O LIVRO DA HUMANIDADE
Pupul Jayakar (PJ): Senhor, ontem o senhor falou de ler o livro do “eu”,
que é o livro da humanidade. E formulou uma pergunta: Com que instrumento
olharei?
Bem,
agora, este livro jamais está completo. Enquanto o está se lendo, o está
criando. Na observação mesma de algo, também o futuro está sendo criado. Neste
estado de continua transformação, há uma ou duas questões que devem ser
esclarecidas. Desde a primeira vez em que o conhecemos, temos falado acerca da
história de “o que é”. Mas, qual é a natureza de “o que é”? Qual é a natureza
do que vemos? Porque, a menos que tenhamos bem claro qual é a natureza do que
vemos, o instrumento que vê jamais poderá ser claro. Poderíamos, então,
investigar a natureza de “o que é”?
Jiddu Krishnamurti (K): Toda a história do homem, que abrange quarenta mil de
anos ou mais, forma parte de nossa consciência; forma parte de nossa história
pessoal. Nós, como seres humanos, somos a história total do homem. Se admitimos
isso, então o único instrumento com o qual podemos ler esta história vasta e
complexa, é o pensamento. De fato, ele é o único instrumento que temos. O
pensamento tem construído o passado, e a mente humana é o resíduo, o depósito
de toda a acumulação do passado: a experiência passada, todas as superstições,
todas as crenças, os numerosos deuses, os diversos rituais, etc. Todo o
movimento do homem-no-tempo se encontra no fundo psicológico de cada ser
humano. Uma vez que vemos este fato, podemos começar a partir dali. A menos que
haja em nós clareza com relação a isto, como podemos ler o imenso e complicado
livro do conhecimento?
PJ: Obviamente, a herança humana é minha
herança. Não estão separadas.
K: Mas pouquíssimos estão dispostos a aceitar isso.
PJ: Não, Krishnaji, estou segura de que, num determinado nível, a maioria
das pessoas o aceitará.
K: O ponho em dúvida.
PJ: A herança humana não pertence a uma pessoa em particular. Tudo o que
tem ocorrido, as ideias que se tem formado no cérebro, de fato, todo o
desenvolvimento da raça humana, é comum a toda a humanidade.
K: Espere, Pupul. São pouquíssimos os que podem haver pensado acerca
disto. E se não o tem pensado, duvido de que tenham visto o fato que isso
implica. É o que primeiro desejo estabelecer. Se uns poucos de nós vêm a
verdade de que levamos — todo o tempo — esta vasta herança humana, então
podemos prosseguir. Devemos ver a verdade disso, não tão só o argumento ou a
estrutura verbal a respeito.
Achyut Patwardhan (AP): Senhor, você não admiraria que, se bem tudo isso pode
haver-se acumulado por causa do pensamento...?
K: Tempo é pensamento...
AP: Sim, tempo é pensamento... Senhor, quando eu digo que sou o herdeiro da
herança do homem, isso não é resultado de um processo sequencial do pensamento.
Quando digo que sou o herdeiro de tudo isso, não se trata de um pensamento
verbalizado.
K: Você como ser humano, como ser humano que tem estudado a história do
mundo, vê a verdade de que é o resultado de toda a herança humana? Vê que é
este vasto e complexo livro da história do homem? O vê não como um assunto de
argumentação, mas sim como um fato? Ou é um conceito argumentativo, ou é assim,
o é em seu sangue, em seu coração, em seus pensamentos, em sua via.
AP: Se está em meu sangue, em todo o meu ser, então não é um processo
sequencial de pensamento; é uma totalidade.
K: Por favor, não introduzamos a palavra “totalidade”. É assim. Se ao
menos os três víssemos a verdade disto, poderíamos prosseguir daqui.
PJ: É uma verdade tanto como o é o fato de que o corpo humano tem
evoluído. Deixe-me expressá-lo deste modo; é um fenômeno universal. Até este
ponto, aceito que sou a herança humana.
K: Correto. A partir daí, prossiga. Em mim reside toda a história do
homem: seus sofrimentos, suas ansiedades, sua solidão, suas infelicidades, sua
felicidade, etc. Esta vasta história está em mim. Agora, voltamos a pergunta
que levantamos outro dia. Qual é o instrumento com que lemos esse livro?
PJ: Antes de que examinemos o instrumento com o qual lemos o livro, o que é que lemos?
K: Enquanto você está lendo o livro, este vai modificando. Quando o lê, o
livro se move.
PJ: Sim. Enquanto leio, surge à existência o futuro; o futuro se projeta.
K: Espere um momento. Tenhamos claro o que entendemos pela palavra
“futuro”. O futuro é o ontem que se modifica no hoje e continua para o amanhã.
Assim, pois, o passado se converte em futuro.
PJ: O pensamento mesmo que surge agora, contém em si o germe do futuro.
K: Contém o germe do futuro se não há alteração alguma.
PJ: Devemos, pois, ser claros com relação à natureza deste “o que é”, acerca
do qual temos falado durante anos.
K: Não, Pupul, você está entrando em outra coisa. Comecemos por aqui. Eu
sou a totalidade do gênero humano, sou o depósito de todo o esforço do homem —
não quero usar a palavra “totalidade”. Não sou consciente desse depósito; não
conheço sua natureza, seu conteúdo, mas desejo estudá-lo. Se é possível, desejo
aprender a explorar a natureza da consciência. Desejo explorar, não minha
consciência, senão a consciência do homem.
PJ: Tão logo você disse que está lendo a consciência do homem...
K: ... que é o livro do homem. Veja, não existe “minha” consciência.
PJ: Sim, é claro. No momento em que digo que estou lendo a consciência do
homem e não minha consciência, a atitude para essa leitura experimentou uma
mudança total.
K: Isso é verdade. Se você está sob a ilusão de que esta consciência é sua — separada de todas as outras
consciências —, então estaremos nos movendo em diferentes direções. Por
desgraça, a maioria das pessoas — incluindo os numerosos psicólogos — crê que a
consciência está separada, que é individual.
PJ: Há ali uma armadilha.
K: Sim, há uma armadilha.
PJ: Dissemos que somos a história da humanidade, mas quando começamos a
investigar a consciência...
K: Que é a história do homem...
PJ: Mas se observamos objetivamente a história do homem...
K: Que é a consciência do homem...
PJ: ... Se observamos objetivamente a história do homem, a leremos de
certa maneira: leremos essa história nas enciclopédias. Mas tão logo vemos que
a história surge dentro de nós, dentro de nossa consciência, nossa resposta é,
de imediato, de uma natureza completamente diferente.
K: Estou chegando a isso. Naturalmente, se de fato se vê — depois de
examiná-lo e investigá-lo logicamente — que a consciência de si é universal, se
se pode ver que a consciência que existe dentro do indivíduo é a consciência de
todos os seres humanos, então modifica toda a sua atividade de percepção.
Correto? Bem, agora, considero esta consciência como “minha”? Neste ponto
devemos ser muito claros. Considero esta consciência como meu campo privado?
Veja, ao descobrir que todos os seres humanos estão isolados e que todos
sofrem, descubro algo tremendo. Descobrir a consciência de toda a humanidade é
uma percepção imensa.
PJ: Eu diria que a consciência da humanidade se revela em meu campo
privado.
K: Um momento. Você disse que, compreendendo “minha” consciência,
reconheço que é a consciência do homem. Estou de acordo com isso, mas em nenhum
instante devo insistir que é minha.
PJ: Não posso dizer que aquilo que se me revela em minha consciência é
único para mim. Forma parte da consciência total do homem, mas se revela em meu
campo pessoal e, portanto, minha relação com isso é muito diferente.
K: Você está dizendo que, na investigação dentro de minha consciência,
existe o descobrimento de que esta não é meu campo privado? Que, ao investigar
no que tenho chamado “minha” consciência como separada da de todos os demais,
descubro que aquilo que tenho chamado minha consciência não é senão a consciência
do resto da humanidade.
PJ: Mas isto não é completamente assim. Veja, a observação daquilo que
surge não tem espaço para este outro estado, ou seja, que essa é a consciência
da humanidade.
K: Não entendo muito bem.
PJ: Tomemos, por exemplo, a observação do sentimento de solidão ou de dor
que surge em si. Esta observação — o surgimento da solidão em minha consciência
— não traz ao primeiro plano o fator de que essa é a solidão de todos os seres
humanos. Nesse ponto, é somente solidão.
K: Nesta investigação de minha solidão ou de minha dor, que até agora tem
estado limitado escrupulosamente a meu campo privado, descubro este fato. Neste
descobrimento de que todos os homens são seres solitários e de que sofrem, o
que descubro é algo tremendo. Descobrir que toda a humanidade em seu conjunto
sofre, é uma percepção imensa.
PJ: O que é que dá origem a essa percepção? Vemo-la como através de um
microscópio. Surge a solidão, ou surge a dor. Então há um observar a respeito
dessa coisa que chamamos dor. O que é que dá entrada ao outro elemento, a
saber, que estou observando não minha pequena dor, senão a dor da humanidade?
K: Não. Olhe, Pupulji; tenho visto — como todos vocês devem tê-lo feito —
que donde quer que vou, a solidão e a dor marcham juntos. Isto é assim na
Europa, na América, na Índia. Este fator é compartilhado por todos nós. Dar-se
conta ou admitir para si mesmo — ainda como uma conclusão lógica — que esta
coisa é compartilhada por todos nós, é um grande começo. Veja, a mudança já
teve lugar.
PJ: Sim. Mas quisera voltar atrás. O que é que há de ser observado?
K: Observo a dor. Solidão e dor são sinônimos.
PJ: São respostas emocionais a uma situação. Subitamente sinto uma sensação
de contração interna.
K: O sentimento de uma grande perda.
PJ: E olho.
K: Não, não, não; você não olha. Sejamos claros. Suponha que se tenha
perdido um grande amigo ou a uma esposa a quem de verdade amava. O que é que
ocorreu realmente aqui? Há um findar dessa pessoa, e com esse findar está o
final de toda a relação que se tinha com essa pessoa. E prontamente, se adverte
quão absolutamente só está, porque esa tem sido a única relação que significava
algo. Por isso, quando subitamente desaparece, há um sentimento de grande
perda.
Bem,
agora, permaneça com isso, contenha-o só por um minuto; não permita que o
pensar ou qualquer outro sentimento interfira com esse estado. Se não foge
disso, se não o reprime nem o analisa, haverá descoberto subitamente este
fenômeno extraordinário, ou seja, que com a perda de uma pessoa ou de uma
conclusão que você considerava muito querida, se sente feito único, e que certo
estado da mente chegou a seu fim. Correto? Pode-se inventar um futuro, mas esse
futuro seguirá sendo uma invenção. O final aqui é um final sem futuro. Pode a
mente permanecer com este feito? Pode ela permanecer com este feito não como um
observador observando o feito? Porque o observador é o feito. O observador é esse estado e, portanto, não há diferença
entre o observador e a coisa que ele está observando. Ele é o sofrimento; ele é
esse final. É como uma joia que se estivesse segurando. Tão logo quer se
desprender dela, se penetra num estado de consciência completamente diferente.
PJ: Compreendo.
K: Então, a história da humanidade é minha história. Correto?
PJ: Sim.
K: Quero ler este livro. Deve ser um livro extraordinário. Não tem sido
escrito. Não há capítulos. Não há parágrafos. É tão só um imenso movimento.
PJ: Pode qualquer mente conter a imensidão disso?
K: Temos de começar aqui. Que é a mente e que é o cérebro? Podemos
continuar com isto? Interrogue-me sobre a marcha. O cérebro possui uma
capacidade infinita. Observe o que tem feito o mundo tecnológico... algo
incrível! Mas psicologicamente, tem se condicionado por causa da evolução —
sendo evolução o tempo.
PJ: Por causa do conceito de tempo.
K: Não. Por favor, examinemos isto devagar; seja cuidadosa. Veja que o
cérebro tem uma capacidade extraordinária no mundo tecnológico, e que na outra
direção, quer dizer, no mundo psicológico, não tem absolutamente se movido.
Devido a não ter se movido, não tem florescido. Está condicionado; é limitado.
Mas a mente não é limitada.
PJ: Quando você fala da mente, a que se refere?
K: A mente do universo, a mente da natureza; tudo o que tem sido criado e
se acha em processo de criação, é o movimento da mente. Portanto, não há
limites para a criação.
AP: Você está sugerindo que, quando eu digo que sou a herança total do
homem, não é o cérebro o que pode entender este fator?
K: É o cérebro quem entende este fator, porque o tem comunicado mediante
o pensamento e mediante palavras, e você o está considerando também mediante o
pensamento, mediante palavras. A comunicação é, pois, verbal e através do
pensamento. Senhor, por favor, não voltemos a isso...
AP: Atualmente, qualquer coisa que compreendo, a compreendo por meio do
cérebro.
K: Não, não.
PJ: Nos movemos completamente para outra dimensão que, se a compreendemos,
é esta: O cérebro tem feito coisas extraordinárias no campo da tecnologia, mas
no reino da psique segue estático. Estávamos falando sobre a leitura do livro
da humanidade, e minha pergunta foi: Pode um cérebro em particular conter isso?
E Krishnaji chegou ao cérebro e a mente. Disse que o cérebro, ao ser limitado e
ao não haver-se movido, só pode mover-se...
K: ... dentro de seu próprio circuito.
PJ: Sendo a mente a origem mesma da criação, não tem limites e, por
conseguinte, toda a história do homem se encontra dentro dela, se posso usar
essa expressão. Não quero expô-lo desse modo, mas...
K: Siga adiante. Exponha-o desse modo.
PJ: Quando você fala da mente, ela é todo o criado e em processo de
criação.
K: Pupul, sejamos muito claros e muito cuidadosos quando falamos de
criação. O pensamento tem criado, no mundo físico, não só as igrejas, os
templos e as mesquitas, senão também, todas as coisas que se encontram em seu
interior. O pensamento tem crido as guerras, tem criado o conflito entre o
homem e homem. O pensamento é responsável por tudo isto e, devido a que em si
mesmo é limitado, não pode perceber uma mente que é incomensurável. Mas,
obviamente, o pensamento trata de compreendê-la, porque essa é sua função. A
função do pensamento é reduzir tudo a sua atividade limitada, mecânica e
fragmentada. De acordo? E nós dizemos que, enquanto o cérebro esteja
condicionado, jamais poderá compreender a imensidade da natureza da mente. Se
você vê isto, verá também “sua” responsabilidade — desafortunadamente, temos
que usar palavras — enquanto a liberar ao cérebro de seu condicionamento, da
limitação que o pensamento lhe impôs. Sim, o tem captado. É isso.
PJ: A responsabilidade consiste em liberar de seu condicionamento ao
cérebro condicionado que, por isso, não pode mover-se fora de seus sulcos
habituais, ou consiste em colocar fim a esse movimento do cérebro?
K: O qual é a mesma coisa.
PJ: Não.
K: Não entendo.
PJ: Acabar com seu condicionamento, é o que o cérebro encontra que é
incapaz de fazer por si mesmo?
K: Não.
PJ: Ou se trata de manter ao cérebro em suspenso, de modo tal que a
percepção, que é a mente, pode operar?
K: Você está expressando em linguagem moderna o que diz a tradição
antiga, ou seja, que “Deus está em mim”. Em mim está Deus ou algum elemento não
contaminado, o qual, então, atuará sobre isso...
PJ: Você tem traçado a diferença entre o cérebro e a mente. Tem traçado a
diferença entre o estado condicionado e o não condicionado. Tem traçado a
diferença entre aquilo que tem um final...
K: Não tenho falado acerca de um final.
PJ: Tudo quanto está no cérebro tal como funciona, se acha fragmentado.
K: Sim. Tenho dito que devemos diferenciar entre os dois significados das
palavras. Digo que o cérebro, que é limitado, não pode compreender o que é a
mente. Só pode apreender, chegar a perceber isso, quando não há condicionamento.
PJ: Mas você foi mais longe.
K: Não deveria ter falado disso! (Risos).
PJ: Mas tem falado.
K: Foi algo desafortunado. O Dr. Bohm e uns quantos discutiram a mesma
questão. Olhe, Pupul, isso é realmente interessante. Deixemos a mente tranquila
por um momento. Veja qu capacidade extraordinária tem o cérebro no mundo
tecnológico e científico. Veja a cirurgia e todos os experimentos biológicos
que se realizam. Tem transplantado um coração humano! O incrível mundo
cientifico é a atividade do pensamento. Mas o pensamento é limitado porque o
conhecimento é limitado. A interrogação é se poderá alguma vez estar livre de
sua limitação. Não pode, porque nasceu da limitação. Não sei se vê isto.
PJ: Posso perguntar algo? Qual é a diferença entre o pensamento e o
cérebro?
K: O pensamento é a atividade do cérebro.
PJ: Há algo no cérebro aparte do pensamento?
K: (Riso). Não cairei nessa
armadilha. Você está voltando agora ao velho...
PJ: Não é assim. Se se aceita que o cérebro tem uma capacidade tremenda e
que usamos tão só uma parte muito pequena dele, e também que se pudéssemos
fazer com a psique o que temos feito com a tecnologia...
K: Então o universo está aberto para si. Isto é o que estamos dizendo. O
cérebro tem sido capaz de fazer, tecnologicamente, estas coisas tão
extraordinárias. Bem, agora, se o cérebro pode liberar-se das limitações da
psique, será incrível o que poderá fazer. Eu digo que, então, o cérebro é a
mente; então é totalmente livre. Não há sentido algum de divisão, senão um
sentido de plenitude, de totalidade... Não quero entrar nisso, você entende,
Pupul...
PJ: Se o cérebro tem tido a energia, o impulso, o discernimento necessário
para dedicar-se à tecnologia, por que é...?
K: Por que vocês não estão dispostos a mudar e tomar o outro caminho?
PJ: Já o vê, o homem está preparado para penetrar no espaço e morrer. Não
é, portanto, um problema de morte ou desaparição...
K: Mas atrás disso há muitíssima coisas: orgulho nacional, elogios, fama,
ser um herói, etc. Não é como se o homem estivesse realmente preparado para
morrer. Tem sido condicionado, por uma imensa propaganda, para morre por seu
país. Veja o que o homem tem feito. Em nome de Deus, em nome do país, tem
queimado, torturado a outros homens.
PJ: Qual é o elemento que gera nos seres humanos a curiosidade para
impulsionar-se em direção à tecnologia?
K: Creio que a educação é a responsável por isso. Porque cada cultura tem
colocado ênfase, exceto algumas poucas culturas mortas, em que se há de
ganhar-se a vida, em que há de trabalhar, trabalhar, trabalhar, em que deve
estudar, memorizar, repetir, repetir. Isso é tudo o quanto se diz. Esta manhã
conheci alguns estudantes daqui, do Vale de Rishi. Desafortunadamente, são a
mesma coisa. Não tem pensado em nada aparte da matemática, da história, da
geografia... memorizar, repetir, boas notas, um bom emprego, etc. Se lhes
pedisse que se afastassem um pouco disto, se sentiriam perdidos. Nem sequer tem
dedicado um só pensamento ao outro.
AP: Veja, senhor, são pouquíssimos os cientistas que chegam a esta
pergunta impossível. Só uns quantos deles estão dispostos a mover-se numa nova
direção. Assim, também há uns poucos que enxergam a crise atual de
superpopulação da humanidade. Há pouquíssimas pessoas hoje, com motivação suficiente
para dizer que esta é a mais importante situação para o homem e que o cérebro
deve ser explorado.
PJ: Estão explorando o cérebro mas não a psique.
K: Senhor, exploram o cérebro, suas funções. Só considere-o. O cérebro
tem uma extraordinária capacidade — não gosto de usar a palavra “capacidade”,
porque esta se baseia na experiência, e a capacidade baseada na experiência não
é, em absoluto, capacidade. Há um tipo diferente de movimento que não se baseia
nos conhecimentos, na experiência. Senhor, o cérebro tem feito coisas
extraordinárias no mundo tecnológico, mas psicologicamente, não tem se movido
uma polegada depois de todos estes milhares de anos.
Então,
se há uma ruptura, não haverá divisão entre a mente e a energia do cérebro.
Compreende? A energia do cérebro tem feito o trabalho tecnológico...
PJ: Sim, mas por causa disto, jamais se tem liberado.
K: Para o outro.
AP: Essa é a energia da atenção.
K: Não use a palavra “atenção”; só atenha-se à palavra “energia”, senhor.
Psicologicamente, minha energia é praticamente zero. E estou dizendo que,
quando a limitação tem sido desbaratada e se se tem passado por ela, há uma
energia completamente diferente. Até agora, só a temos canalizado através da
tecnologia, que não é senão a atividade do pensamento e, por onde, essa energia
é limitada.
AP: Concordo.
PJ: Temos que sondar algo mais dos instrumentos que o homem possui.
Examinemos esses instrumentos. Um é o pensamento, e os outros são os sentidos.
K: As respostas sensoriais; a sensibilidade dos sentidos.
PJ: Sim.
K: Espere, espere, fique aí!... a
sensibilidade dos sentidos é o pensamento, que são o mesmo.
AP: Como, senhor?
PJ: Isso é o que devemos discutir. A sensibilidade dos sentidos e o
pensamento, são a mesma coisa?
K: O mostrarei. Você acaba de captar algo, mas não se limite a aceitar o
que digo (Risos). A sensibilidade dos
sentidos. Nossos sentidos são controlados
pelo pensamento, não é verdade?
PJ: Não.
K: Só um momento; não resista. Espere; posso deixá-lo. Estamos perdidos
se você oferece resistência.
PJ: Não, não vou oferecer resistência.
K: Meus sentidos são agora modelados, controlados pelo pensamento.
Tomemos, por exemplo, meu sentido de paladar: qualquer coisa amarga não me
agrada, e qualquer coisa doce, sim. Há interferido, pois, o pensamento. A
questão é se há um movimento de todos os sentidos — a totalidade dos sentidos —
sem a interferência do pensamento. Primeiro considere a pergunta.
Alguma
vez observou, com todos os seus sentidos operando, o vasto movimento do mar, o
movimento das marés e o enorme poder das ondas? Se fez isso, não há
interferência alguma do pensamento. Quando o pensamento interfere com os
sentidos, deve inevitavelmente limitá-los ou controlá-los. Vou ater-me a isto.
PJ: O que você disse é assim. Há um fato e meus sentidos respondem
conforme ao condicionamento do pensar. Mas há uma resposta dos sentidos...
K: ... sempre parcial, porque o pensamento está sempre vigiando,
controlando os sentidos: devo, não devo.
PJ: Em certo instante, pode haver água refletida na água.
K: O que quer dizer com isto?
PJ: Pode ser como a água que se reflete na água. Pode haver um estado onde
não há nada contido nesses sentidos.
K: Correto.
PJ: Então, quero avançar com isto, se você não me repreende.
K: (Risos). Não o farei.
PJ: Quer dizer, há alguma conexão entre os sentidos — não tenho isto muito
claro. Senhor, quando se pensa em seu próprio cérebro, pensa-se nele como
estando aí em alguma parte da cabeça (se
toca na cabeça). Mas quando os sentidos não operam a partir do pensamento,
quando não contém pensamento, o lugar onde operam se transforma.
K: Correto. Isso é tudo o que estou dizendo. É bastante simples. Quando
os sentidos operam de maneira completa, não há centro. Quando você olha
completamente o movimento do mar, ou o extraordinário espetáculo do Himalaia
sob um céu sem uma só nuvem, não há centro, não há pensamento. Tão pronto o
pensamento interfere, há um centro.
PJ: Temos discutido o pensamento, temos discutido os sentidos. Existe um terceiro
movimento?
K: Sim. Essa é toda a questão.
AP: O que é isso? Poderia repetir, por favor?
PJ: Temos falado do pensamento, temos falado dos sentidos. Pergunto se há
algum outro movimento.
K: Ah! Isto é difícil. Existe um instrumento... não, um instrumento não,
senão um movimento, um estado que não seja estático e que, sem dúvida, não seja
um movimento do pensar? Essa é sua pergunta, não é verdade?
PJ: Não um movimento do pensar, não um movimento dos sentidos...
K: Espere, consideremos cuidadosamente essas duas coisas: “não
pensamento” e “não movimento dos sentidos”. Quando você observa o mar com todos
os seus sentidos, não há movimento sensório, não é verdade? É claro. Os
sentidos não são conscientes de que se acham intensificados. Pergunto-me se me
expresso com clareza. Qualquer coisa que é excelente, não se dá conta de sua
própria excelência. A bondade no mais elevado sentido da palavra, não sente que
é boa.
PJ: Você fala da essência de todo pensamento, da essência de todos os
sentidos. Então o instrumento é a essência mesma.
K: Não; deixe estar por um momento. Quando há uma excelência
intensificada dos sentidos, os sentidos não são conscientes disso. Nós nos
damos conta de que os sentidos estão plenamente despertos, só quando o pensamento
interfere. Então, o estado de intensificação dos sentidos desaparece.
Bem,
agora, quando o pensamento mesmo se dá conta de sua tremenda limitação, há uma ruptura
desta interferência. Mas dar-se conta disso não é verbalizá-lo; é ver realmente que o pensar não tem lugar algum
no movimento... Espere um instante, devo examinar isto cuidadosamente. Pupul, a
que estamos tratando de chegar?
PJ: Estamos lendo a história da humanidade e nos perguntamos qual é o instrumento
com o qual investigamos.
K: Sim, o direi. A história da humanidade é um movimento infinito. Não tem
começo nem fim. Se se admite que não tem fim... Mas meu cérebro, ao ser limitado,
busca um fim. Concordam? Portanto, abordo o livro para averiguar qual é o final
de tudo isto.
PJ: A busca é a busca do final.
K: É claro, é claro. Para compreender que não há um final... você se dá conta
do que isso implica?
Dar-se
conta de que não há um final é penetrar em algo chamado amor. O amor carece de final.
Posso amar minha esposa; ela morre ou eu moro, mas a coisa chamada amor contínua;
não tem final. Mas, com me identifiquei com minha esposa, digo que meu amor morreu
ou começo a amar alguma outra mulher. E tudo isso não é mais que prazer... Não quero
examinar isso agora.
Então,
como se Le o livro? Não é lido em absoluto. Não há livro que ler. E, quando se chega
a este ponto verdadeiramente profundo, quer dizer, que este livro não tem principio
nem final, compreende que se é o livro.
Isto não quer dizer que se se tornou eterno, senão que este movimento da vida não
tem fim. Então, é o universo. Então, é o cosmo. Então, é a totalidade.
Acreditam
que tenho falado tolices? Se alguém escutasse tudo isto — alguém que fosse sério,
desde já, o sonharia tão extraordinariamente extravagante? Mas o que estou dizendo
não é extravagante. É lógico e muito claro, e pode ser exposto na Sorbona, em Harvard
ou em Deli. Isso conterá a essência.
Vale de Rishi
19 de dezembro de 1982
Fogo na mente