O PRIMEIRO PASSO É O ÚLTIMO PASSO
Interlocutor
P: Ontem você disse que o primeiro passo
é o último passo. Para poder compreender esta afirmação, eu penso que
deveríamos investigar o problema do tempo, e se é que existe uma coisa como o
estado final de iluminação. A confusão surge porque nossas mentes estão
condicionadas para pensar na iluminação como um estado final. É a compreensão
ou iluminação um estado final?
KRISHNAMURTI:
Veja, quando dissemos que o primeiro passo é o último passo, não estávamos
pensando no tempo como um movimento horizontal ou vertical? Não pensávamos em
um movimento ao longo de um plano? Dizíamos ontem que se pudéssemos descartar
completamente o vertical e o horizontal, estaríamos capacitados para observar
este fato de que onde quer que nos encontremos, a qualquer nível de
condicionamento, de existência, a percepção da verdade, o fato, nesse instante
é o último passo.
Tomemos
um escrevente em um pequeno escritório, com toda a infelicidade que isso implica;
o escrevente escuta e percebe. O homem escuta, e nesse momento realmente vê.
Esse ver e essa percepção são o primeiro e o último passo. Porque nesse
instante ele tocou a verdade e vê algo muito claramente.
Mas
o que ocorre depois é que ele deseja cultivar esse estado. Deseja perpetuá-lo,
converter a percepção em um processo, a libertação e a mesma percepção que
produz a libertação. Como consequência, fica preso e perde completamente a
qualidade da percepção.
O
que dizemos, pois, é que qualquer processo envolve uma finalidade. E por isso
pensamos que a percepção, a libertação, é uma finalidade, um ponto que carece
de movimento. Depois de tudo, os métodos, as práticas, os sistemas, implicam um
processo para uma finalidade.
Se
não existisse uma ideia conceitual de finalidade, não haveria processo.
P: Toda a estrutura do pensamento está
edificada sobre o movimento horizontal e, portanto, qualquer postulado de
eternidade tem que achar-se sobre o plano horizontal.
KRISHNAMURTI:
Estamos habituados a ler um livro horizontalmente. Tudo é horizontal, todos
nossos livros.
P: Tudo tem um princípio e um final.
KRISHNAMURTI:
E pensamos que o primeiro capítulo deve conduzir inevitavelmente ao último
capítulo. Sentimos que todas as práticas se dirigem a uma finalidade, a um
desenvolvimento. Tudo isso constitui uma leitura horizontal. Nossas mentes,
olhos e atitudes estão condicionados para funcionar no horizontal, e como conclusão
assiste uma finalidade. Esse livro se encerrou. Você pergunta se a verdade e a
iluminação é uma realização final, um ponto decisivo mais além do qual nada há?
P: Um ponto a partir do qual não é possível
deslizar para trás. Eu posso perceber por um instante, e compreender a
qualidade disso. Um pouco depois volta a surgir o pensamento. E digo-me: “estou
de volta ao velho estado”. Pergunto-me se esse “contato” tem em absoluto alguma
validade. Eu coloco uma distância, um bloqueio entre mim e este estado; digo
que se ele fora verdadeiro, não haveria surgido o pensamento.
KRISHNAMURTI:
Já vejo. Percebo algo que é extraordinário, algo que é verdadeiro. Quero
perpetuar essa percepção, dar-lhe continuidade, de modo que essa percepção-ação prossiga ao longo de toda
minha vida. Creio que ao é onde reside o erro. A mente tem visto algo
verdadeiro. Isso é o suficiente. Essa mente é uma mente muito clara, inocente,
que não tem sido ferida. O pensamento deseja continuar essa percepção através
dos atos cotidianos. A mente tem visto algo com muita clareza. Deixe-o aí. O
seguinte passo é o passo final. O deixá-lo é o passo seguinte, o passo final.
Por causa de que minha mente já está fresca para dar o próximo passo final, no
movimento diário do viver, ela não leva consigo coisa alguma. A percepção não
se converte em conhecimento.
P: É o eu que tem que cessar — o eu é como o
ator com relação ao pensamento —, ou é o ver?
KRISHNAMURTI:
Morra para a coisa que é verdadeira. De outro modo ela se converte em recordação,
o que então se torna pensamento, e o pensamento pergunta: como hei de perpetuar
esse estado? Se a mente vê com clareza — e só pode ver com clareza total quando
o ver é o cessar disso —, então a mente está em condições de iniciar um
movimento onde o primeiro passo é o último passo. Nisto não há envolvido nenhum
processo. Não existe o elemento do tempo. O tempo se introduz quando havendo
visto claramente o fato, havendo-o percebido, há um carregar com isso para
aplicá-lo no acontecimento seguinte.
P: O carregar com isso é o não ser, é o não
perceber.
KRISHNAMURTI:
De modo que todos os enfoques tradicionais que oferecem um processo, devem ter
um ponto, uma conclusão, uma finalidade. E tudo aquilo que tem uma finalidade,
um ponto final, não é absolutamente uma coisa viva. É como dizer que há muitos
caminhos para a estação. A estação está fixa. E a verdade uma finalidade que
quando alcançada se termina com tudo; a ansiedade, os medos, etc.? Ou isso
funciona de um modo completamente diferente? Quero dizer que uma vez que me
encontro no trem, e nada pode ocorrer-me? Significa que espero que o trem me
conduzirá para meu destino? Todos estes
são movimentos horizontais.
É
assim que um processo implica um ponto fixo. Todos os sistemas, métodos,
práticas, oferecem um ponto fixo, e prometem ao homem que quando ele o alcançar,
terminarão todas as dificuldades. Existe algo que seja verdadeiramente
atemporal? Um ponto fixo está no tempo. Está no tempo porque você o tem
postulado, porque tem havido um pensar em um ponto final, e o pensar sobre isso
está no tempo. Pode-se dar com isto que deve estar isento de tempo, que não tem
processo, nem sistema, nem método, nem direção alguma? Pode esta mente que de
tal modo se acha condicionada no horizontal, sabendo que vive horizontalmente,
pode perceber aquilo que não é horizontal nem vertical? Pode ela perceber por
um instante?
Pode
a mente perceber que o ver a tem purificado, e assim terminar com isso? Nisto
se encontra o primeiro e o último passo, porque a mente tem visto de um modo
novo. Você pergunta: uma mente assim, está sempre livre da inquietude? Creio
que é uma pergunta equivocada. Você ainda está pensando em termos de finalidade
quando formula esta pergunta. Chegou a uma conclusão, e, por conseguinte se
voltou outra vez ao processo horizontal.
P: A sutileza disso é que a mente tem que
formular perguntas fundamentais, mas nunca o “como”.
KRISHNAMURTI:
Terminantemente. Eu tenho visto com muita clareza, percebo. A percepção é luz.
Quero levá-la comigo como recordação, como pensamento, e aplicá-la ao viver de
todos os dias; portanto, introduzo nisso a dualidade, o conflito, a
contradição. De modo que digo: como hei de estar fora disto? Todos os sistemas
oferecem um processo, um ponto fixo e o fim para todas as dificuldades.
O
ato de perceber é a luz para a mente. Ela não se interessa mais na percepção
porque se se interessa, essa percepção se converte em recordação. Pode a mente
que vê algo com absoluta clareza, terminar com essa percepção? Então, aqui o
primeiro passo é o último passo. A mente está fresca para observar. Para uma
mente assim, terminam-se as dificuldades? Eu não formulo uma pergunta
semelhante. Quando isso suceda, verei. O que ocorre então? Quando pergunto: “terminará
isto com todas as dificuldades?”, já estou pensando no futuro e, por
conseguinte, estou preso ao tempo.
Mas
isso não me interessa. Percebo. Acabou-se. Vejo algo muito claramente — a
claridade da percepção. A percepção é luz. Coisa terminada. Portanto, a mente
jamais está presa ao tempo. Porque tenho dado o primeiro passo e também tenho
dado, a cada vez, o último passo.
Vemos
então que todos os processos, todos os sistemas, devem ser descartados
totalmente, porque eles perpetuam o tempo. Através do tempo você espera chegar
ao atemporal.
P: Eu vejo que os instrumentos empregados no
que você disse são o ver e o escutar. Estes são os movimentos sensoriais. É
também através de movimentos sensoriais que surge o condicionamento. O que é
que faz que um dos movimentos dissolva o condicionamento, e o outro o reforce?
KRISHNAMURTI:
Como escuto esta pergunta? Em primeiro lugar, não sei; vou aprender. Se aprendo
com o fim de adquirir conhecimentos, a partir dos quais atuarei, essa ação se
torna mecânica. Mas quando aprendo sema cumular — o que significa perceber,
escutar sem adquirir —, a mente está sempre vazia. Qual é então a pergunta?
Pode
a mente vazia estar alguma vez condicionada, e se é assim, por que se
condiciona? Uma mente que em verdade está escutando, pode alguma vez ser
condicionada? Sempre está aprendendo, sempre se acha em movimento. Não é um
movimento de algo para algo. Esse movimento não pode ter um começo e um final.
É algo vivo, jamais condicionado. Uma mente que adquire conhecimento para de
funcionar, é uma mente condicionada por seu próprio conhecimento.
P: É o mesmo instrumento que opera em ambos os
casos?
KRISHNAMURTI:
Não o sei. Realmente, não o sei. A mente que se acha repleta de conhecimentos, vê
de acordo com esses conhecimentos, de acordo com esse condicionamento.
P:
Senhor, ver é como ascender a luz. Em si
mesmo, carece de condicionamento.
KRISHNAMURTI:
A mente está cheia de imagens, palavras, símbolos. Ela pensa que através de
tudo isso, vê.
P:
Vê?
KRISHNAMURTI:
Não. Eu tenho uma imagem de você, e olho através dessa imagem. Isso é
distorção. A imagem é meu condicionamento. O vaso com todas as coisas dentro
segue sendo o mesmo vaso quando nada contém. O conteúdo do vaso é o vaso.
Quando não há conteúdo, o vaso não tem forma.
P: Então pode receber “o que é”.
KRISHNAMURTI:
A percepção só é possível quando não há imagem. Isso é muito simples. A
percepção é possível unicamente quando não há símbolo, nem ideia, nem palavras
— tudo o qual é imagem. Então a percepção é luz. Não é que eu vejo a luz, a
percepção mesma é a luz. Por onde, a percepção é ação. E uma mente que está
cheia de imagens, não pode perceber. Vê através das imagens e em consequência,
está deformada.
O
que temos dito é verdadeiro. Logicamente é assim. Tenho escutado isto. No fato
de escutar não há “eu”. No fator de carregar com isto, há “eu”. O “eu” é tempo.
Nova Delhi
19 de dezembro de 1970
Tradição e Revolução
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