Se você se sente grato por este conteúdo e quiser materializar essa gratidão, em vista de manter a continuidade do mesmo, apoie-nos: https://apoia.se/outsider - informações: outsider44@outlook.com - Visite> Blog: https://observacaopassiva.blogspot.com

Mostrando postagens com marcador beleza. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador beleza. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Alcançando o sentimento da inteireza e da beleza

Alcançando o sentimento da inteireza e da beleza

Esta é a última palestra desta série de reuniões, em que estivemos considerando a atitude ou ação que se torna necessária para se enfrentar o desafio de um mundo tão completamente confuso e destrutivo como este. Nota-se em toda a parte um processo de destruição, degeneração, não apenas na sociedade, mas ainda no indivíduo. A onda de deterioração parece estar sempre a alcançar-nos e arrastamos. Há divisões entre as pessoas, tanto no domínio econômico, como também no racial e religioso. No Oriente, nota-se sofrimento e esqualidez, isso no campo físico, emocional e psicológico. Há tensão, conflito, confusão, por toda a parte.

Considerando-se tudo isto, parece-me necessária uma mente totalmente nova; não mente “recondicionada”, não mente “banhada” pelos comunistas, pelos capitalistas, pelos cristãos ou hinduístas e, sim, uma mente nova. E estivemos considerando como fazer nascer essa mente nova.

Estudamos a questão praticamente de todos os pontos de vista, interior e exterior, e vimos que, quanto mais tentamos modificar a mente exteriormente, pela propaganda, como o está fazendo a maioria das religiões, ou mediante pressão econômica ou social — tanto mais a mente fica condicionada, tanto mais superficial, vazia, embotada e insensível se torna. É bastante óbvio, parece-me, a qualquer um que já observou estas coisas, que a mente condicionada, consciente ou inconscientemente, a mente que está sendo influenciada, ainda que muito sutilmente, é incapaz de atender aos numerosos problemas que surgem na moderna civilização.

Interiormente, psicologicamente, somos em geral muito vulgares, limitados, sob o peso de nossa ilustração e saber. E temos tantos problemas — problemas de relação, problemas que surgem em nossa vida de cada dia — o que se deve fazer e o que se não deve fazer, o que se deve crer e o que se não deve crer — interminável busca de conforto, segurança e de um meio de fuga ao sofrimento — temos tantos problemas que, se os víssemos todos, em conjunto, poderíamos perder as esperanças. Assim, evidentemente, o que se torna necessário, o desejável e essencial é uma mente nova; porque, em verdade, tudo o que tocamos faz surgir um novo problema.

Assim, como dissemos na última reunião, é necessária uma mente religiosa. E, sem dúvida, a mente religiosa é aquela que se depurou de todas as crenças e de todos os dogmas; esta mente é capaz de um percebimento, uma compreensão interior que dá uma certa tranquilidade, serenidade. E, quando a mente está interiormente tranquila, há intenso percebimento de tudo o que se passa fora dela. Isto porque, compreendendo todos os conflitos, frustrações, perturbações, agitações e sofrimentos interiores, ela está serena e, por conseguinte, exteriormente ela se torna intensamente ativa, com todos os sentidos bem despertos, capaz, portanto, de observar sem nada desfigurar, de seguir cada fato de maneira não tendenciosa.

A mente religiosa, pois, não só é capaz de observar as coisas externas com clareza, lógica e precisão, mas também, graças ao autoconhecimento, ela se tornou interiormente tranquila, de uma tranquilidade que tem seu movimento próprio. E dissemos que essa mente religiosa se acha, por conseguinte, num estado de revolução constante. Não estamos interessados em nenhuma espécie de revolução parcial, nenhuma revolução comunista, socialista ou capitalista. Os capitalistas, em geral, não desejam revolução alguma, mas os outros a desejam; e a revolução deles é sempre de natureza parcial — econômica, etc. Mas a mente religiosa promove a revolução total, não só interiormente, mas também exteriormente; e, no meu sentir, só a revolução religiosa, e nenhuma outra, pode resolver os múltiplos problemas da humana existência.

E que pode fazer essa mente? Que podemos fazer, vós e eu, como dois indivíduos, neste mundo monstruoso e insano? Não sei se já pensastes nisto, alguma vez. Que pode fazer uma mente religiosa?

Já explicamos com muita clareza que a mente religiosa não é a mente cristã, hinduísta ou budista, ou pertencente a alguma seita extravagante ou sociedade com fantásticas crenças e ideias; a mente religiosa é aquela que, tendo percebido interiormente sua própria validade, a verdade de suas percepções, sem desfiguração, é capaz de resolver lógica, racional e sãmente os problemas que surgem, não permitindo que nenhum deles crie raízes. Desde que deixamos um problema lançar raízes na mente, existe conflito; e onde há conflito, está presente o “mecanismo” de deterioração, não só exteriormente, no mundo objetivo, mas também interiormente, no mundo das ideias, dos sentimentos, das afeições.

Que pode, então, fazer a mente religiosa? Provavelmente muito pouco. Porque o mundo, a sociedade é constituída de indivíduos ambiciosos, ávidos, “aquisitivos”, facilmente influenciáveis e que desejam pertencer a alguma coisa, crer em alguma coisa, filiando-se a certas correntes de pensamento e padrões de ação. Essas pessoas não podem ser modificadas senão pela influência, a propaganda, o oferecimento de novas formas de condicionamento. Mas a mente religiosa lhes diz que se despojem, interiormente, de tudo. Porque é só em liberdade que se pode descobrir o que é verdadeiro e se existe a Verdade, Deus. A mente que crê nunca descobrirá o que é verdadeiro ou se existe Deus; só a mente livre pode descobri-lo. E para sermos livres, temos de penetrar todas as servidões que a mente a si mesma impôs. Isto é dificílimo, pois requer muita penetração, exterior e interiormente.

Quase todos, sabemo-lo, andamos às voltas com o sofrimento. Sofremos de uma ou de outra maneira, física, intelectual, ou interiormente. Somos torturados e nos torturamos a nós mesmos. Conhecemos o desespero, e a esperança, e o medo sob todos os seus aspectos; e nesse vórtice de conflito e contradições, preenchimentos e frustrações, ciúmes e ódio, debate-se a mente. Aprisionada que está, sofre, e todos sabemos que sofrimentos são estes: o sofrimento ocasionado pela morte, o sofrimento da mente insensível, o sofrimento da mente muito racional e intelectual, que conhece o desespero, porque reduziu tudo a pedaços e nada mais lhe resta. A mente sofredora faz nascer várias filosofias do desespero; busca refúgio através de numerosas vias de esperança, confiança, conforto, através do patriotismo, da política, das argumentações verbais, das opiniões. E para a mente sofredora existe sempre uma igreja, uma religião organizada pronta a acolhê-la e torná-la mais embotada ainda, com suas promessas de consolo.

Conhecemos tudo isso; e quanto mais refletimos, tanto mais intensa a mente se torna e nenhuma saída se encontra. Fisicamente, é possível fazer algo contra o sofrimento, tomar uma pílula, procurar o médico, alimentar-se melhor, mas aparentemente nenhuma saída existe senão pela fuga. Mas a fuga torna a mente muito embotada. Ela poderá ser penetrante em seus argumentos, em suas defesas; mas a mente em fuga está sempre temerosa, porque precisa proteger a coisa em que se refugiou, e, evidentemente, tudo aquilo que protegemos, que possuímos, faz nascer o medo.

E, assim, o sofrimento continua; conscientemente, talvez, possamos afastá-lo, mas interiormente ele continua existente, corrompendo, putrefazendo. Mas podemos ficar livre dele, totalmente, completamente? Esta me parece a pergunta correta que se deve fazer; porque, se perguntamos “Como ficar livre do sofrimento?”, então, o “como” cria o “padrão do que se deve fazer e do que não se deve fazer”, e isso significa seguir por uma via de fuga, em vez de enfrentar o problema, a causa-efeito do próprio sofrimento. Assim, antes de começarmos a discutir, gostaria de investigar esta questão.

O sofrimento perverte e deforma a mente. O sofrimento não é o caminho da Verdade, da Realidade, de Deus (ou como quiserdes chamá-lo). Temos tentado enobrecê-lo, dizendo-o inevitável, necessário, alegando que traz a compreensão, etc. Mas a verdade é que, quanto mais intensamente uma pessoa sofre, tanto mais ansiosa se torna de fugir, de criar uma ilusão, de encontrar uma saída. Parece-me, pois, que a mente sã, saudável, deve compreender o sofrimento e ficar completamente livre dele. E isso é possível?

Ora, como compreender por inteiro o sofrimento? Não Estamos tratando de uma única qualidade de sofrimento por que acaso estejais passando ou eu esteja passando; existem, como sabeis, muitas variedades de sofrimento. Mas estamos falando sobre o penar em geral, estamos falando da totalidade da coisa; e como compreender ou sentir o todo? Espero me esteja fazendo claro. Através da parte nunca é possível sentir o todo; mas, se se compreende o todo, a parte pode então ajustar-se nele e tornar-se, assim, significativa.

Ora, como se sente o todo? Entendeis o que quero dizer? Sentir, não apenas como inglês, mas sentir a totalidade da humanidade; sentir não apenas a beleza das paisagens da Inglaterra, que são realmente belas, porém a beleza de toda a Terra; sentir o amor total — não apenas o amor por minha mulher e meus filhos, mas o sentimento total de amor; conhecer o sentimento total da beleza, não da beleza de um quadro pendente da parede, ou de um sorriso num rosto belo, ou de uma flor, de um poema, porém aquele sentimento de beleza que transcende todos os sentidos, todas as palavras, toda expressão. Como sentir assim?

Não sei se alguma vez já vos fizestes esta pergunta. Porque, vede, satisfazemo-nos tão facilmente com um quadro na parede, com nosso jardim particular, uma árvore que num campo nos atrai a atenção. E como alcançar esse sentimento da inteireza da Terra e do céu, e da beleza da humanidade? Percebeis o que quero dizer — o sentimento profundo disso?

Prosseguirei examinando este tópico, se desejais seguir-me, mas deixemo-lo de parte, por enquanto. Deixemos a questão em “fervura”, em ebulição, e entremos numa diferente ordem de considerações.

A mente que está em conflito, em batalha, em guerra, interiormente, se torna embotada; não é uma mente sensível. Ora, que é que torna a mente sensível, não apenas para uma ou outra coisa, porém sensível como um todo? Quando é ela sensível não apenas para o belo, mas também para o feio, para tudo? Só o é, por certo, quando não há conflito; isto é, quando a mente está tranquila interiormente e, por conseguinte, é capaz de observar todas as coisas exteriores com a totalidade dos seus sentidos. Ora, que é que gera o conflito? E existe conflito não apenas na mente consciente, exterior — a mente que está sumamente apercebida de seus raciocínios, seus conhecimentos, sua proficiência técnica, etc. — mas também a mente interior, inconsciente, a qual, provavelmente se acha no “ponto de fervura” a todas as horas. Que é pois, que cria o conflito? Por favor, não respondais, porquanto a mera análise mental ou investigação psicológica não resolve o problema. O exame verbal pode mostrar intelectualmente as causas do sofrimento, mas nós estamos falando sobre o “estar de todo livre do sofrimento”. Cabe-nos, pois, experimentar ao mesmo tempo que falamos, sem nos deixarmos ficar no nível verbal.

O que cria o conflito é, obviamente, o “puxão” em diferentes direções. O homem que se deixou comprometer completamente com alguma coisa é, em geral, insano, desequilibrado; para ele não há conflito: ele é essa coisa. O homem que crê inteiramente numa dada coisa, sem duvidar, sem interrogar, que se identificou completamente com aquilo que crê — esse homem não tem conflito nem problema. Tal é mais ou menos o estado de uma mente doente. E a maioria de nós gostaria muito de identificar-se, de “comprometer-se” com alguma coisa de tal maneira que não houvesse mais problema algum. Em geral, por não termos compreendido o processo do conflito, só desejamos evitar o conflito. Mas, como já assinalamos, o evitar só produz mais sofrimentos.

Assim, percebendo tudo isso, faço a mim mesmo e, portanto, também a vós, esta pergunta: Que cria o conflito? E conflito implica não só desejos contraditórios, vontades, temores e esperanças contraditórias, mas tudo quanto é contradição. Ora, por que existe contradição? Espero estejais escutando, através de minhas palavras, a vossas mentes e corações. Espero vos estejais servindo de minhas palavras como um portal através do qual estais observando, escutando a vós mesmos.

Uma das causas principais do conflito é a existência de um centro, um ego, “eu”, resíduo de todas as lembranças, todas as experiências, todos os conhecimentos. E esse centro está sempre tratando de ajustar-se ao presente ou de absorvê-lo: sendo o presente o hoje, cada momento de nosso viver, que envolve sempre desafio e reação. Está sempre a traduzir tudo o que encontra nos termos daquilo que já conhece. O que ele já conhece é todo o conteúdo de milhares de dias pretéritos, e com esse resíduo procura enfrentar o presente. Por conseguinte, ele modifica o presente, e nessa própria atividade modificadora alterou o presente, criando assim o futuro. E nesse mecanismo do passado que traduz o presente e cria o futuro, se acha aprisionado o “eu”, o ego. E nós somos isso.

Assim, a fonte do conflito é o “experimentador” e a coisa que está “experimentando”. Não é assim? Quando dizeis “amo-vos” ou “odeio-vos”, existe sempre esta separação entre vós e aquilo que amais ou odiais. Enquanto houver separação entre pensador e pensamento, experimentador e coisa experimentada, observador e coisa observada, tem de haver conflito. Divisão é contradição. Ora, pode-se anular esta divisão ou separação, de modo que sejais o que vedes, sejais o que sentis?

Importa compreender, primeiramente, que enquanto há divisão entre pensador e pensamento, tem de haver conflito, porque o pensador está sempre tentando fazer alguma coisa em relação ao pensamento, procurando alterá-lo, modificá-lo, controlá-lo, dominá-lo, tentando tornar-se bom, não ser mau, etc. Enquanto perdurar a divisão geradora de conflito, tem de haver esta agitação da existências humana, não só internamente, mas também externamente.

Ora, existe pensador separado do pensamento? Está clara esta pergunta? O pensador é uma entidade separada, algo distinto, algo permanente, separado do pensamento? Ou existe só pensamento, o qual cria o pensador, porque assim poderá dar-lhe (ao pensador) permanência? Entendeis? O pensamento é impermanente, acha-se num constante fluir, e a mente não gosta desse estado de fluidez. Deseja criar algo permanente, em que possa ficar em segurança. Mas, se não há pensamento, não há pensador, há? Não sei se já alguma vez experimentastes isto, se já seguistes esta ordem de reflexões, ou investigastes inteiramente o mecanismo do pensar e quem é o pensador. O pensamento declarou que o pensador é supremo, que existe a alma, o “eu superior”, conferindo assim ao pensador existência permanente — mas tudo isso continua a ser resultado do pensamento.

Assim, se observamos este fato, se o percebemos realmente, vê-se então que não há centro.

Notai, por favor, que isto pode ser muito simples de declarar, verbalmente; mas penetrar o fato, vê-lo, experimentá-lo, isto é muito difícil. No meu sentir, a fonte do conflito é esta separação entre o pensador e o pensamento. Esta separação cria conflito; e a mente em conflito não pode viver, no mais elevado sentido desta palavra: não pode viver totalmente.

Não sei se já notastes alguma vez que, quando tendes um sentimento muito forte, seja do belo, seja do feio, provocado do exterior ou despertado interiormente, nesse estado imediato de intenso sentir não existe, momentaneamente, observador, nem divisão. O observador só se apresenta quando o sentimento se atenuou. Entra então em ação todo o mecanismo da memória: Dizemos: “Devo repetir este estado” ou “ devo evitá-lo” — e tem início o mecanismo do conflito. Podemos ver a verdade aí? E que entendemos por ver? Como vedes a pessoa que está sentada aqui, neste tablado? Não a vedes apenas visualmente, mas também intelectualmente; estais vendo a pessoa com vossa memória, vossas simpatias e antipatias, vossas diferentes formas de condicionamento; e, por conseguinte, não estais vendo, não é verdade? Quando vedes alguma coisa realmente, vós a vedes sem nada daquilo (condicionamento, simpatias, antipatias, etc.) É possível olharmos para uma flor sem lhe dizermos o nome, sem “colar-lhe” uma etiqueta: olhá-la, simplesmente? E não é possível, ao ouvirdes algo grato aos ouvidos — não apenas música organizada, mas o canto de uma ave na floresta, etc. — escutá-lo com todo o vosso ser? E pode-se, pela mesma maneira, perceber realmente um coisa? Porque, se a mente é capaz de perceber, de sentir realmente, então só há experimentar e não existe experimentador; pode-se então ver que o conflito, com todas as suas angústias, esperanças, defesas, etc., termina.

Quando se percebe a verdade integral de uma coisa; ao vermos a verdade de que o conflito só pode cessar quando não há divisão entre o observador e a coisa observada; quando se experimenta realmente este estado, sem nos socorrermos da memória nem dos dias passados, então está terminado o conflito. Então seguis fatos e não estais tolhido pela divisão que a mente faz entre o observador e o fato.

O fato é: sou estúpido, estou cansado, preso à monótona rotina da existência diária. Isto é um fato, mas não gosto dele; por isso, há divisão. Detesto o que estou fazendo, e põe-se, assim, em movimento o mecanismo do conflito, com todas as defesas e fugas e sofrimentos que ocasiona. Mas o fato é que minha vida é feia, superficial, vazia, cruel, escrava dos hábitos.

Ora, se a mente não criar esse senso de divisão e, por conseguinte, conflito, pode então seguir simplesmente o fato; seguir toda a rotina, todos os hábitos; seguir tudo, sem procurar alterar nada? Isto é percepção, no sentido em que estamos empregando a palavra. E vereis que o fato nunca é estático, nunca se acha imóvel. É uma coisa que se move, uma coisa viva; mas a mente preferiria torná-lo estático e daí é que vem o conflito. Eu vos amo, desejo apegar-me a vós, possuir-vos; mas vós sois uma coisa viva, que se modifica, com existência própria; por isso, existe conflito e todos os sofrimentos dele decorrentes. E pode a mente ver o fato e segui-lo? Isso, em verdade, significa uma mente muito ativa, muito viva, muito intensa, exteriormente, e ao mesmo tempo muito tranquila interiormente. A mente que no interior não está de todo quieta não pode seguir um fato, pois este é muito rápido. Só a mente interiormente tranquila é capaz desse “processo”, capaz de seguir continuamente cada fato que se apresenta, sem dizer que o fato devia ser “deste jeito” ou “daquele jeito”, sem criar separação, conflito, sofrimento: só essa mente pode cortar todas as raízes do sofrimento.

Podeis ver, então, se alcançastes este ponto — não no espaço e no tempo, mas na compreensão — que a mente entra num estado em que se vê completamente só.

Como sabeis, para a maioria de nós “estar só” é uma coisa terrível. Não me refiro aqui à solidão, que é coisa diferente. Refiro-me ao “estar só”: estar só com alguém ou com o mundo: estar só com um fato. Só, no sentido de que a mente não está sujeita a influências, já não se acha presa ao passado, nem tem futuro, nem busca, nem teme: está só. O que é puro está só; a mente que está só conhece o amor, porque já não se enreda nos problemas do conflito, do sofrimento e do preenchimento. Só essa mente é uma mente nova, uma mente religiosa. E, talvez, só ela pode curar as feridas deste mundo caótico.

Krishnamurti, Londres, 28 de maio de 1961, O Passo Decisivo


sábado, 24 de março de 2018

O objeto, o conhecimento e a percepção


O OBJETO, O CONHECIMENTO E A PERCEPÇÃO

Interlocutor A: Penso que deveríamos investigar o problema da percepção e da beleza. Outro dia você disse que a tradição havia ignorado o campo da beleza. Nós temos necessidade de explorar isso.

KRISHNAMURTI: Qual é então o problema? O que é a beleza? Você entende em primeiro lugar a percepção, e depois a beleza? Certamente, não se trata de percepção e beleza, senão de percepção. Qual seria o modo tradicional de se abordar isto?

R: Uma fonte tradicional sustenta que a beleza é o sentimento de felicidade que advém quando se termina o desejo ou a sede de experiências.

KRISHNAMURTI:  Isto é uma teoria ou uma realidade?

R: Quem escreveu isso expressou o que sentia; depois de tudo, faz muito tempo que o escreveu e só restaram fragmentos de seus escritos.

A: Kalidasa disse que a experiência da beleza é nova a cada instante.

R: Tanto na Índia como na Grécia existia este sentimento de que as percepções essenciais são as percepções da verdade, bondade e beleza.

KRISHNAMURTI: Estamos considerando a beleza ou a percepção? Vamos discutir a percepção. Qual é o enfoque tradicional com relação à percepção?

R: Fala-se disso extensamente, e existem muitos pontos de vista contraditórios.

A: A percepção é “pratyaksham”; perceber é ver a natureza mesma das coisas, sua qualidade essencial.

KRISHNAMURTI: Ver a natureza das coisas é percepção, não é assim? Não falo do que se vê senão do ato de ver. Eles falam do ato de ver, e não do que é visto?

R: Eles falam do que é conhecimento válido e do que não é conhecimento válido.

KRISHNAMURTI: Uma coisa é ver e outra coisa é ver algo. De qual vocês estão falando? De ver per si, ou de ver algo?

A: Penso que falamos de ver. Eles se ocupam do perigo constante que implica o ver erroneamente.

KRISHNAMURTI: Não. Nós não estamos falando de ver corretamente ou incorretamente, senão do que é a percepção; não do que você vê — a cadeira, a corda, a serpente.

A: Há diferença entre o ver e o conhecer?

KRISHNAMURTI: A fome é em si mesma, não está relacionada com a comida. Você come porque tem fome, mas a natureza da fome é a fome. O que é para você o ver, o perceber? Não ver o objeto, senão a qualidade da mente que percebe. Ver o objeto com os olhos é uma coisa, ver com o conhecimento é outra. Eu me refiro ao ver em si mesmo. Existe um ver sem o conhecimento, sem o objeto? Eu vejo esse aparador. O vê-lo é com a palavra e com o conhecimento, estando a palavra associada com o aparador. Há um ver sem a imagem, sem o objeto? O ver o objeto através do conhecimento, da imagem, do símbolo, da palavra; e um ver sim o conhecimento e a imagem, sem o objeto...

A: O que é ver sem o objeto? Pode-se sem o conhecimento. Como você disse, há um aparador sem a imagem, mas ainda sabemos que isso é um aparador, o qual significa que é um objeto.

KRISHNAMURTI: Há o pequeno arbusto, e veja-o ou não, crescerá e se converterá em uma árvore. Isso é independente de meu ver. Posso chamá-lo manga e, portanto, relacioná-lo com a espécie “manga”; e a manga se desenvolverá ainda quando eu não o veja.

R: A existência disso não tem relação alguma com o ver...

A: O objeto existe sem nosso ver, mas uma percepção assim, pode existir sem o objeto?

KRISHNAMURTI: Essa árvore continuará existindo.

A: Na meditação budista, eles têm se referido ao céu quando falam da percepção sem o objeto. O céu é um objeto sem dúvida, não é um objeto.

KRISHNAMURTI: O significado que o dicionário dá para “percepção” é: tornar-se consciente de, aprender. Ou seja, que quando você vê o aparador, tem um conceito prévio dele; isso não é percepção. Existe um ver sem o preconceber? Só uma mente que não tem conclusões prévias pode ver. A outra não. Se eu tenho um conhecimento prévio do aparador, a mente o identifica como aparador. Olhar esse aparador sem a prévia acumulação de preconceitos ou cicatrizes psicológicas, é olhar. Se tenho feridas prévias, recordações de dor, prazer, desgosto, não posso ter olhado.

Existe um olhar sem o objeto, sem o conhecimento do objeto? Certamente que existe. Você pode olhar essa árvore sem o conhecimento da árvore, sem a imagem, o símbolo, etc.? Simplesmente olhar.

Uma pessoa veio me ver. Era um diretor de cinema. Contou que havia tomado LSD e que suas reações haviam sido gravadas em cinta magnética. Uma vez ingerida a droga, sentou-se em uma cadeira a aguardar o efeito. Nada ocorreu. Esperou e se moveu um pouco de sua direção. Imediatamente o espaço entre ele e o objeto desapareceu. Antes, o observador tinha espaço entre ele e a coisa que observava — que era uma flor. No momento em que desapareceu o espaço, aquilo não era a flor, era algo extraordinário. Esse foi o efeito da droga. Mas aqui se trata de algo diferente; o observador é possuidor do conhecimento, e é o conhecimento o que reconhece o aparador. O que vê o objeto é o observador.

Vejam em primeiro lugar o que ocorre. O observador com seu conhecimento, reconhece o aparador. O reconhecimento implica um conhecimento prévio; portanto, o observador é o conhecimento como passado. Agora perguntamos: existe a percepção sem o observador, que é conhecimento, o que, por sua vez é passado? A percepção por si mesma, não por algo ou com relação a algo.

R: Se não há conhecimento do passado, não há observador. Se não há observador, não há conhecimento do passado.

KRISHNAMURTI: Portanto, é possível ver sem o observador. Estou dizendo “possível”. A possibilidade se torna uma teoria, de modo que não podemos tratar com teorias, senão ver que o observador é o resíduo do passado e que por isso não pode ver. Só pode fazê-lo através do filtro do passado, por conseguinte, seu ver é parcial. Se há de haver percepção, o observador deve estar ausente. Isso é possível?

R: O que ocorre com um artista? É óbvio que ele percebe com uma percepção que não é a percepção comum que nós temos.

KRISHNAMURTI: Espere um momento. A percepção é intelectual?

R: Não, o intelecto é o passado.

KRISHNAMURTI: Portanto, não se trata do ver de um artista ou de quem não é um artista, senão de ver sem o passado. Esse realmente é o problema. O artista pode ver por um momento sem o passado, mas ele traduz isso, o interpreta.

R: É uma percepção momentânea.

KRISHNAMURTI: Existe um ato de percepção sem o observador? Ato significa ação instantânea, não uma ação contínua. A mesma palavra “ato” quer dizer “fazendo”; não, “tenho feito” ou “farei”.

Por conseguinte, a percepção é uma ação, não em termos de conhecimento; não a ação do ator com seu conhecimento. De modo que os profissionais não estão interessados na ação, não é verdade? Eles se preocupam com o conhecimento e a ação, correto?

R: Não o sei. Há alguns textos nos quais se têm dito que a percepção da beleza tem lugar no momento em que não existe tempo, o nome, a forma e o espaço.

KRISHNAMURTI: Não estamos falando da beleza. A percepção implica ação. Eu conheço a ação que existe quando atua o observador. O observador, havendo aprendido uma linguagem ou uma técnica particular, havendo adquirido conhecimentos, atua.

A: Percepção, significa contato direto entre o órgão dos sentidos e o objeto?

R: Os tradicionalistas falam da percepção imediata e não imediata. A percepção imediata tem lugar através do instrumento, de um intermediário, enquanto que a percepção não imediata não requer do órgão sensorial para ver. Talvez a percepção não imediata esteja mais próxima daquilo ao qual você se refere.

KRISHNAMURTI: Você vê que a percepção que resulta do conhecimento e a ação, é uma ação do passado. Isso é uma coisa. E a ação da percepção é outra coisa diferente.

A: A percepção é ação em si mesma; portanto, aí não há a intervenção do tempo.

KRISHNAMURTI: Chega a seu fim o intervalo de tempo entre a ação e o conhecimento — o conhecimento como observador. Isso que é conhecimento-ação está preso ao tempo, enquanto que o outro não o está. De modo que isto é claro. Que é então, a beleza na relação com a percepção?

R: É o fim do desejo de experiência. Isso é o que dizem os tradicionalistas.

KRISHNAMURTI: A visão da bondade, da beleza, do amor, da verdade... Descarte tudo isso. O que é então a beleza? O que é necessário para a percepção da beleza?

R: Não se trata de mera percepção, porque a percepção pode ser com respeito a tudo, inclusive ao que não é belo.

KRISHNAMURTI: Não introduza o feio. Percepção é ação, perceber é atuar, atenha-se a isso. Estamos falando da beleza; você levantou o que dizem os profissionais. Bem, agora, o que é a beleza? Esqueçamos o que os outros têm dito. Eu quero averiguar o que é a beleza. Dissemos que esse edifício é belo, que esse poema é belo, que essa mulher é bela. A beleza é assim o sentimento de certa qualidade — tornando-se a expressão o meio para reconhecer a beleza. Vejo um edifício e digo: “que maravilhoso!” De modo que reconhecemos a beleza através do objeto.

Existem diversas expressões da beleza. Por meio do objeto reconhecemos o que é a beleza. Agora descarte isso. A beleza não é expressão. A beleza não é o objeto belo. Então, o que é beleza? Ela se encontra no espectador? O espectador é o observador. O observador com seu conhecimento passado, reconhece algo como belo porque sua cultura lhe tem dito que isso é belo, sua cultura o condicionou.

A: A mulher que dá prazer é bela, e quando não dá prazer deixa de ser bela.

KRISHNAMURTI: Eu descarto a expressão, descarto o objeto criado e descarto o percebedor que vê a beleza no objeto. Descarto todas essas coisas. Qual é então a qualidade da mente que as descartou? Tenho descartado tudo o que o homem tem dito a respeito da beleza, porque vejo que ela não está em nada do que se tem dito. O que ocorreu coma  mente que tenha descartado ao pensamento, ao pensamento que já tenha criado o objeto? Qual é a condição da mente que tenha descartado todas as estruturas erguidas pelo homem que tem dito que isto é belo, que isto não é belo?

É óbvio que a mente se tornou muito sensível, porque antes levava uma carga e agora está mais esclarecida. Portanto, é sensível, está alerta, desperta.

R: Você disse que descartou o objeto e o pensamento que tem criado o objeto.

A: O pensamento é conhecimento.

KRISHNAMURTI: O pensamento é conhecimento, o qual tem se acumulado através da cultura que diz que isto é a beleza. O pensamento é a resposta da memória que tem criado o objeto. Tenho descartado tudo isso, a ideia da beleza como verdade, bondade, amor. A percepção disso é ação e a ação mesma é o descartar; não o “eu descarto”, senão o descartar. Portanto, agora a mente é livre. A liberdade não implica a liberdade de algo, senão liberdade. O que ocorre então? A mente é livre, altamente sensível; já não está mais carregada com o passado, o que significa que nessa mente não há, absolutamente, observador, não há um “eu” que observa, porque o “eu” que observa é um assunto muito mas muito limitado. O “eu” é o observador, o “eu” é o passado. Veja o que temos feito. Há o objeto, o conhecimento e a percepção; mediante o conhecimento reconhecemos o objeto. E os fazemos a seguinte pergunta: existe a percepção sem o conhecimento, sem o observador? É assim que descartamos a ambos: o objeto e o conhecimento; no perceber está a ação do descartar. 

E de novo perguntamos: o que é a beleza? Geralmente a beleza está associada com o objeto, o objeto criado pelo pensamento, pelo sentir, o pensar; e descartamos isso. Então, pergunto-me qual é a condição da mente que o tenha descartado. Ela é realmente livre. A liberdade implica uma mente sensível em alto grau. Na ação de descartar, a mente produziu sua própria sensibilidade, e isso significa que nessa atividade não existe um centro. Portanto, é uma sensibilidade sem tempo, sem um centro como observador; isto implica um estado em que a mente é intensamente apaixonada.

R: Quando desaparece o objeto e o conhecimento do objeto, não existe um foco.

KRISHNAMURTI: Não use a palavra “foco”. A mente, ao descartar o que “não é”, é uma mente livre. O ato de perceber o que “não é” liberou a mente, que agora é livre. Não livre de, não está livre do objeto, senão que ela é livre.

A: O ato de perceber esse conhecimento e o ato de descartá-lo, são instantâneos e simultâneos.

KRISHNAMURTI: Isso é liberdade. O ato de perceber tem produzido liberdade, não liberdade de algo.   Quando a mente é sensível não há um centro, nela não há um “eu”; o que há é o total abandono de si mesmo como observador. Então a mente está cheia de energia porque já não está presa na divisão da dor e o prazer, origem do sofrimento. É intensamente apaixonada, e é uma mente assim que pode ver o belo.

Eu vejo algo: vejo que o sofrimento é uma atividade parcial da energia. Vejo que é uma energia fragmentária. A energia é prazer, a energia é dor; ir ao escritório, aprender, implica energia. Os seres humanos têm dividido esta energia em fragmentos. Para eles, tudo é uma parte, um fragmento dos vários outros fragmentos da energia. Quando não há atividade do fragmento, existe uma concentração completa de toda a energia.

Odeio a alguém e amo a alguém. Ambas as coisas são energia, energia fragmentaria atirando em direções opostas, o qual engendra conflito. O sofrimento é uma forma de energia, um fragmento ao qual damos esse nome. É assim que todos nossos modos de viver estão fragmentados. Cada um está em guerra com o outro. Se existe um todo harmônico, essa energia é a paixão. A mente que é livre, sensível, a mente na qual o “eu” como passado, dissolveu-se completamente, é uma mente cheia de energia e paixão. Portanto, isso é beleza.

Mádras, 11 de janeiro de 1971
Tradição e Revolução
_____________________________________

Beleza e Percepção


BELEZA E PERCEPÇÃO

Interlocutor P: Onde descansa a beleza? Onde reside? Evidentemente, as manifestações exteriores de beleza são observáveis; a correta relação entre espaço, forma e cor, e a correta relação entre os seres humanos. Mas, qual é a essência da beleza? Nos textos sânscritos se igualam três fatores: a Verdade, o Bem, a Beleza  Satyam, Sivam, Sundaram.

KRISHNAMURTI: O que você trata de investigar? Quer investigar a natureza do belo? O que os profissionais dizem a respeito?

P:  O tradicionais dirão: Satyam, Sivam, Sundaram. O artista de hoje não distinguirá entre o aparentemente feio e o aparentemente formoso, mas consideraria o ato criativo como a expressão de um momento, de uma percepção que se transforma dentro do indivíduo e  encontra expressão na obra do artista.

KRISHNAMURTI: Você pergunta que é a beleza, que é a expressão da beleza e como se realiza o indivíduo mediante a beleza. Que é a beleza? Se você começara como se não soubesse nada a respeito, qual seria sua reação? Este é um problema universal. O tem sido para os gregos, para os romanos, e segue sendo um problema para o homem contemporâneo. O que é então a beleza? Ela está no por de sol, numa manhã formosa, na relação humana, na mãe e o menino, no esposo e a esposa, o homem e a mulher? Radica a beleza no movimento extraordinariamente sutil do pensamento, e em uma clara percepção? É isso o que coce chama de beleza?

P: Pode também haver beleza no terrível, o feio?

KRISHNAMURTI: Há beleza no assassinato, nas carnificinas, no lançar bombas, na violência, na mutilação, na tortura, na cólera? Há beleza no brutal, na perseguição agressiva e violenta de uma ideia, no desejo de ser superior que algum outro?

P: Em todos esses atos não há beleza.

KRISHNAMURTI: Onde está a beleza se um homem ataca a outro?

P: Na obra criativa de um artista que interpreta o terrível como o “Guarnica” de Picasso, há beleza?

KRISHNAMURTI: Então temos que perguntar-nos o que é a expressão, o que é a criatividade. Você pergunta o que é a beleza. Ela está em um por do sol, na pura luz da manhã, no entardecer, na luz sobre a água, na relação, etc. Há beleza em qualquer forma de violência, incluída a realização competitiva? Existe a beleza per si, e não no modo como o artista se expressa a si mesmo? Um menino torturado pode ser expressado pelo artista, mas, isso é beleza?

P: A beleza é uma coisa relativa.

KRISHNAMURTI: O “eu” que vê é relativo, condicionado, está preso na busca da própria realização. Antes de tudo, o que é a beleza? É o bom gosto? Ou a beleza nada tem que ver com todas essas coisas? Consiste a beleza na expressão e, portanto, na realização? Por isso o artista diz: devo realizar-me por meio da expressão. Um artista estaria perdido sem a expressão, que é parte da beleza e da auto-realização. Assim, antes de investigar tudo isto, qual é a natureza intrínseca, o sentimento, a condição sutil da palavra beleza, de tal modo que a beleza seja verdade, e a verdade, beleza?

De algum modo, mediante a expressão, tratamos de encontrar beleza na arquitetura, na maravilhosa ponte — a Golden Gate de São Francisco ou o poente sobre o rio Sena —, nos modernos edifícios de vidro e aço, e na delicadeza de uma fonte. Buscamos a beleza nos museus, na sinfonia. Sempre estamos buscando a beleza na expressão de outras pessoas. O que há de mal em um homem que vai em busca da beleza?

P: A expressão de outras pessoas são as únicas fontes acessíveis para nós.

KRISHNAMURTI: E isso, o que significa?

P: Ao ver a ponte, dentro de mim surge uma certa qualidade à que chamamos beleza. É só com a percepção de algo belo que aparece a qualidade da beleza em muitos indivíduos.

KRISHNAMURTI: Compreendo isso. E pergunto: a beleza está na autoexpressão?

P: Você tem que começar com o que existe.

KRISHNAMURTI: O que é a expressão de outras pessoas. Não tenho a visão perceptiva, o estranho sentimento interno da beleza, digo: que formosa é essa pintura, esse poema, essa sinfonia. Se acabamos com tudo isso, o individuo não conhece a beleza; portanto, para sua apreciação da beleza ele confia na expressão, no objeto, na ponte ou em uma boa cadeira.

A beleza requer expressão, especialmente, autoexpressão?

P: Ela pode existir independentemente da expressão?

KRISHNAMURTI: A percepção da beleza é sua expressão, não são duas coisas separadas. Percepção, visão, ação; perceber é expressar. Nisso não há, absolutamente, um intervalo de tempo. Ver é fazer, atuar. Não existe uma brecha entre o ver e o fazer.

Quero ver a mente que vê, a mente em que o ver é atuar; quero observar a natureza da mente que possui esta qualidade. O que é esta mente? No essencial, ela não se preocupa com a expressão. A expressão pode ter lugar, mas a mente não está interessada em expressar-se. Porque a expressão toma tempo — construir uma ponte, escrever um poema —, mas a mente que vê, que percebe, está em plena ação. Para uma mente assim o tempo, absolutamente, não existe; essa mente é uma mente sensível, é uma mente que possui o mais alto grau de inteligência. E sem essa inteligência, há beleza?

P: Que lugar o coração tem nisto?

KRISHNAMURTI: Você se refere ao sentimento de amor?

P: A palavra “amor” está muito carregada. Se você permanece quieto, silencioso, há uma estranha sensação, tem lugar um movimento a partir da região do coração. O que é isto? É algo necessário ou é um estorvo?

KRISHNAMURTI: Esta é a parte mais vital e indispensável; sem ela não há percepção. A mera percepção intelectual não é percepção. A ação da percepção intelectual só é uma ação fragmentária, enquanto que a inteligência inclui o afeto, o coração. De outro modo você não é sensível, não pode perceber. Perceber é atuar. Perceber, atuar sem tempo, é beleza.

P: Os olhos e o coração operam simultaneamente no ato de perceber?

KRISHNAMURTI: A percepção significa atenção plena — nervos, ouvidos, cérebro, coração, tudo opera em seu mais alto nível. De outro modo não há percepção.

P: A qualidade, a natureza fragmentária da ação sensorial, consiste em que todo o organismo não opera ao mesmo tempo.

KRISHNAMURTI: O cérebro, o coração, os nervos, a vista, o ouvido — a coisa total —, nunca se acham em um estado de atenção plena. Se não estão, você não pode perceber. Portanto, o que é a beleza? Ela está na expressão, na ação fragmentária? Eu posso ser um artista, um engenheiro, um poeta. O poeta, o engenheiro, o artista, o cientista, são seres humanos fragmentários.  Um fragmento se torna extraordinariamente perceptivo, sensível, e sua ação pode expressar algo maravilhoso. Mas essa segue sendo uma ação fragmentária.

P: Quando o organismo percebe a violência, o terreiro da perversidade, o que é esse estado?

KRISHNAMURTI: Tomemos a violência em suas múltiplas formas. Mas, por que você formula esta pergunta?

P: É necessário formulá-la para investigar isto.

KRISHNAMURTI: Você pergunta se a violência forma parte da beleza?

P: Eu não colocaria desse modo.

KRISHNAMURTI: Você vê a violência. Qual é a resposta de uma mente perceptiva — no sentido em que estamos usando a palavra “perceptiva” —, para toda forma de destruição, a qual é parte da violência? (Pausa).

O captei! É a violência um ato totalmente perceptivo ou uma ação fragmentária?

P: Não está claro. Não se trata disso.

KRISHNAMURTI: Você introduziu a violência. Eu quero investigar a violência. A violência é um ato de uma percepção totalmente harmoniosa?

P: Não.

KRISHNAMURTI: Você diz então que é uma ação fragmentária, e a ação fragmentária deve negar a beleza.

P: Você inverteu a situação.

KRISHNAMURTI: Qual é a resposta de uma mente perceptiva quando vê a violência? A olha, a investiga e a vê como uma ação fragmentária. Portanto, não é um ato de beleza. O que ocorre a uma mente perceptiva quando vê um ato de violência? Essa mente vê “o que é”.

P: Segundo isso, para você, a natureza da mente, não muda?

KRISHNAMURTI: Por que haveria de mudar? A mente está vendo “o que é”. Avance um passo a mais.

P: O fato de ver “o que é”, muda a natureza de “o que é”? Há um perceber. Há a violência, que é fragmentária. A percepção disso, modifica a natureza da violência?

KRISHNAMURTI: Espere um momento. Você pergunta qual é o efeito de uma mente perceptiva que observa a violência, não é certo?

P: Você disse que ela vê “o que é”: Isso altera “o que é”? A mente perceptiva observa a violência e vê “o que é”, o fato mesmo de ver, atua sobre a violência mudando sua natureza?

KRISHNAMURTI: Você quer saber se a mente perceptiva, ao ver o ato de violência, de “o que é”, pergunta: que devo fazer?

P: Uma mente assim não “faz”. Sem dúvida, por parte da mente perceptiva tem que haver uma ação que modifica a natureza do ato violento do outro.

KRISHNAMURTI: Que ação poderia haver por parte da mente perceptiva?

P: Essa mente “vê” a violência que provem de X. Ver é atuar.

KRISHNAMURTI: Mas o que ela pode fazer?

P: Eu diria que se a mente perceptiva atua, deve modificar a violência em X.

KRISHNAMURTI: Deixemos isto claro. A mente perceptiva vê que o outro atua violentamente. Para ela, o mesmo ver é o fazer. Esse é um fato: que a percepção é ação. Esta mente perceptiva vê a X atuando com violência. Qual é a ação envolvida nesse ver? A de deter a violência?

P: Todas essas ações são periféricas. O que eu digo é que quando uma mente perceptiva se depara com um ato de violência, o mesmo ato de ver altera a ação da violência.

KRISHNAMURTI: Há várias coisas envolvidas nisto. A mente perceptiva vê um ato de violência. O homem que está atuando violentamente pode responder não-violentamente, porque a mente perceptiva esta próxima, muito próxima dele, e isso ocorre prontamente.

P: Alguém vem a Você com um problema — ciúmes. O que ocorre em uma entrevista com você quando a ela chega uma pessoa que está confusa? No ato mesmo de perceber, não há confusão alguma.

KRISHNAMURTI: É obvio que isso tem lugar por causa do contato. Você tomou o aborrecimento de discutir a violência, e algo ocorre porque compartilhamos juntos o problema de maneira direta. Há comunicação. É muito simples. Você vê a um homem que está agindo com violência e esse homem se encontra muito longe.  Qual é aí a ação da mente perceptiva?

P: Uma mente perceptiva deve emanar uma tremenda energia. Isso tem que exercer alguma ação.

KRISHNAMURTI: Talvez atue. Não se pode estar seguro disso como posso está-lo quando se encontra próximo. Talvez o outro se desperte em meio da noite, talvez se dê conta que a resposta chega estranhamente mai tarde, depende da sensibilidade. Isso pode dever-se ao impacto da mente perceptiva, enquanto que esta comunicação estreita é diferente. Ela produz uma modificação.

Voltemos. Você perguntava o que é a beleza. Penso que podemos dizer que a mente que em si não é fragmentária, que não está dividida, tem esta beleza.

P: A beleza está relacionada de algum modo com a percepção sensorial se se fecha os olhos e os ouvidos...?

KRISHNAMURTI: É independente disso. Quando você fecha os ouvidos, os olhos, não há fragmentação; portanto, isso tem a qualidade da beleza, da sensibilidade. Não depende da beleza externa. Ponha o instrumento de uma mente assim, em meio da cidade mais ruidosa. O que ocorre? A partir do ponto de vista físico, ele se vê afetado, mas não a qualidade da mente que não se acha fragmentada. Ela é independente das circunstancias que a rodeiam; portanto, não se interessa na expressão.

P: Isso significa a solidão da mente.

KRISHNAMURTI: Em consequência, a beleza é solidão. Por que este desejo veemente de autoexpressão? Ele faz parte da beleza, tanto se é o desejo de uma mulher de ser mãe, ou do marido por sexualidade nesse momento de ternura, ou o do artista ansiando expressar-se?

A mente perceptiva exige alguma forma de expressão? Não, porque perceber é expressar, atuar. O artista, o pintor, o consultor, buscam a autoexpressão, que é fragmentária e, portanto, a expressão dele não é a beleza. Uma mente condicionada, fragmentária, expressa esse sentimento do belo, mas este se acha condicionado. Isso é beleza? Portanto, o eu que é a mente condicionada nunca pode ver a beleza, e qualquer coisa que expresse deve ter sua mesma qualidade.

P: No entanto, você não contestou um aspecto da questão. Existe algo como o talento criativo, a habilidade de produzir coisas de uma maneira tal que elas procurem felicidade?

KRISHNAMURTI: A dona de casa que orna pão, mas não “a fim de”. No momento em que você faz as coisas com um propósito, está perdido.

P: Trata-se de criar felicidade.

KRISHNAMURTI: Não é função de alguma outra coisa. Não se senta na plataforma e fala com o motivo de que isso procure por felicidade. A fonte de água nunca está vazia. Sempre brota borbulhante, tanto se é água contaminada ou água a qual se rende culto; está aí, brota.

As pessoas que se ocupam da autoexpressão estão em sua maioria interessadas em si mesmas. O artista, famoso ou não, pertence a essa categoria. E o “eu” é o autor da fragmentação. Na ausência do “eu” há percepção. A percepção é ação, e isso é beleza.

Estou seguro que o escultor que cinzelou o Mahesha Murti de Elephanta, o criou em sua meditação. Antes de que você tenha colocado sua mão em uma pedra ou em um poema, o estado tem que ser o da meditação. A inspiração não deve provir do “eu”.

P: A tradição do escultor hindu era essa.

KRISHNAMURTI: A beleza é a total abnegação do eu, e com a total ausência do eu surge “aquilo”. Nós tratamos de capturar “aquilo” sem a ausência do eu, e a criação se converte, então, em um mero assunto de ostentação.

Nova Déli, 29 de dezembro de 1970
___________________________________

domingo, 9 de março de 2014

No autoconhecimento não há esforço


O autoconhecimento vem quando vocês se observam em seu relacionamento com seus companheiros e seus professores, com todas as pessoa à volta; vem quando observam o comportamento do outro, os gestos, a maneira como se veste, como fala, seu desprezo ou bajulação e sua resposta; surge quando vocês observam tudo em vocês , sobre vocês, e se veem a si  mesmos enquanto enxergam o próprio rosto no espelho. 

Pergunta: O que é autoconhecimento, como alcançá-lo?

Krishnamurti: Veem a mentalidade por trás desta pergunta? Não estou falando por desrespeito a quem a formulou, mas vamos considerar a mentalidade de quem pergunta "como alcançá-lo, por quanto posso comprá-lo? O que devo fazer, que sacrifício empreender, qual disciplina, ou meditação devo praticar para consegui-lo?". É como uma mente mecanizada, medíocre, que diz: "Devo fazer isto para conseguir aquilo." As chamadas pessoas religiosas pensam assim; porém o autoconhecimento não surge dessa maneira. Vocês não podem comprá-lo por meio de algum esforço ou prática. O autoconhecimento vem quando vocês se observam em seu relacionamento com seus companheiros e seus professores, com todas as pessoa à volta; vem quando observam o comportamento do outro, os gestos, a maneira como se veste, como fala, seu desprezo ou bajulação e sua resposta; surge quando vocês observam tudo em vocês , sobre vocês, e se veem a si  mesmos enquanto enxergam o próprio rosto no espelho. Quando vocês se olham no espelho, se veem como são, não é? Podem desejar que sua cabeça tivesse um formato diferente, com um pouco mais de cabelo, e o rosto menos feio; mas o fato está ali, claramente refletido no espelho, e vocês não podem afastá-lo e dizer: "Como sou bonito!"

Mas, se puderem olhar o relacionamento exatamente como olham um espelho comum, certamente não haveria fim para o autoconhecimento. É como entrar em um oceano insondável, sem limites. A maioria de nós deseja chegar a um fim, ser capazes de dizer "Cheguei ao autoconhecimento e estou feliz", mas não é assim. Se puderem se olhar sem condenar o que veem, sem se comparar com alguém, sem desejar ser mais belo, ou mais virtuoso, se puderem somente observar como são e como se comportam, então descobrirão que é possível ir infinitamente além. E não haverá fim para a viagem — esse seu mistério, sua beleza.


Krishnamurti — Pense nisso

domingo, 18 de agosto de 2013

Sobre o surgimento daquilo que é eterno

Pergunta: Há um impulso em todos nós, para ver Deus, a Realidade, a Verdade. A busca da beleza não é a mesma coisa que a busca da Realidade?

Krishnamurti: Senhores, compreendam que não se pode procurar a Deus. Não se pode procurar a verdade. Porque, quando procuramos, o que achamos não é a verdade. Nossa busca é o desejo de achar o que desejamos. Como podemos procurar uma coisa que desconhecemos? Vocês procuram uma coisa a cujo respeito leram e a que chamam verdade; ou procuram algo a respeito de que possuem um sentimento interior. Precisam, por conseguinte, compreender o motivo da busca de vocês, que é muito mais importante do que a busca da verdade.

Por que procuram, e o que procuram? Vocês não têm vontade de procurar, se são felizes, se há alegria em seus corações. Nós procuramos, porque estamos vazios. Vemo-nos frustrados, somos infelizes, violentos, cheios de antagonismo; é por isso que cremos, e desejamos, por isso, fugir a esse estado, procurando algo maior. Observem a si mesmos e verificarão o que estou lhes dizendo  não se limitando, apenas, a escutarem as minhas palavras. A fim de escaparem de seus atuais conflitos psicológicos, seus sofrimentos, antagonismos, vocês dizem “Estou procurando a verdade”. Não encontrarão a verdade, porque a verdade não vem quando estão a fugir da realidade, daquilo que é. Precisamos compreendê-lo. Para compreendê-lo, não devem sair em busca da solução fora dele. Não podem, pois, procurar a verdade. Ela tem de vir a vocês. Não podem invocar a Deus, e não podem ir a Ele. A adoração, a devoção de vocês é completamente sem valor, porque desejam alguma coisa, estendem a mão para receber uma esmola. Estão, portanto, à procura de quem preencha o vazio de vocês. E sentem mais interesse pela palavra do que pela cosia. Mas se vocês se contentam com aquele extraordinário estado de solidão, sem desvios nem distrações, só então surge na existência aquilo que é eterno. A maior parte de nós está de tal maneira condicionados, de tal maneira fomos educados, que desejamos fugir; e a coisa para a qual fugimos chamamos Beleza. Buscamos a beleza por intermédio de uma coisa qualquer  da dança, dos ritos, da oração, da disciplina, de várias espécies de fórmulas, da pintura, da sensação. Não é exato? Assim, enquanto estivermos à procura da beleza por meio de alguma coisa, nunca conheceremos a beleza, porque a coisa por cujo intermédio a procuramos, se torna sumamente importante. Não a beleza, mas sim o objeto por meio do qual a procuramos, assume toda a importância, e ficamos apegados a ele. Não se acha a beleza por meio de coisa alguma; isso seria apenas uma sensação, que costuma ser explorada pelos astutos. A beleza vem com a regeneração interior, com a completa e radical transformação da mente, o que requer excepcional estado de sensibilidade.

A feiura só é um mal quando não temos sensibilidade. Se são sensíveis ao belo, rejeitando o que é feio, não são sensíveis ao belo. O que mais importa não é o feio, nem o belo, mas sim que haja sensibilidade para ver, para reagir tanto ao que chamamos o feio como o belo.

Mas se só tomam conhecimento do belo e repelem o feio, é a mesma cosia que empurrar um braço; toda a existência de vocês fica desequilibrada. Vocês não fechem a porta ao mal, negando-o, chamando-o de feio, combatendo-o, opondo-se violentamente a ele? Só se interessam pelo belo. Só a ele desejam. Nesse processo perde-se a sensibilidade.

O homem que é sensível tanto ao feio como para o belo, passa além, distancia-se das coisas por meio das quais busca a verdade. Mas não somos sensíveis nem para o belo nem para o feio; vivemos fechados com nossos pensamentos, nossos preconceitos, nossas ambições, nossa ganância e inveja. Como pode ser sensível a mente que é ambiciosa, espiritualmente, ou noutro sentido? Só pode haver sensibilidade quando se compreende todo o processo do desejo; porque o desejo é um processo egocêntrico, e no egocentrismo não é possível descortinar o horizonte. A mente é então sacrificada pelo seu próprio vir-a-ser. A mente só é capaz de apreciar a beleza, através de alguma coisa. Essa mente não é bela. Essa mente não é boa, é uma mente feia, uma mente que está fechada e que busca proteção para si. Nunca essa mente descobrirá a verdade. Só quando a mente deixa de fechar-se com seus ideais, seus interesses e ambições, só então é bela.

Jiddu Krishnamurti   - 27 de janeiro de 1952 – Quando o pensamento cessa


domingo, 24 de março de 2013

Descobrindo a verdadeira natureza do amor, da beleza e da morte

Passemos a aprender o que é o Amor. Eis uma palavra muito usada e repetida, que você tem rodeado de fórmulas de toda espécie: o amor é divino, o amor é sagrado, o amor não é profano... Com isso você pensa tê-lo compreendido.  Você sabem o que é o amor? Se você é realmente sincero, não hipócrita, dirá: “Não sei; só sei o que é o ciúme, o que é o prazer sexual — a que chamamos amor; só sei das agonias por que passamos por causa dessa coisa que chamamos amor”. Mas a natureza do amor, a sua beleza, essa, em verdade, você desconhece.

O que é, pois, o amor? Não tenha nenhuma opinião, nenhuma fórmula a seu respeito. Se você as tem, cessou de aprender. Você compreende o que é amor? Investiguemos isso juntos. Se compreendo verbalmente o seu significado, o que compreendo não é, de modo nenhum, amor. O que é amor? É prazer? É desejo? É um produto do pensamento? É amar a Deus e odiar o homem? É isso o que você faz — ama a Deus e oprime o seu semelhante. Você ama o líder político, ou talvez não o ama, mas ama o seu patrão, sua esposa. Você realmente ama a sua esposa? Sim?(*) O que significa isso? Quando você ama uma coisa, você vela por ela. Senhor, você ama os seus filhos, isto é, vela por eles não só quando são pequeninos, mas também ao se tornarem maiores, cuidando de que recebam correta educação? Se você os ama, terá cuidado em não lhes ensinar apenas em que eles obtenham empregos seguros, casem-se e se estabilizem, seguindo o padrão de sua própria geração.

E o amor é ciúme, é? Um homem ambicioso e decidido a alcançar a qualquer preço os seus alvos jamais compreenderá o que é o amor, não acha? Pode um homem violento compreender o que é o amor? E o homem, com efeito, é violento, agressivo, ambicioso, competidor. O que você chama de amor é apenas prazer. Você diz que ama sua família. Você sabe o que significa amar alguém? Pode um homem amar sua esposa e filhos se é ambicioso, se, nos negócios, quer prosperar enganando seus semelhantes?

Por conseguinte, para você descobrir o que é o amor, a ele deve chegar negativamente: não ser ambicioso. Se você diz: “Se eu não for ambicioso, serei destruído por este mundo” — deixe que o destrua; porque, afinal de contas, este é um mundo estúpido, monstruoso, imoral. Se você realmente deseja descobrir a beleza, a verdadeira natureza do amor, deve renegar toda a moral cultivada pelo homem. O que você tem cultivado é a ambição, a avidez, a inveja, a competição, o apego ao seu desprezível “eu”, a sua insignificante família. Sua família é você mesmo. Você está identificado com ela e, por conseguinte, ama a si mesmo, não a sua família, a seus filhos. Se de fato você amasse seus filhos, o mundo seria diferente, não haveria guerras. Assim, para você descobrir o que é o amor, deve afastar o que ele não é. Você está disposto a isso? Ora, você está disposto a tudo, menos isso; quer frequentar seus templos, seus gurus, ler incessantemente seus livros sagrados, recitar mantras, iludir a si mesmo, e falar sobre o amor de Deus e sua devoção a seu guru. Não quer fazer a única coisa certa, que é: descobrir o que significa amar, descobrir, por si mesmo, o que significa não ser agressivo.

Assim, o homem que no coração não tem amor, mas só coisas feitas pelo pensamento, esse homem fará um mundo monstruoso, edificará uma sociedade totalmente imoral. E foi isso que você fez. Dessa forma, para você descobrir o amor deve desmanchar tudo o que fez, não por meio do tempo, dizendo: “Eu o desmancharei gradativamente”. Esse é outro artifício da mente. Você diz: “Isto é meu Karma”. Se você compreender realmente a agressividade, compreender quanto ela é terrível, quer em pequena, quer em grande escala, você a abandonará instantaneamente. Nesse abandono, há grande beleza.

E cumpre-nos também descobrir o que significa morrer. Você já viu a morte. Já viu pessoas morrerem e serem transportadas para o túmulo, mas não sabe o que significa morrer, sabe? Você tem teorias e crenças sobre a morte, sobre o que acontecerá após a morte ou diz “Creio na encarnação”. Todos vocês creem na encarnação, não?

(Vozes: Nós cremos)

Você sabe o que isto significa — reencarnação? Escutem bem quietos. Você adotou a suposição de que, após a morte, você renascerá; você acredita nisso. O que é “você”? — O dinheiro depositado no banco, a casa, o emprego, lembranças, disputas, ansiedades, dores, medo — tudo isso não é “você”? Você nega que isso seja “você”, dizendo que o “eu” é muito superior a essas coisas? Se você diz que o “eu” não é seus móveis, sua família, seu emprego, mas uma coisa infinitamente superior, quem é que o diz, e como você sabe que existe “uma coisa infinitamente superior”? Quem o diz é o pensamento e, portanto, essa coisa “infinitamente superior”, esse “superego”, esse Atman, está ainda no campo do tempo, no campo do pensamento, e o pensamento é “você” — seus móveis, sua conta no banco, seu apego à família, à nação, a seus livros, a seus desejos não preenchidos. Se você realmente acreditasse — com o coração e não com sua mente desprezível — que na vida futura reencarnaria, você estaria vivendo hoje de maneira totalmente diferente, porque, pelo que hoje você faz, terá de pagar amanhã, na “vida futura”.

Ao morrer, você perderá seu depósito bancário, pois você não pode leva-lo consigo; poderá retê-lo até o último minuto, e a maioria das pessoas quer retê-lo até o último instante — muito cômico, não é? Assim, como realmente você sabe nada sobre a morte, vamos aprender o que ela é — aprender, e não apenas repetir o que o orador diz, porque, se o repetir, verá que são meras palavras — nada.

O organismo físico, decerto, perecerá. O cientista poderá dar-lhe mais uns cinquenta anos, mas, ao cabo deles, o organismo morrerá, porque está sendo submetido a constante uso e abuso. O organismo vive sujeito a tensões e pressões de toda espécie; dele se abusa com bebidas, drogas, comidas impróprias, incessante luta. Tais excessos cansam o organismo, de onde surgem os colapsos cardíacos, as doenças, etc.

O corpo perecerá, e que mais morrerá com ele? Sua mobília, seu saber, suas esperanças, desesperos e preenchimentos. O que é, pois, morrer? Aprenda isso, por favor. Nós estamos aprendendo juntos. Para você descobrir o que é a morte, deve morrer, não? Se você é ambicioso, deve morrer para a sua ambição, seu desejo de poder, posição, prestígio; morrer para os seus hábitos, suas tradições. Compreende? Não se pode discutir com a morte, lhe dizer: “Preciso de mais uns dias, não acabei de escrever o meu livro; quero mais um filho, etc.” nada se pode alegar; portanto, se abstenha de argumentar, de justificar.

Morra para toda e qualquer coisa: sua vaidade, suas aspirações, as imagens que tem de si mesmo, de seu guru, de sua esposa. Se você o fizer, compreenderá o significado da morte, saberá o que é uma mente morta para o passado. Só a mente que morre todos os dias tem a possibilidade de transcender o tempo.

Bem, senhores, estiveram ouvindo esta palestra; por conseguinte, aprenderam o que é o medo, o que é o prazer. E, se o aprenderam, já sabem o que é o amor — aquele estado da mente — e por “mente” entendo o cérebro, o coração, a totalidade — em que não existe divisão, fragmentação de espécie alguma. E, agora, se alcançaram esse estado, se têm essa mente excelente, esse coração puro, depois de saírem daqui, nesta tarde, morram para tudo o que aprenderam hoje, a fim de despertarem, amanhã, mais uma vez completamente novo.  Do contrário, se, transportarem para amanhã a carga de hoje, darão continuidade ao medo. Morram, pois, a cada dia, para conhecerem a beleza da vida, a beleza da Verdade, e não precisaram aprender nada de ninguém, porque você estará aprendendo.

Krishnamurti – Bombaim, 14 de fevereiro d 1971
(*) palavra dirigida a um ouvinte que respondeu afirmativamente.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill