Os estágios da Retomada Consciencial: Confusão, demolição, nova construção
Estágio de Confusão: Por experiência pessoal e de grupo, é normal que no princípio dos estudos, os confrades não percebem senão palavras e frases sem nexo, por mais claras e simples que sejam os termos empregados neste paradigma; são incapazes de descobrir através desses vocábulos um sentido lógico que forma um Todo homogêneo e orgânico. Veem, por assim dizer, tijolos, cimento, areia, cal, mas não veem, o edifício nem a planta que lhes serve de substrato arquitetônico.É que as partes não podem ser entendidas senão à Luz do Todo — mas esse Todo ainda é invisível aos confrades principiantes; falta-lhes a visão panorâmica, dentro do qual as partes e as parcelas integrantes têm sentido e razão de ser, mas fora do qual tudo é obscuro, confuso e desconexo. É inevitável que isso assim aconteça em maior ou menor escala. Essa falta de compreensão espiritual inicial não prova absolutamente que as pessoas não possuem capacidade intelectual para assuntos espirituais; prova tão somente que a vasta seiva tropical da espiritualidade está circundada de uma como que espessa orla espinhosa de "preconceitos, crenças e dogmas". Uma vez ultrapassada essa orla espinhosa, abre-se, paulatinamente, os olhos do "principiante espiritual" à majestosa "voz interior", em toda a sua grandeza e com toda a fascinação dos seus mistérios. Para que isso ocorra, se faz necessário que o confrade tenha muita paciência e perseverança, e, sobretudo, intenso amor à busca da experiência pessoal da "Verdade que liberta".
Estágio de demolição: Muito mais trágico é, o segundo período, o do vasto trabalho de demolição de ídolos, dogmas e fetiches tradicionais, tidos e havidos por intocáveis e até mesmo, sagrados. Muitos confrades, aterrorizados com essa revolução que não causa danos, desistem de prosseguir na jornada inciada, voltam atrás, com saudades de suas ideologias tradicionais, dos seus queridos ídolos de sempre, dos quais não podem ou não querem divorciar-se, porque sentiriam esse divórcio como uma dolorosa dilaceração interior, como uma profunda hemorragia moral.
A muitos deles só lhes podemos repetir as palavras do grande filósofo, terapeuta e curador, Jesus: "Quem lança mão ao arado e olha para trás, não é idôneo para o reino de Deus", que é o Reino da "Verdade que liberta".
Convém que esses confrades temerosos saibam que a verdadeira espiritualidade não destrói nenhum valor real da vida humana; pelo contrário, clarifica e consolida valores reais, embora deva eliminar muitos valores fictícios tidos por verdadeiros. É necessário que se realize essa impiedosa demolição ideológica, para que um edifício mais sólido e belo possa surgir, aos poucos em meio das ruínas. Não esqueça ele, todavia, que não se demole por demolir, mas sim para construir. A demolição não é um fim em si, mas um meio para uma espécie de revolução. Toda evolução é precedida por uma espécie de revolução. Se nunca ninguém dissesse algo novo, nenhum progresso seria possível, e a humanidade marcaria passo, eternamente, no mesmo plano horizontal. É possível que a busca afaste o principiante do seu deus — mas não de Deus; esse seu deus não passa, talvez, de um pseudo-Deus, que tem de ser destronado para que o Deus verdadeiro, o Deus da "Verdade que liberta", possa tomar-lhe o lugar.
Estágio da Nova Construção — O fim de toda verdadeira busca é construir a felicidade do homem sobre uma base inabalável, sobre a rocha da Verdade absoluta e incondicional que liberta. Para muitos, a verdadeira busca equivale a uma grande "catarse", lentamente realizada; para outros é como uma dolorosa intervenção cirúrgica nos tecidos da alma. A verdade é implacável, porém amiga, como o bisturi; por vezes, faz sangrar o coração, mas, depois de removidos os elementos mórbidos do erro e da ilusão, entra o corajoso confrade sofredor numa rigorosa convalescença e começa a sentir as belezas e suavidades da vida muito mais intensa e conscientemente do que nunca antes.
É que, em última análise, só a verdade é que pode nos libertar e nos tornar solidamente felizes. Pensam muitos que a verdade seja rígida, áspera e amarga; dizem que o homem necessita de certa dose de ilusões para suavizar e embelezar a sua vida, que seria, aliás, insuportável. Engano fatal! A mais grave das verdades é infinitamente mais bela e consoladora do que a mais meiga das mentiras e ilusões tradicionais. A experiência da Verdade é o único fator capaz de tornar o homem profundamente tranquilo, calmo e feliz. Quem vive de ilusões, embora se sinta feliz, está sempre em véspera de novas infelicidades, porque faz depender sua "chamada felicidade" de algo que não depende dele — e isto é o inverso de toda autêntica espiritualidade.
Vale a pena, passarmos por um período de confusão e um período de demolição, a fim de construirmos a nossa vida, livre de confusão e sem perigos de novas demolições.
Parafraseado de um texto de Huberto Rohden
Quase todos nós, penso eu, nos vemos torturados pelo conflito e pela confusão que surgem, em nosso viver de cada dia. Nunca encontramos um meio de sair de nossas agonias em todos estes dois milhões de anos de nossa existência humana. Apesar dos grande progressos técnicos, apesar de existirem tantas drogas e narcóticos , de existirem tantos analistas, e sacerdotes, e salvadores, e mestres, e gurus, e apesar, de também, destas nossas palestras, não parecemos capazes de descartar as coisas que temos acumulado, descarta-las com facilidade, sem fazermos esforço algum, assim como as folhas se desprendem das árvores, no outono, e são levadas pelo vento. Aparentemente, falta-nos capacidade, a necessária habilidade para libertarmos a nossa mente — ou para a própria mente se libertar — das várias complicações, de seus problemas e agonias, conscientes ou inconscientes, de seus ocultos desesperos e secretas misérias; e pensamos que o tempo — o amanhã multiplicado por mil — de alguma maneira irá operar uma miraculosa transformação.
Ora, existe, no meu sentir, uma maneira de viver totalmente diferente — uma maneira de viver em que não há fugir, nem recolher-se em mosteiros ou fazer certos votos, ou aderir a um dado movimento social, político ou econômico. Há, sem dúvida, outro caminho, uma diferente maneira de superarmos as enormes dificuldades de nossa vida diária — não com o fim de concordar ou discordar, porém que escutem simplesmente, tranquilamente, assim como ouvem o barulho daquele avião. Escutem atentamente, porém, sem nenhum esforço, se possível. Porque é bastante óbvio que com a mera sondagem, exame ou análise intelectual, não seremos capazes de resolver o problema do sofrimento humano. Há tantos anos, e em tantas vidas, e há tantos séculos vimos tentando encontrar uma saída de nossos sofrimentos, mediante disciplinas, sacrifícios, controle, por meio de auto-esquecimento e da identificação com algo considerado superior. Temos tentado inumeráveis sistemas, seguido caminhos inumeráveis e, todavia, no fim da jornada, nos encontramos, aflitos. Portanto, deve haver uma maneira completamente diferente de resolver este problema.
Nesta manhã, pretendo enveredar por esse caminho — não apenas verbal ou intelectualmente, porque verbal e intelectualmente não se pode entrar naquela luminosa região e tampouco podemos atingi-la com qualquer espécie de sentimentalidade ou emocionalismo. Lá devemos chegar insensivelmente, sem esforço algum, sem nenhuma intenção deliberada; e, se ficarmos escutando tranquilamente, talvez então possamos marchar juntos. Mas, se a investigação de vocês for puramente intelectual, analítica, então é de temer que percamos o contato, a comunhão entre nós.
Krishnamurti — O descobrimento do amor