas estareis então na dependência da droga, como dependeis agora de vosso guru ou de um certo livro sagrado. E quando se torna dependente, a mente se embota. Da dependência provém o temor — o temor de não realizar o que se quer, o temor de não ganhar. Quando dependemos de outro, seja o Salvador, seja outro qualquer, isso significa que a mente está em busca de um resultado feliz, um fim satisfatório. Podeis chamá-lo Deus, a Verdade, ou como quiserdes — mas é sempre uma coisa que se quer ganhar. E, assim, a mente fica aprisionada, se torna escrava e, não importa o que faça — sacrificar-se, disciplinar-se, torturar-se — essa mente nunca descobrirá o outro estado.

O problema, pois, não é quem seja o instrutor correto, mas sim descobrir se a mente pode manter-se desperta. E isso só se pode descobrir quando todas as relações se tornam um espelho, em que ela se vê exatamente como é. Mas a mente não pode ver-se como é, quando há condenação ou justificação daquilo que vê, ou se há qualquer forma de identificação. Todas essas coisas tornam a mente embotada e, embotados que estamos, desejamos ser despertados. Por essa razão amparamo-nos em outro, para que nos desperte. Mas, em virtude do próprio desejo de ser despertada, a mente embotada se torna mais embotada ainda, porquanto não percebe a causa do seu embotamento. É só quando a mente percebe e compreende todo esse mecanismo, e não depende de explicações de ninguém, é só então que ela é capaz de libertar-se.

Mas, como é fácil nos satisfazermos com palavras, com explicações! São muitos poucos os que rompem a barreira das explicações, ultrapassando as palavras e descobrindo por si mesmos o que é verdadeiro. A capacidade é produto da aplicação, não é? Mas nós não, nos aplicamos, porque nos satisfazemos com palavras, com especulações, com as tradicionais respostas e explicações com que fomos criados.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Madanapale
26 de fevereiro de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Amamos, de fato, aos nossos filhos?

Amamos, de fato, aos nossos filhos?

PERGUNTA: Sou capaz, agora, de aceitar os problemas que me dizem respeito. Mas como posso deixar de sofrer por meus filhos, quando são atingidos pelos mesmos problemas?

KRISHNAMURTI: Porque dependemos de nossos filhos? E, além disso, amamos os nossos filhos? Se há amor, como pode haver dependência, como pode haver sofrimento? Nossa ideia de amor é que devemos sofrer por outros. É amor, sofrer? Ou o fato é que eu dependo de meus filhos, que busco através deles a imortalidade, o preenchimento, etc.? Por isso, desejo que meus filhos sejam algo; e, se não o são, sofro. Bem pode ser que o problema não sejam os filhos, absolutamente, mas eu próprio. E repetimos: talvez não saibamos o que é amar. Se amássemos os nossos filhos impediríamos todas as guerras futuras, é claro. Não condicionaríamos os nossos filhos. Eles não seriam nem ingleses, nem hindus, nem brâmanes, nem não brâmanes; seriam crianças. Mas, como não amamos, dependemos dos nossos filhos; através deles esperamos preencher a nós mesmos. E, assim, quando nosso filho, por meio de quem queremos preencher-nos, faz algo que não é aquilo que queremos, sentimos pesar, e há conflito. Fazer simplesmente uma pergunta e esperar a resposta tem pouca significação. Mas se pudermos observar por nós mesmos o "mecanismo" desse apego, o "mecanismo" dessa busca de preenchimento por meio de outro, o que é dependência e deve, inevitavelmente, criar sofrimentos, se pudermos percebê-lo por nós mesmos, como um fato, poderá surgir uma coisa diferente, quiçá amor. E tal relação produzirá então uma sociedade diferente, um mundo muito diferente.

Krishnamurti, Quinta Conferência em Londres, 25 de junho de 1955

Qual é o fator que cria o mecanismo da dependência?

Qual é o fator que cria o mecanismo da dependência?

Um dos nossos numerosos problemas parece ser o da dependência, esta nossa dependência de pessoas para nossa felicidade, dependência de capacidade, a dependência que nos obriga a ficar apegados a alguma coisa. E a questão é: pode a mente, em algum tempo, estar totalmente livre de toda dependência? Considero esta uma das perguntas fundamentais que deveríamos fazer a nós mesmos constantemente. Naturalmente, não estamos falando da dependência superficial, mas, no nível mais profundo, encontra-se aquela dependência psicológica, de certa segurança, de certo método que garanta à mente um estado de permanência; há a busca de uma ideia, de uma relação que seja duradoura. E sendo este um dos nossos principais problemas, parece-me muito importante que o examinemos com certa profundeza, pois não devemos "responder" superficialmente com uma reação imediata.

Porque é que dependemos? Psicologicamente, interiormente, dependemos de uma crença, um sistema, uma filosofia; pedimos a outro uma norma de conduta; procuramos instrutores, em busca de uma maneira de vida que nos propicie certa esperança, certa felicidade. Assim, estamos sempre — não é verdade? — procurando alguma espécie de dependência, de segurança. Tem a mente possibilidade de libertar-se dessa ideia de dependência? Com isso não quero dizer que a mente deva conquistar a independência, o que só seria uma reação à dependência. Não estamos falando de independência, libertação de certo estado. Se pudermos investigar, sem a reação de buscar libertar-nos de certo estado de dependência, poderemos penetrar muito mais profundamente na questão da dependência. Mas se, na nossa investigação, saímos por uma tangente, buscando a independência, nunca compreenderemos integralmente esta questão da dependência psicológica. Sabemos que dependemos: das nossas relações com pessoas, de certa ideia, ou de um sistema de pensamento. Por quê? Aceitamos a necessidade de dependência. Dizemo-la inevitável. Nunca pusemos em questão este ponto, nunca indagamos porque cada um de nós anda em busca de alguma espécie de dependência.

A causa não é que, na realidade, e muito profundamente, sentimos necessidade de segurança, permanência? Vendo-nos num estado de confusão, desejamos que algo nos salve dessa confusão. Estamos, pois, sempre interessados em fugir ou evitar o estado em que nos achamos. No processo de evitar esse estado, temos de criar, forçosamente, alguma espécie de dependência, a qual se torna nossa autoridade. Se dependemos de outrem para nossa segurança, nosso bem estar interior, dessa dependência resultam inumeráveis problemas; e tentamos então resolver esses problemas, que são problemas criados pelo apego. Mas nunca inquirimos, nunca examinamos o próprio problema da dependência. Talvez, se pudermos examinar este problema de maneira verdadeiramente inteligente, com plena atenção, talvez então possamos descobrir que não é, em absoluto, a dependência que constitui o problema, que ela é apenas um modo de fugirmos a um fato mais profundo.

Peço licença para sugerir, àqueles que estão tomando notas, que se abstenham disso. Porque estas reuniões não serão proveitosas se o que queremos é meramente lembrar-nos, depois, do que se esteve dizendo. Mas, se pudermos experimentar diretamente o que se está dizendo, agora, e não depois, isso terá um significado positivo, será uma experiência direta, e não uma experiência recolhida, mais tarde, das vossas notas, e pensada de memória. Além disso, se posso observá-lo, o tomar notas perturba os que estão perto de vós.

Como dizia, porque dependemos e fazemos da dependência um problema? Na verdade, penso, o problema não é a dependência; a meu ver, há outro fator mais profundo, que nos faz depender. E, se pudermos descobrir esse fator, então a dependência e a luta pela libertação se tornam muito pouco significativas; então, todos os problemas que surgirem em razão da dependência reduzir-se-ão a nada.

Qual é, pois, esse fator mais profundo? É a mente detestar e temer a ideia de estar só? E conhece a mente esse estado que está evitando? Dependo de alguém, psicologicamente, interiormente, por causa de um estado que estou tentando evitar, mas que nunca investiguei, nunca examinei. Por isso, a minha dependência de uma pessoa — de quem desejo amor, estímulo, orientação — se torna imensamente importante, como todos os problemas dela decorrentes. Mas, se sou capaz de perceber o fator que é o meu depender de uma pessoa, de Deus, da oração, de certa capacidade, certa fórmula ou conclusão que chamo "crença", talvez então eu possa descobrir que tal dependência resulta de uma exigência interior a que, em verdade, nunca prestei atenção, nem levei em conta.

Podemos, nesta tarde, dar atenção a este fator, o fator que a mente evita o sentimento de completa solidão, que só conhecemos superficialmente? Que é "estar solitário"? Podemos examinar isso agora, sem o perdermos de vista um só instante, sem introduzirmos nenhum outro problema? Considero, com efeito, esta questão sumamente importante, porque, enquanto aquela solidão não for realmente compreendida, sentida, penetrada, dissolvida — ou qualquer outra palavra que preferirdes —, enquanto persistir este sentimento de solidão, será inevitável a dependência, nunca seremos livres, nunca poderemos descobrir por nós mesmos o que é verdadeiro, o que é religião. Enquanto estou dependendo tem de haver alguma autoridade, tem de haver imitação, tem de haver compulsão sob diferentes formas, tem de haver disciplinamento segundo certo padrão. Pode, pois, a mente descobrir o que é "estar na solidão", e passar além, de modo que seja posta em liberdade e não dependa mais das crenças, dos deuses, dos sistemas, das orações, nem de coisa alguma?

Não há dúvida de que, enquanto estamos buscando um resultado, um fim, um ideal, essa própria ânsia de achar cria dependência, de que resultam os problemas da inveja, da "exclusão", do isolamento, e tudo o mais. Nessas condições, pode a minha mente conhecer a solidão em que de fato se encontra, embora eu a esteja encobrindo com o saber, relações, e várias outras formas de distração? Posso compreender efetivamente essa solidão? Porque não é este um dos nossos maiores problemas, este apego e a luta para nos desapegarmos? Podemos examinar juntos este problema, ou isto é completamente impossível? Enquanto há apego, dependência, tem de haver "exclusão" (separação). A dependência da nacionalidade, a identificação com determinado grupo, determinada raça, determinada pessoa ou crença, é evidentemente um fator de separação. Assim, é provável que a mente esteja sempre, como entidade separada, buscando isolamento e evitando um fator mais profundo, que realmente é separativo: o processo egocêntrico de seu próprio pensar, gerador de solidão.

Vós conheceis o sentimento de que devemos identificar-nos como hinduístas, cristãos, como pertencentes a certa casta, grupo, raça, tudo isso é bem sabido de vós. Se pudermos, cada um de nós, compreender o problema mais profundo, o problema implícito, talvez então termine toda influência geradora de dependência, e a mente fique de todo livre. Este problema é talvez tão difícil que não possa ser discutido num tão grande grupo.

OUVINTE: Podeis definir a palavra "só", em contraste com "solidão"?

KRISHNAMURTI: Por favor, nós não estamos, com certeza, buscando definições, estamos? Estamos perguntando se cada um de nós está apercebido de sua solidão — não agora, talvez —, mas nós conhecemos esse estado e sabemos que estamos fugindo dele por vários meios, e, consequentemente, multiplicando os nossos problemas. Ora, posso eu, pelo percebimento, "queimar" a raiz do problema, de modo que ele nunca mais torne a surgir ou, se tornar, eu saiba resolvê-lo sem criar novos problemas?

OUVINTE: Significa isso que devemos quebrar os laços que são insatisfatórios?

KRISHNAMURTI: Ora, não é isto que estamos discutindo, é? Parece que não nos estamos entendendo bem. É por isso que estou incerto quanto à possibilidade de discutirmos este problema num grupo tão grande. Nós sabemos — não é verdade? — que estamos apegados. Dependemos de pessoas, de ideias. Faz parte da natureza do nosso ser o depender de alguém. E a essa dependência chamamos amor. Agora, pergunto a mim próprio, e talvez pergunteis também a vós mesmos, se é possível libertar a mente, psicologicamente, interiormente, de toda dependência, pois percebo que, por causa da dependência, surgem problemas e mais problemas, um nunca acabar de problemas. Por essa razão, pergunto a mim mesmo se é possível ficarmos num estado de percebimento tal que esse próprio percebimento faça consumir-se o sentimento de dependência, de outrem ou de uma ideia, de modo que a mente, com o total desaparecimento da dependência, não mais se veja isolada.

Por exemplo: eu dependo da identificação com um dado grupo; satisfaz-me intitular-me hinduísta ou cristão; pertencer a uma dada nacionalidade é muito satisfatório. Eu mesmo, interiormente, sinto-me muito insignificante. Não sou ninguém, e, assim, se posso chamar-me "alguém", sinto satisfação. Esta é uma forma de dependência, num nível muito superficial, talvez, mas que gera o veneno do nacionalismo. E há muitas outras formas, mais profundas. Pois bem, posso transcender tudo isso, de modo que minha mente nunca mais dependa, psicologicamente, não tenha dependência de espécie alguma e não busque nenhuma forma de segurança? Ela não buscará a segurança se compreendo esse senso de "exclusão", de que estou apercebido, e a que chamo "solidão" — esse mecanismo egocêntrico de pensar, que gera o isolamento.

O problema, pois, não é de como nos tornarmos desapegados, de como libertar-nos de pessoas ou ideias, mas, sim: pode a mente deter esse mecanismo em que ela se fecha a si mesma por meio de suas próprias atividades, suas próprias exigências, seus anseios? Enquanto houver a ideia de "mim", "eu", tem de haver solidão. Atingimos a própria essência do processo de autoenclausuramento quando descobrimos esse extraordinário sentimento de solidão. Posso "queimar" tal mecanismo, de modo que a mente nunca mais busque nenhuma forma de segurança, e não tenha mais exigências? Isso não pode ser respondido por mim, mas por cada um de vós. O que posso fazer é só descrever; mas a descrição se torna simplesmente um obstáculo se não for realmente experimentada. Mas, se esta descrição vos revela o mecanismo do vosso pensar, então ela própria é um percebimento de vosso próprio estado. E, nesse caso, posso permanecer nesse estado? Posso deixar de movimentar-me para longe do fato da solidão, e permanecer "lá", sem fugir de maneira nenhuma, sem evitá-la nunca? Ao perceber, compreender que o problema não é a dependência, mas a solidão, pode a minha mente permanecer imóvel nesse estado a que chama "solidão"? Isto é dificílimo, porque a mente nunca pode "ficar" com um fato; ela sempre o traduz, ou o interpreta, ou faz alguma coisa com relação ao fato; nunca "fica" com o fato.

Se a mente puder permanecer com o fato, sem dar nenhuma opinião a respeito dele, sem traduzi-lo, sem condená-lo, sem evitá-lo, é o fato então diferente da mente? Existe separação entre o fato e a mente, ou a própria mente é o fato? Por exemplo, eu estou solitário. Estou apercebido disso, sei o que significa: é um dos problemas de nossa existência diária, de toda a nossa existência. E quero estudar, por mim mesmo, esta questão da dependência, para ver se a mente pode ficar livre, não apenas especulativa, teórica, ou filosoficamente, mas livre, efetivamente, da dependência. Porque, se meu amor depende de outra pessoa, não tenho amor. E desejo descobrir que estado é esse a que chamamos "amor". Ao tentar descobri-lo, é possível que desapareça completamente a disposição para a dependência, para a segurança, nas relações, que desapareça toda exigência, todo desejo de permanência; e posso então ver-me em presença de um fato completamente diferente. E, assim, pelo investigar, pelo examinar a mim mesmo, posso chegar àquela coisa a que chamo "solidão". Agora, posso "ficar" com ela? Com "ficar", quero dizer: não interpretá-la, não avaliá-la, não condená-la, mas só observar o estado de solidão, sem nenhum movimento de recuo. E se minha mente é capaz de "ficar" com esse estado, esse estado é então diferente da minha mente? É possível que a minha mente esteja, ela própria, solitária, vazia, e que não haja um estado de vazio, que a mente observa. Minha mente observa a solidão, e a evita, foge dela. Mas, se não fujo à solidão, há então divisão, há separação, há um observador que observa a solidão? Ou só há um estado de solidão — a minha mente vazia, solitária, e não um observador que sabe que há solidão? Acho importante compreender isso, rapidamente, sem muita "verbalização". Digo, agora: "Sou invejoso e quero livrar-me da inveja" — temos assim um observador e uma coisa observada; o observador quer livrar-se daquilo a que observa. Mas o observador não é a mesma coisa que aquilo que está sendo observado? Foi a própria mente que criou a inveja, e portanto a mente nada pode fazer com relação a inveja. A minha mente, pois, observa a solidão; o pensador está apercebido de achar-se solitário. Mas, se ele "ficar com isso", em pleno contato com "isso" — quer dizer, não fugir da coisa, não a traduzir, etc. —, há então alguma diferença entre o observador e aquilo que está sendo observado? Ou só há um estado único, que é: a própria mente está solitária, vazia? Isto não quer dizer que a mente se observa como estando vazia, mas, sim, que ela própria é vazia.

Pode então a mente, percebendo que ela própria é vazia e que toda tentativa, todo movimento para afastar-se desse vazio, é meramente uma fuga, uma dependência, pode a mente apartar de si toda dependência, e ser o que ela é — vazia, solitária, completamente? E nesse estado, não está a mente livre de toda dependência, todo apego? Notai, por favor, que isto é uma coisa que tem de ser investigada, e não aceita só porque eu o estou dizendo. Nenhuma significação tem ela se meramente a aceitais. Mas, se estais experimentando a coisa enquanto vamos caminhando, vereis que todo movimento por parte da mente — sendo movimento: avaliação, condenação, tradução, etc. —, que todo movimento é uma distração que nos afasta do fato de o que é e cria conflito entre a mente e a coisa observada. Isto, para irmos mais longe, é realmente uma questão de saber se a mente pode existir sem esforço, sem dualidade, sem conflito, e ser, portanto, livre. No momento em que a mente se vê envolvida em conflito, ela não é livre. Quando não há esforço para ser livre, há liberdade. Pode, pois, a mente existir sem esforço e, por conseguinte, ser livre?

Krishnamurti, Quinta Conferência em Londres, 25 de junho de 1955

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Observando o mecanismo do apego

Observando o mecanismo do apego

PERGUNTA: Sou muito "apegado", e sinto ser muito importante cultivar o desapego. Como alcançarei esse sentimento de liberdade do apego?

Krishnamurti: Nosso problema é o desapego? Ou será o apego? Ser "apegado" causa sofrimentos, e, por conseguinte, desejamos tornar-nos desapegados. Se pudermos considerar o inteiro mecanismo do apego, não superficialmente apenas, mas compreendendo o seu verdadeiro significado, penetrando-o até o fundo, então é bem possível que se apresente algo muito diferente daquilo que chamamos "desapego". Porque somos tão apegados a alguma coisa: nossos haveres, pessoas, ideias, crenças? Bem sabeis quantas formas de apego existem e a quantas coisas vivemos apegados. Porque somos tão apegados? Não há um sentimento de temor se não estamos apegados a alguma coisa, se não estou apegado a meu amigo, a uma ideia, uma experiência já acabada, um filho, irmão, mãe, uma esposa morta? Não nos consideramos desleais, desamorosos, se não somos apegados? E não há também, em nosso apego, um medo estranho de não sermos alguma coisa? O problema é este, e não como cultivar o desapego. Se cultivo o desapego, este próprio cultivo se torna um problema.

Vede, por favor: eu sou apegado; meu apego resulta de temor, de variadas formas de solidão, de vazio etc. Estou cônscio disso e conheço as penas que o apego me impõe; consequentemente procuro cultivar o desapego. E assim a minha mente se mantém ocupada com o desapego e sobre como alcançar tal estado; e esse mecanismo mesmo se torna um problema, não é verdade? Desejo conquistar o desapego e, assim, a mente, ocupando-se com o resultado, com uma ideia chamada "desapego", cria o problema da consecução do "desapego"; nasce então o conflito — sou apegado e devo ser desapegado —, e esse conflito gera sofrimento. E vem daí uma luta constante para se alcançar certo estado isento de sofrimento e de temores. Mas, se sou capaz de encarar o apego, estar apercebido dele, sem perguntar como libertar-me da penosa luta para compreender tudo o que o apego implica, se sou capaz de estar simplesmente apercebido dele, como se está apercebido do céu — vendo-o nublado ou escuro, carregado de chuva ou todo azul —, não há então problema algum e a mente não está mais ocupada com a questão do apego ou com seu oposto, o desapego.

Quando a mente está assim vigilante, apercebida, pode então perceber o inteiro significado do apego. Mas não se pode discernir todo o significado interior do apego se há qualquer forma de condenação, comparação, julgamento, avaliação. Se "experimentardes" o que estou dizendo, vereis claramente a sua significação. O mero cultivar do desapego torna-se uma coisa por demais superficial. Suponhamos que fiqueis desapegados — e daí? Mas, quando há percebimento, pode-se ver que onde há apego não há amor; onde há apego, há desejo de permanência, de segurança, de continuidade pessoal — o que não significa que devamos aspirar à autodestruição. E, percebendo-se isso, o problema do apego se torna extraordinariamente significativo e amplo. Se nos limitamos a fugir do apego, por causar-nos tanto sofrimento, essa fuga só pode levar-nos a um amor superficial, um pensar superficial. E a maioria dos que estamos praticando a virtude — a virtude do desapego, da não avidez, da não violência — levamos na realidade uma vida superficial, vida de ideias, de palavras. Se estamos bem apercebidos do problema do apego, em todos os seus aspectos, começaremos a descobrir as suas extraordinárias profundezas, o quanto a mente está apegada à experiência de ontem, com a dor ou o prazer que a acompanharam, o quanto está presa a essa experiência. Não será possível ficarmos livres da experiência, tanto de prazer como de dor, enquanto não estivermos verdadeiramente vigilantes. Nessa vigilância ou percebimento, em que não há escolha nem reação alguma, a mente pode descer a grandes profundidades. A mera prática de qualquer virtude só pode conduzir à respeitabilidade, que é o que a maioria das pessoas deseja, pois a respeitabilidade identifica-nos com a sociedade. Todos desejamos ser reconhecidos como "algo", grande ou pequeno, isto ou aquilo; e a esta ideia temos apego. Podemos desejar desapegar-nos de pessoas, porque tal apego nos causa dor, ao passo que a ideia a que estamos apegados não nos é dolorosa. Mas, para compreendermos verdadeiramente o problema do apego — apego à tradição, à nacionalidade, aos costumes, ao hábito, ao conhecimento, à opinião, a um Salvador, a toda sorte de crenças e não crenças —, não devemos contentar-nos com arranhar a superfície, nem pensar termos compreendido o problema do apego pelo fato de estarmos cultivando o desapego. Mas se, ao contrário, não procurarmos cultivar o desapego — cultivo que apenas se torna mais um problema —, se pudermos simplesmente observar, com toda a clareza, o apego, seremos então, talvez, capazes de descer a uma grande profundidade e descobrir algo completamente diferente, algo que não é apego nem desapego.

Krishnamurti, Primeira Conferência em Londres
17 de junho de 1955

Como quebrar o mecanismo de dependência?


Como quebrar o mecanismo de dependência?

PERGUNTA: Quando pela primeira vez vos ouvi falar e me entrevistei convosco, senti-me profundamente perturbado. Comecei então a observar os meus pensamentos, sem condenar ou comparar, etc., e, em certa medida, cheguei a apreender o sentido do silêncio. Algumas semanas após, tive nova entrevista convosco e recebi novo choque, pois me fizestes ver claramente que minha mente de modo nenhum estava desperta, e perceber que eu me tornara um tanto vaidoso com os resultados conseguidos. Porque é que a mente tende a estabilizar-se depois de cada choque, e como quebrar esse mecanismo?

KRISHNAMURTI: Social, religiosa e pessoalmente, nosso empenho constante é de evitar qualquer espécie de mudança, não é verdade? Desejamos que as coisas continuem como estão, pois a mente não gosta de ser perturbada. Logo que alcança uma coisa, aí se estabiliza. Mas a vida é um mecanismo de “provocação” e reação, e se não soubermos responder à provocação de maneira adequada, haverá conflito. Para evitarmos esse conflito, estabilizamo-nos em confortáveis rotinas, onde nos deixamos deteriorar. Isto é um fato psicológico.

Isto é, a vida é “provocação”, desafio, tudo na vida está a exigir reação, mas, porque tendes vossas limitações, vossas preocupações, vosso condicionamento, vossas crenças, vossos ideais, que vos ditam o que deveis e o que não deveis fazer, sois incapazes de responder adequadamente ao desafio da vida; por esta razão, existe conflito. Para evitar ou dominar este conflito, vos deixais estabilizar, fazendo algo que vos dá conforto. A mente busca sem cessar um estado totalmente livre de perturbações, a que chama Paz, Deus, ou outro nome qualquer; mas, em essência, o seu desejo é não ser perturbada. O estado de não-perturbação, que chamamos Paz, é, realmente, morte. Mas se, por outro lado, compreenderdes que a mente precisa achar-se, de contínuo, num estado de reação e portanto sem desejo de conforto, de segurança, de amarras, de ancoradouro, de refúgio na crença, nas ideias, nas posses etc., vereis então que não necessitais de choque algum. Não existe mais esse mecanismo de sermos despertados por um choque, só para novamente nos deitarmos a dormir.

Vemos aqui surgir uma questão importantíssima. Pensamos ter necessidade de instrutores, de gurus, de guias, para sermos ajudados a conservar-nos despertos. E esta é provavelmente a razão da presença, aqui, da maioria de vós: Desejais que um outro vos ajude a manter-vos despertos. Se alguém pode ajudar-vos a ficar desperto, ficais na dependência dessa pessoa, que se torna vosso instrutor, vosso guia, vosso líder. Ela poderá estar desperta — não sei — mas se estais dependendo dela, estais dormindo. (Risos) Por favor, não riais, porque o caso é sério; pois é isso mesmo o que todos nós fazemos na vida. Se não estamos dependendo de um guia, dependemos de um grupo, dos nossos filhos, dum livro, ou dum disco de gramofone.

Assim sendo, há possibilidade de nos mantermos despertos, livres de toda dependência, — dependência de drogas, de gurus, de disciplinas, de imagens, de qualquer coisa, enfim? Quando experimentais isso, podeis cometer algum erro, mas dizeis “Não importa, quero continuar desperto”. Entretanto, isso é dificílimo, já que dependemos tanto dos outros! Precisamos de ser estimulados por um amigo, um livro, música, ritos, pelo frequentar com regularidade certas reuniões; e tal estímulo poderá manter-vos desperto, temporariamente. Mas, tanto vale tomar um copo de bebida. Quanto mais uma pessoa depende de estímulos, tanto mais embotada se torna a sua mente, e a mente que está embotada precisa de ser guiada, precisa seguir, precisa de uma autoridade, porque do contrário ficará desorientada. Se percebemos esse extraordinário fenômeno psicoló­gico, não será possível ficarmos livres, interiormente, de qualquer espécie de dependência, de qualquer estímulo a nos mantermos despertos? Por outras palavras, a mente não será capaz de nunca se escravizar a um hábito? Isso, com efeito, significa, abandonar tudo o que temos compreendido, tudo o que temos aprendido, abandonar todas as coisas que acumulamos de ontem para hoje, para que a mente possa, mais uma vez, ser fresca, nova. A mente não é nova, se não morrer para todas as coisas de ontem, todas as experiências, invejas, ressentimentos, amores, paixões, pois só assim ela poderá de novo ser fresca, ardorosa, desperta e, portanto, capaz de atenção. Não há dúvida de que, só quando está livre de todo sentimento de dependência interior, a mente poderá encontrar-se com o Imensurável.

Krishnamurti, 20 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill