POR ONDE COMEÇO?
Pupul Jayakar (PJ): Se você recorda, Krishnaji, há três dias começamos a discutir
qual é a base de uma mente a partir da qual emerge uma mente nova. Enquanto o
discutíamos, você disse que, a partir de uma base que é conflito, medo, ira, o
novo não pode jamais emergir; disse que algo inteiramente novo é indispensável.
Também falou a respeito dos sentidos operando simultaneamente em sua máxima
capacidade. Eu desejo começar com uma pergunta: Sou um recém chegado às suas
palestras; escuto isto. Por onde começo?
Jiddu Krishnamurti (K): Provavelmente, de princípio não encontrará nem pé nem
cabeça. Não saberá do que K está falando. Teremos, pois, que estabelecer o
significado linguístico, semântico, e também estar atentos a nossa relação com
a natureza. Sim, eu começaria com isso.
Perguntaria
por que não há aqui, em absoluto, animais selvagens. Investigaria isso, porque
perdemos contato com a natureza, da qual formamos parte, perdemos contato com a
humanidade, com nossos semelhantes. Eu começaria por aí, com minha relação com
a natureza, com minha relação para a beleza de tudo isso.
Pupul,
como você olha a natureza? Como olha essas colinas que se supõe estão entre as
colinas mais antigas do mundo? Como olha essas pedras, esses cantos rodados,
essas árvores, aqueles rios secos, aquelas torrentes? Como olha a esses pobres
meninos aldeões que caminham doze milhas por dia para ir a uma escola? Como
olha a essa pobre gente que carece da comida indispensável para subsistir?
PJ: Você está dizendo, senhor, que o ponto de partida da investigação está
no externo?
K: Totalmente. Veja, Pupul, se não tenho critérios óbvios do sentido
comum, como posso, então, ter uma percepção
clara de mim mesmo? Compreende?
PJ: Sim, compreendo.
K: Porque o externo é uma manifestação de mim mesmo. Eu formo parte da
natureza. Sem compreender a beleza da terra, dos rios e de cada porção deste
extraordinário mundo em que vivemos, deste brutal mundo em que vivemos, com
toda sua crueldade, seu terrorismo, etc., como posso, de algum modo, ter uma clara percepção de mim mesmo? Qual é a
minha relação com tudo isso? Estou cego, mudo a respeito? Ou tenho certas
conclusões que me dominam? As conclusões são um produto do pensamento; a
natureza não o é.
PJ: Senhor, todos pensamos que olhamos a natureza, que olhamos às árvores,
as flores e as pedras. Sentimos que olhamos. Sentimos que, como temos olhos,
olhamos. Mas há algo no olhar e na relação, algo ao que se refere, que não é,
evidentemente, o olhar ao qual estamos acostumados.
K: Como você olha a natureza? A mira com seus olhos? A percepção das
largas sombras do entardecer e da pequenina sombra do Sol do meio-dia, é tão só
uma percepção visual? Ou seja, olha essas maravilhosas sombras somente com seus
olhos? Ou as vê com a totalidade de seu ser, com a totalidade dos sentidos?
Como vê tudo isso? Como o percebe? O percebe como se fosse algo externo a você,
ou como algo de que você forma parte?
PJ: Creio que se pode dizer realmente que há um olhar no qual não existe “aquele que olha”. Mas não quero
partir daí. Por isso venho a você como uma principiante, uma principiante que
diz: “Wu olho com meus olhos”. Quero começar a partir daí.
K: Eu contestaria isso: Você só olha? Ou também ouve; ouve o som do
sussurro entre as sombras profundas das árvores, o som da brisa e das águas que
correm? Minha pergunta é: Escuta, vê se sente?
PJ: Senhor, se você está vendo, escutando, sentindo, então, esse é um
estado no qual tudo existe. Mas eu não sei nada a respeito. Por isso, gostaria
de abordá-lo do ponto de vista de uma principiante, antes de que qualquer outro
ponto de vista.
K: Estaria de acordo de que os seres humanos tem perdido contato com a
natureza?
PJ: Sim, completamente; porque quando veem, seus olhos passam por cima das
coisas. Jamais olham diretamente. Jamais olham; ponto. Consideram isso
demasiado trivial.
K: Exatamente, Consideram demasiado trivial a contemplação da natureza.
Consideram a natureza como algo que pode ser explorado.
PJ: Veja, senhor, a mente tem se dividido. Considera como algo sem
importância olhar uma flor ou o movimento de uma folha; para ela, o importante
é o vasto.
K: Comecemos, pois, O que é importante? Para o homem comum, para a pessoa
corrente, o que é importante? Comida, roupa, moradia; isto é tudo o que
interessa.
PJ: Não, senhor. Mas além disso está o sagrado, o divino, Deus.
K: É claro, mas chegarei a isso depois. Limito-me a começar com as
necessidades: comida, roupa, moradia. Quando o homem tem isso, então começa a
pensar em Deus como algo extraordinário.
PJ: E quer imaginá-lo em um imenso...
K: Vê o céu do entardecer e o Sol nascente e a imensidade deste mundo
maravilhoso, e diz: “Quem criou tudo isto?” Correto?
PJ: A capacidade de ver o pequeno e o imenso se acham no mesmo nível de
importância...
K: Sim, não há tal coisa como imenso e pequeno.
Interlocutor (I): Meus sentidos tem estado profundamente dominados por
meu pensar. Vejo por mim mesmo que, quando saio para dar um passeio, não estou
realmente olhando, escutando. Estou todo o tempo pensando e, a partir desse
pensar, ocasionalmente, lanço uma olhada a uma coisa ou outra. Portanto, em
certo sentido, não há um olhar, um ver a realidade de uma árvore.
PJ: Se você tratasse de conseguir que alguém olhasse uma folha, uma
simples folha, descobriria a dificuldade que resulta. Mas, por que tomar alguma
outra pessoa? Quando si mesmo o faz, se dá conta do difícil que é olhar algo.
I: Como o disse, o lançamos uma olhada e nos afastamos.
K: Você culparia a religião? Culparia as religiões ortodoxas,
estabelecidas, que tem impedido ao homem de considerar a natureza como parte de
si mesmo? Você vê, as religiões tem dito: “Reprima todos teus sentidos”. Não
olhe para fora; olhe sempre dentro de ti”.
I: Krishnaji, você não diria que o homem moderno da cidade está altamente
influenciado pelas religiões?
K: Não, não estamos falando de um homem da cidade nem de um homem do
campo — de alguém que vive em uma grande cidade ou em um pequeno povo ou em uma
aldeia. Falamos de um homem comum que tenha visto aos sanyasis, aos monges, aos
trapistas que jamais falam. E todas essas pessoas, assim chamadas religiosas,
tem sustentado que devemos reprimir o desejo, que é preciso reprimir os
sentidos porque nos distraem.
I: Sim, isto o tem sustentado não só as religiões, senão também a
sociedade.
K: É claro. Como se vê, os líderes religiosos não tem dito: “Olhe todas
as maravilhas deste mundo. Contempla sua beleza, percebe-a, absorva-a, seja
parte dela”. O que fazem é criar imagens, imagens elaboradas pela mão e pela
mente. E as imagens elaboradas pela mente são mais importantes que as outras.
Senhor, vocês têm um templo próximo daqui, em Turupati. Acodem lá mil pessoal,
gastam-se milhões nele; por quê?
Bem,
agora, se eu fosse um homem comum e escutará tudo isto, como assinalou Pupul,
por onde começaria?
I: Mas, você não diria, Krishnaji, que inclusive para formular-se esta
pergunta, o homem comum tem que ter visto em alguma parte, de algum modo, que
este mundo é limitado?
K: Sim, ele conhece a morte.
I: E já tem que estar um pouco descontente de seu Deus, de sua...
K: Eu questiono isso, senhor. Ponho em dúvida que ele esteja descontente
ou seja cético com respeito a seus deuses.
I: Então, que o faz formular-se a pergunta: “Por onde começo?”
K: Ele não formula esta pergunta.
PJ: O faz. O faz quando há dor, quando está sofrendo; quando há morte.
K: O faz quando há dor, o faz quando há morte. O faz quando vê passar a
seu lado um homem rico em um automóvel maravilhoso e ele tem que caminhar dez
milhas para ir a esse mesmo lugar. Então é quando começará a perguntar-se: “O
que é tudo isto? Por que não deveria eu ser tão rico como esse homem?”
I: Mas isso não é formular a mesma pergunta.
K: Forma parte disso.
PJ: Do contrário, como se começa?
I: Mas você vê, senhor, há numerosas pessoas que, no geral, vivem vidas
muito felizes. Não conhecem a dor — não ao menos a dor que é comum à maioria
das pessoas: pobreza, má saúde, falta de educação, etc. Sem dúvida, se
encontram com estas perguntas e as investigam muito, muito seriamente.
K: Você fala de pessoas excepcionais. Nós começamos perguntando: “Se
fosse um homem comum, por onde
começaria?” Digamos que sou um homem comum, bastante educado, e estou rodeado
por muitos complexos problemas da existência: sofrimento, pena, ansiedade, e
todas as demais atividades do pensamento; por onde começaria para compreender a
muito complexa sociedade em que vivo? Essa é uma pergunta verdadeira, e é a
pergunta com que começou Mrs. Jayakar.
PJ: Vela, nós tomamos por certo, quando escutamos a Krishnamurti, que e
começo deve partir do interno. Todos o temos interpretado deste modo, ou seja,
que temos de começar com o interno, com o descobrimento de “o que é”. Jamais
temos olhado o externo e o temos visto como o mesmo movimento que o movimento
interno. Portanto, a insensibilidade, a corrupção...
K: Por que temos descuidado ou descartado ou desdenhado todas as coisas
da natureza?
PJ: Porque dividimos. Dividimos o mundo externo como o mundo do desejo, e
o mundo interno como o mundo real.
K: E também porque, tanto para os budistas como para os hindus, o mundo
externo é maya, uma ilusão. Sem
dúvida, K contraria isso. Por isso sinto que é importante compreender a nossa
relação com a natureza, com o mundo exterior; que é indispensável compreender
nossa relação com este mundo no qual a infelicidade, a confusão, a brutalidade
e a corrupção avançam sem cessar. Olhar isso primeiro e, depois, a parir do
externo, mover-se para o interno. Mas se você começa e termina no interno, não
terá medida. Se detém na adoração; segue a Jesus ou a algum guru. Isso é o que
vocês chamam de religião. Correto? Os rituais, os objetos de culto... isso é
para vocês a religião.
Eu
sinto, pessoalmente, que devemos começar com o que vemos, com o que ouvimos e
percebemos do externo. A pergunta é: Como olho minha esposa, a meus filhos, a
meus pais, e a todas as demais pessoas que são exteriores a mim mesmo?
Tomemos
a morte. Quando vejo alguém que carrega
um corpo morto — neste país isso é muito simples; só duas ou três pessoas
levando um cadáver —, começo a perguntar-me: “O que é a morte?” A morte está
lá, fora de mim mesmo, mas começo a inquirir. Posso, simplesmente, ir-me só à
montanha, e dentro de uma caverna inquirir o que é a morte ou o que é Deus. É
claro, posso imaginar um montão de coisas, mas se não tenho estabelecido uma
correta relação com a natureza, com outra pessoa: esposa, marido, quem quer que
seja, como posso estabelecer jamais a correta relação com a imensidade do
universo?
I: Krishnaji, você está dizendo que observar o externo estimula ao
cérebro?
K: Sem dúvida; se torna mais sensível.
I: E, portanto, pode observar o interno sem distorção alguma.
K: Sim, sem distorção.
I: Mas, senhor, a metade do mundo — o Ocidente — sempre tem considerado o
externo como muito, muito concreto. Todas suas energias tem se movido para
fora. Mas isso tampouco parece haver dado origem à espiritualidade.
K: Chegamos, pois, a uma pergunta muito mais séria. O que faz com que um
homem mude? Você começaria com isso? Sou invejoso, brutal, violento, me sinto
inseguro, confuso e ciumento. Há ódio em mim. Sou o resultado de milhares de
anos de evolução. Por que não tenho mudado? Essa é uma das perguntas básicas.
I: Não é demasiado cedo para formular essa pergunta?
K: Sim, não é.
I: Mas você disse que, apesar de tudo, temos que chegar a ela.
K: Tenho passado por tudo isto e tenho chegado nela. E, também, aprecio a
natureza, com a qual estou em contato constante. Assim que começo: observo.
Mas, sendo eu um ser humano, um ser humano que sofre, que tem medo e se debate
na confusão exatamente igual ao resto da humanidade, finalmente devo
perguntar-me: “Por que não me transformei de maneira radical?” Essa é minha
pergunta.
I: É interessante que o homem comum esteja muito mais preocupado por
alcançar o objeto de sua cobiça ou por escapar do objeto de seu medo, que
formular-se a pergunta: “Por que sou cobiçoso?” ou “Por que tenho medo?”
K: Qual é sua pergunta, senhor?
I: É esta pergunta que você levantou: Por
que não tenho me transformado?
K: Pergunte a si mesmo, senhor, pergunte a si mesmo. Com isto não estou
mostrando-me pessoal ou desrespeitoso ou atrevido. Pergunte-se a si mesmo por
que, depois de trinta ou quarenta anos, está exatamente onde estava —
modificado, é claro, mas sem nenhuma transformação radical. Por quê? Sugiro que
qualquer pessoa racional e reflexiva se formularia essa pergunta.
Senhor,
você compreende o que entendo por “transformação”?
I: Não, senhor, não compreendo.
K: Por “transformação” não entendo, digamos, a recusa do hinduísmo e a
aceitação di budismo, ou vice-versa. Porque isso seria tão só repetir o mesmo padrão uma e outra vez.
I: Sim, senhor, mas nós não vemos isso como o mesmo padrão; o vemos como
um padrão diferente.
K: Tomemos a inveja. É um fator comum para todos e tem produzido
muitíssimo infortúnio no mundo. Vocês veem as consequências da inveja, mas
seguem sendo invejosos. Por que não a eliminam radicalmente de seus cérebros?
Por favor, não converta isto em algo complexo. Por que não tem sido possível
observar ao cérebro quando é invejoso, e erradicar a inveja? Por que não o tem
feito? Falam interminavelmente disso.
I: Senhor, aparentemente, há uma espécie de paradoxo porque, em meu
sentir, o sofrimento parece ser, em certos casos, necessário para esta
transformação “radical” do qual você fala. Sem dúvida, quando se sofre e
continua sofrendo, isso tem um efeito embotador sobre o indivíduo que sofre.
Então, para onde nos movemos a partir daí?
K: Antes de tudo, senhor, não há divisão entre o externo e o interno; são
uma só coisa. Você vê isso? Vê realmente o fato de que o externo, ou seja, a
sociedade em que vivemos e a que temos criado, e o interno, o “eu”, são a mesma
coisa? Eu fomo parte da sociedade. A sociedade não é diferente de mim. Esse é
um dos fatos mais fundamentais. Você reconhece, realmente, esse fato, e não se
limita a estar de acordo com o que se disse?
Em
primeiro lugar, há uma divisão entre você e eu. Você pertence a um grupo ou a
uma comunidade ou a uma religião, etc., e eu pertenço a outro grupo, a outra
comunidade, a outra religião, etc. Esta divisão é criada pelo pensamento e, em
consequência, é tremendamente complexa.
Bem,
agora, você diz: “Eu sofro, tu sofres, o resto da humanidade sofre”. Mas jamais
se pergunta: “Pode este sofrimento terminar?”
I: Senhor, você diria que ambas as perguntas: “Pode o sofrimento
terminar?” e “Por que não terminou?”, são a mesma coisa?
K: O são.
I: A resposta para ambas perguntas, é que não temos energia suficiente?
K: Eu não diria que você não tem energia suficiente. Quando você quer
fazer algo, tem plenitude de energia. Correto? Quando quer fazer dinheiro,
trabalha tremendamente para obtê-lo. Não creio, pois, que seja uma questão de
energia.
I: É que não desejamos transformar por completo nosso ser? Por que o
desejo de “não sofrer”, ou o desejo de “transformar radicalmente” — como você o
expressa — se dissipa com facilidade?
K: É porque não há nenhuma ganância nisso? Nós somos motivados pela
ganância, não é assim? Sempre desejamos uma recompensa. Nossos cérebros estão
condicionados à recompensa e o castigo. Concorda? Trabalhamos como um raio se
ao final podemos ter uma recompensa: dinheiro, posição, status, felicidade... o
que for.
PJ: Senhor, penso que nos afastamos ligeiramente. Estamos falando dos
sentidos e de seu funcionamento, e...
K: Sim.
PJ: Y bem, os sentidos são energia. O que está fora é energia.
K: Você tem visto como o capim cresce através do cimento?
PJ: Mas o que é exerce um bloqueio sobre a energia dos sentidos? O que é
que interfere com sua verdadeira capacidade?
K: É nosso condicionamento? É nossa educação? Porque, como você sabe,
sempre nos é dito para que nos controlemos.
PJ: Sim, senhor, penso que tem que haver alguma semente, algum
discernimento, que tenha sido responsável deste ensinamento, ou seja, que
devemos não só ser muito cuidadosos com nossa energia, senão também que devemos
canalizá-la apropriadamente. Sinto que toda a vida e toda a educação são tão só
uma canalização desta energia e, portanto, talvez seja este, em si mesmo, um
enfoque incorreto.
K: Sim.
PJ: Porque o que se necessita é a conservação da energia. Bem, agora, como
se conserva a energia? Como gerar energia?
K: Você quer conservar energia? Ou é que quanto mais energia emprega,
mais há?
PJ: Mas também se pode deixar que a energia se dissipe.
K: Disso que se trata, justamente. Veja, para uma pessoa como “K”, não há
distração ou atração.
PJ: Isto é mágico. Para “K” não há distração na mente; não há
trivialidade.
I: Tampouco há preocupação.
K: Isso é certo.
I: No fato mesmo de dizer: “Conservarei energia”, há uma canalização da
energia.
PJ: Não. O que eu disse foi a partir de um ponto de vista diferente. Nós
vemos que a energia se dispersa. Seja qual for a energia de um ser humano, a
está desperdiçando a todo tempo. Tem que haver algo na raiz disso.
K: Não, Pupul, só observe. Estamos condicionados desde a infância a esta
ideia de recompensa e castigo. Correto? Nossa mãe disse: “Se fizer isto, te
darei um doce. Se não fizer aquilo, te castigarei”. Quando ingressamos na
escola, continua o mesmo princípio: melhores notas nos exames, etc. Está me
seguindo? Nossos cérebros estão condicionados para a recompensa e o castigo.
Concorda? Por conseguinte, gastamos toda a nossa energia em evitar o castigo e
ganhar uma recompensa. E a recompensa lhe dá uma energia extraordinária.
PJ: Mas, senhor, de uma qualidade diferente.
K: Espere, espere. Digo que a recompensa me dá uma energia extraordinária
para trabalhar, trabalhar, trabalhar. E vem você e me diz que isto da
recompensa e o castigo é um condicionamento e que nisso não há liberdade. Que o
céu não é uma recompensa; que a iluminação não é uma recompensa. Mas fui
educado desde a infância para buscar recompensas. Há, pois, uma batalha e eu
desperdiço minha energia nessa batalha. Desejo a felicidade; desejo a paz. E
faço de tudo para apressar a obtenção disso.
PJ: Senhor, a vida é tão complexa que, se alguma vez trato de resolvê-la,
jamais o realizarei. Mas você nos tem dado uma chave. A chave é este
funcionamento total dos sentidos. Podemos explorar e investigar isso?
K: Sim, o façamos. (K ri). Não
o estamos fazendo?
PJ: Porque isso elimina o problema, e não há nada que deva fazer-se.
K: O ver e o ouvir, estão separados ou são uma só coisa? Compreende minha
pergunta? Quando você percebe algo, por exemplo, esta pergunta, o ver isso, o
ouvir, estão separados, e há também um pensar a respeito? Tão logo pensa nisso,
não está escutando a pergunta.
A
questão é se você vê, quer dizer, se percebe e ouve ao mesmo tempo, e não como
duas coisas separadas. Olhe, o ano passado estive falando com um cientista, um
biólogo interessado na natureza e demais. Perguntou-me: “Você ouve o som de uma
árvore? Ou ouve não quando a árvore é movida pelo vento, senão quando está
absolutamente quieto, por exemplo, cedo pela manhã ou quando o sol está se
pondo? Tem ouvido uma árvore quando não ocorre nenhuma brisa? Uma árvore tem
uma qualidade peculiar de som”. E ele contestou: “Sim, uma árvore tem uma
qualidade peculiar de som”. E agora lhe pergunto: Você pode ouvir e ver ao
mesmo tempo? Ou os divide? Entendo o que estou dizendo?
PJ: Entendo, senhor.
K: O som é uma coisa extraordinária em si mesma, mas não quero entrar
nisso agora.
A
interrogação é se você pode ver algo sem divisão. Isso é tudo quanto pergunto.
Ver, ouvir, tocar, cheirar, saborear; tudo isso sem divisão alguma. É como se
você estivesse completamente mergulhado nisso.
I: Senhor, você tem dito com frequência
que a meditação é um sexto ou sétimo sentido, e que se você carece dela, está
perdendo muitíssimo. Segundo você, qual é, exatamente, a natureza essencial da
meditação?
K:
A natureza essencial da meditação é não ter consciência jamais de que você está
meditando. Compreende o que eu digo? Se você tenta meditar — sentar-se em certa
postura, relaxar-se tranquilamente, respirar e os demais truques que vocês
praticam —, então é como qualquer outro negócio. Você tão somente deseja
conquistar algo. E a meditação não é uma
conquista. Se você medita conforme um sistema, um método, etc., então isso
é uma conquista. Ao final de tudo isso — de seu esforço e demais — diz: “Ah!
Finalmente tenho paz!”. (Risos). É o
mesmo que dizer: “Ao fim tenho um milhão de dólares o banco”. No mundo dos
negócios vocês fazem isto, isso e aquilo para obter dinheiro, mas nada podem
fazer para obter a meditação. Para K, a meditação é algo que não pode ser
realizado conscientemente.
PJ: Está separada do estado de ver-escutar?
K: Isso é, em si mesmo, meditação?
I: Você fala de um “contato com a natureza”. A mim me parece que a
meditação ocorre de uma maneira muito sensível quando há um contato com a
natureza, especialmente o tipo de contato que você descreve.
Desafortunadamente, muitas pessoas, por mais inteligentes que possam ser,
sentem que uma postura ou um determinado enfoque são muito relevantes para a
meditação.
PJ: Eu sei.
I: De modo que quando você fala a respeito da meditação, uma meditação na
qual todas as coisas caem eliminadas, você está perdido.
K: Esteja perdido!
I: Mas não estamos perdidos na maneira que você o entende.
K: Esteja perdido, esteja perdido.
I: Estamos perdidos na confusão.
K: Senhor, fazer tudo isto que fazem é
confusão!
I: Como você nos guiaria adiante, de maneira tal que essa meditação
chegasse a ser uma realidade?
K: Não sei o que você entende por “meditação” e por “realidade”. O sinto,
não é minha intenção ser engraçado, mas não sei realmente o que você quer dizer
com essas duas palavras. Além do mais, creio que estamos nos afastando daquilo
que Pupul começou.
I: Eu formulei a pergunta em relação com o funcionamento total dos
sentidos, porque tal qualidade é muito diferente da atitude cientifica,
tecnológica. O cientista ou o técnico se interessa unicamente no externo.
K: Não, senhor. Eles também formulam estas perguntas. Como lhe disse
outro dia, fomos visitar em Los Álamos, que é o Laboratório Nacional da América
do Norte. Estão interessados não só na meditação, mas também no que é a
criatividade na ciência. Segue-me? Vão mais além de um enfoque meramente tecnológico
da vida.
PJ: Senhor, não pode haver outra base para o criativo; os sentidos
operando são em si mesmo a base do criativo.
K: Quando você observa todo o universo... quando você observa, sem buscar
uma recompensa nem fugir de um castigo, senão que observa, por exemplo, o
sofrimento desses aldeões, ou a esses pequenos meninos que caminham doze milhas
por dia para ir a escola, nesse observar mesmo existe esta qualidade de amor,
de afetuosa solicitude.
PJ: Sim. Agora estamos chegando a isso.
K: Sim.
PJ: O que se desperta? Penso que há uma possibilidade de observar — falo
por mim mesma — com todos os sentidos...
K: O despertar de todos os sentidos e a plenitude disso, contém em si a
qualidade de algo completamente diferente.
PJ: Tem que haver algo que passamos por alto porque — deixe-me expressá-lo
em outras palavras — porque essa explosão
do coração...
K: É uma boa frase: “explosão do
coração”.
PJ: Isso não ocorre, senhor. A explosão
do coração não tem lugar. Esse é o ponto crucial.
K: Você diria que o cérebro é o centro de todas nossas respostas
elétricas, nervosas? Ele é o centro de todo o pensar. É o centro de toda a
confusão, de toda a dor, da pena, da ansiedade, da depressão, das aspirações,
das realizações, etc. Há no cérebro uma grande atividade de confusão e
contradição.
O
amor não é isso. Portanto, tem que haver algo exterior ao cérebro. Só siga isto
logicamente. E nós olhamos a natureza, ou a outros seres humanos...
PJ: ...partindo do interior do cérebro.
K: Sim, olhamos partindo do interior do cérebro. Ontem passeávamos com
algumas das pessoas daqui; reinava um completo silêncio, ainda quando se viam
carretas de bois, crianças em bicicletas, você sabe, estavam todos os outros
ruídos. Não existia nada, só um imenso silêncio. E não era o silêncio dali de
fora. Era silêncio; o mundo inteiro estava silencioso. E você mesmo estava
silencioso. E sentia toda a Terra como formando parte de você.
PJ: Veja, senhor, esta é sua
declaração e eu estou escutando.
K: É claro, pode ser uma tonta insensatez.
PJ: Mas o fato é que eu não enxugo as lágrimas de outro ser humano.
K: Não.
PJ: Os sentidos trabalhando simultaneamente dão ao cérebro uma grande
clareza, uma grande vitalidade, uma criatividade germinativa, mas isso não
enxuga as lágrimas de outro.
K: Não.
PJ: Estou interessada em descobrir o que é que enxuga as lágrimas do
outro. Porque a menos que isso esteja aí...
K: Um momento. Pode o cérebro — essa é a minha pergunta — estar tão
quieto que a atividade do pensamento tenha cessado por completo nesse segundo
ou nesse período? Ou o cérebro está
sempre tagarelando?
PJ: Senhor, é que a única coisa legítima é estar totalmente desperto, quer
dizer, que os sentidos operam plenamente e, então, jamais se levanta sequer uma
interrogação sobre o outro?
K: É claro. Você nem sequer conhece o outro. Como pode perguntar-se...?
PJ: O que há fora do crânio...?
K: Sim. Tudo o que conheço está dentro do crânio. Correto? E você vem e
diz: “Enquanto você esteja ali dentro, não resolverá nada”. Você me assinala isto.
E eu lhe escuto porque vejo a lógica de tudo isto, o sentido comum de tudo isto,
e digo: “Muito bem”. Quero saber, pois, o que é que há de aquietar ao cérebro —
ainda que este tenha seus próprios ritmos. Temos tentado de tudo, mas o cérebro
jamais tem chegado a estar quieto.
A
meditação que se pratica não é quietude. Você trata de gerar quietude mediante o
controle, mediante todo tipo de truques. Mas essa não é a quietude e a beleza do
silêncio. Então, onde viemos parar?
PJ: Você vê, senhor, que tudo o mais é de feitura humana. Só isso é divindade e, desafortunadamente, não
sabemos como alcançá-lo, como entrar em contato com isso.
K: Outro dia conheci a um homem. É um grande pintor. Disse-me: “O que o ser
humano tem feito é o mais belo que há”. Para ele, essa era a finalidade de tudo.
Então apontei-lhe uma árvore e disse: “Ninguém tem feito isso”, e ele começou a
ver. “Sim”, disse, “isso é interessante”.
Rishi Vale
19 de dezembro de 1984
Fogo na mente
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