O DESPERTAR DA ENERGIA
Interlocutor
P: Quando estávamos discutindo o Tantra,
você disse que há um modo de despertar a energia. Os tântricos se concentram e
certos centros físicos, com o qual liberam a energia latente em nossos centros.
Você diria que isto tem certa validade? Qual é o modo de despertar a energia?
KRISHNAMURTI:
Concentrar-se em vários centros psicofísicos implica um processo de tempo, não
é assim? De modo que gostaria de perguntar o seguinte: pode essa energia
despertar-se sem um processo de tempo?
P: Em todo este processo, o método tradicional
existe uma postura correta e um equilíbrio na respiração. Se o corpo não sabe como
se sentar direito e como respirar corretamente, não pode haver um cessar para o
pensamento. A fim de levar o corpo e a respiração a um estado de equilíbrio, se
torna inevitável um processo de tempo.
KRISHNAMURTI:
Pode haver uma forma completamente diferente de abordar este problema. A
tradição começa com o psicossomático; a postura, o controle respiratório, e
gradualmente passa por diversas formas de concentração até o pleno despertar da
energia. Este é o método aceito. Não existe um modo de despertar esta energia
sem passar por todas estas práticas?
P: Isso é como o que dizem os mestres do Zen:
que o verdadeiro mestre é aquele que descarta o esforço. Sem dúvida no Zen,
para chegar ao total domínio do arco, é necessária uma tremenda destreza
técnica. Somente quando existe a completa maestria, desaparece o esforço.
KRISHNAMURTI:
Você começa por este extremo antes que pelo outro — sendo este extremo tempo,
controle, energia, perfeição, perfeito balanço.
Tudo
isto me parece como tratar com uma parte muito pequena de um campo muito vasto.
A tradição concede grande importância ao passado, à respiração, à postura
correta. Todas estas coisas estão limitadas a um abrigo do campo, e através
desse abrigo você espera obter a iluminação. O abrigo então se torna um truque.
Por meio de algum tipo de acrobacias psicossomáticas se espera que se agarre a
luz, a totalidade do universo. Eu não creio que aí esteja a iluminação — não é
através de um abrigo. Isso é como ver o céu por uma pequena janela e não sair
jamais para olhá-lo diretamente. Sinto que esse modo é um modo absurdo de
abordar algo que é absolutamente imenso, atemporal.
P:
Você ainda admitiria que a postura
correta e a respiração apropriada fortalecem a estrutura da mente?
KRISHNAMURTI:
Quero abordar tudo isto de uma maneira completamente diferente. Para fazê-lo é
necessário descartar tudo quanto se tem dito a respeito. Vejo que o abrigo é
como uma vela à luz solar. A lida da vela se mantém muito cuidadosamente acesa
enquanto brilha o sol. Você não se interessa na luz do sol senão que se ocupa
em acender a vela.
Há
outras coisas envolvidas nisto; há o despertar da energia que até agora tem
sido desperdiçada.
Na
ação de centralizar a energia, de acumulá-la em sua totalidade, estão envolvidas
a atenção e a completa eliminação do tempo. Penso que estes são os principais
fatores — o tempo, uma atenção não forçada que não é concentração, que não está
centrada em torno de uma parte, e a acumulação de energia. Penso que estas são
as coisas fundamentais que se há de compreender, porque a iluminação deve
consistir e consiste em abarcar e compreender esta vida imensa — sendo a vida o
viver, morrer, o amar, é toda esta ansiedade, e o ri mais além dele.
Os
mestres tradicionais também estão de acordo em que se deve ter a atenção para
ir mais além do tempo. Mas eles são os adoradores do abrigo. Eles utilizam o
tempo para ir mais além do tempo.
P:
Como, senhor? Eu adoto uma postura e
dirijo minha atenção. De que modo está envolvido o tempo nisto?
KRISHNAMURTI:
É a atenção um produto do tempo?
P: Não. Você faz uma pergunta e há uma atenção
imediata. É esta atenção produto do tempo?
KRISHNAMURTI:
Não, certamente não.
P: Estando aí sua pergunta e minha atenção,
nisso o tempos está envolvido? Se você o considera desse modo, o processo de
autoconhecimento que prossegue constantemente, também envolve tempo. Vinte anos
atrás minha mente não haveria conhecido a qualidade atual. Este estado não
existia então.
KRISHNAMURTI:
Vamos devagar. Estamos tratando de compreender algo que está fora do tempo.
P: A tradição diz que é necessário preparar o
corpo e a mente.
KRISHNAMURTI:
Eu pergunto: você diz que através do tempo aperfeiçoa o instrumento, não é
assim? Eu questiono isso. Você pode aperfeiçoar o instrumento através do tempo?
Bem, vejamos antes de tudo quem é o que aperfeiçoa o instrumento. É o
pensamento?
P: Não teria validade dizer que é só o pensamento.
Há muitos outros fatores envolvidos.
KRISHNAMURTI:
O pensamento, o conhecimento que lhe pertence, a inteligência, todos estão
sustentados pelo pensamento. Dizer que o pensamento deve cessar e que deve
surgir a inteligência, constitui outra vez uma ação do pensamento. A declaração
de que o pensamento e o pensador são uma só coisa é também uma ação do
pensamento.
Você
diz que o instrumento se aperfeiçoa por meio do pensamento. Para mim o enfoque
tradicional de aperfeiçoar ao instrumento através do ato de pensar e assim ir
mais além do pensamento, e o ato de cultivar a inteligência e ir mais além do
tempo, tudo isso segue estando na área do pensamento. É assim. Portanto, nesse
mesmo pensamento está o pensador. Esse pensador diz: isto deve ocorrer, isto não
deve ocorrer. Esse pensador converteu-se no desejo de realização. O desejo de
aperfeiçoar o instrumento é parte do processo de pensar, é parte do pensamento.
P: Neste círculo que você acaba de descrever
também está envolvido o ato de questionar o instrumento mesmo, vale dizer, o
pensamento.
KRISHNAMURTI:
Mas o questionador é parte do pensamento. Você pode dividir, subdividir, mudar,
mas tudo isso está dentro do campo do pensamento e isso é tempo. O pensamento é
memória, o pensamento é de natureza material; o material é memória. Ainda seguimos
funcionando dentro da área do conhecido, e o homem que cultiva o pensamento diz
que ele chegará ao desconhecido através do conhecido, que aperfeiçoando o
conhecido alcançará a iluminação. Tudo isto é assim mesmo o pensamento.
P: Se tudo é pensamento, então se faz
necessário criar um instrumento novo.
KRISHNAMURTI:
Quando o pensamento diz que deve tornar-se silencioso e se torna silencioso,
isso é ainda pensamento. O que fazem os tradicionalistas é trabalhar dentro da
área do pensamento que é o abrigo do vasto campo vida. Mas isso é ainda o
resultado do pensamento. O atman é
resultado do pensamento. O brahman
que o homem tanto respeita, é o resultado do pensamento. Aquele que o experimentou
nada tem que ver com o pensamento. Isso ocorreu, simplesmente, mas vieram seus
discípulos e disseram: “Faça isto, faça aquilo”. Tudo isto está dentro do campo
do pensamento.
P: Então não há modo de proceder.
KRISHNAMURTI:
Veja como o pensamento aplica truques a si mesmo — eu devo ter equilíbrio, eu
devo adotar a postura correta a fim de que a energia vital possa fluir
livremente — não é verdade? O pensamento é do passado. O pensamento pode criar
o mais maravilhoso dos instrumentos — por ir a Lua, a Venus mas o pensamento
jamais poderá alcançar “o outro”, porque o pensamento nunca é livre; é velho,
está condicionado. O pensamento é a estrutura total do conhecido.
P: O que você quer significar por “o outro”?
KRISHNAMURTI:
O que não é isso.
P: O que não é isso?
KRISHNAMURTI:
Isto está dentro do campo do tempo; o pensamento, que é tempo. Aquilo está no campo do silêncio.
Portanto, averigue se a dor pode terminar. Salte do abrigo. Descubra o que é a
vida, o que significa a morte, o que significa terminar com a dor. Se não se der
com isto, aplicar truques com o pensamento não tem sentido algum. Você poderá
despertar todas as Kundalinis, mas
com que propósito?
Portanto,
aqueles que ensinam como despertar as Kundalinis,
ou como tornar-se um especialista no manejo do arco segundo o método Zen, ou
como adquirir pericia na prática de diversas formas de Tantra, estão todos
presos ao tempo, que é pensamento. Vejo isso e vejo que isso está sempre
girando em círculos. O círculo pode ser mais amplo, mas segue sendo um círculo,
significa escravidão, a qual é tempo.
Em
consequência, eu não tocaria nisso. Não o tocaria porque vejo a natureza, a
estrutura, o caráter deste abrigo. O abrigo carece de sentido para mim. Quando
existe este sol maravilhoso, todos os siddhis
e poderes são como muitas luzes de vela.
Ao
escutar isto, pode a mente eliminá-lo? O mesmo escutar é o eliminar. Então você
tem aquela. Então há atenção, amor; tudo está aí. Como vê, isto é válido
enquanto que o outro não o é. O exercício do cérebro é para poder descobrir a
verdade e o falso, para ver o falso como falso. Veja, quando o menino
Krishnamurti viu a verdade, isso se encerrou; renunciou a todas as
organizações, etc. Não teve que treinar-se para “ver”.
P: Mas você teve uma preparação, foi submetido
a um vigoroso treinamento do corpo.
KRISHNAMURTI:
Assim dizem. Por causa de que o corpo havia sido descuidado, eles disseram que
se a ele não se lhe cuidava, adoeceria.
P: Mas senhor, separado da disciplina física,
teve instruções de como devia educar-se a esse menino.
KRISHNAMURTI:
Coisas como pentear o cabelo, fazer asanas,
pranayama; tudo estava nesse nível.
B:
É algo muito sutil. Eu não digo que o que
ocorreu estivesse de algum modo relacionado com a iluminação, mas é necessário
atender ao corpo.
KRISHNAMURTI:
Sim, é necessário conservar o corpo saudável.
P: Senhor, se posso assinalá-lo, você tem as
maneiras de um iogue, tem a aparência de um iogue, seu corpo adota a postura de
um iogue. Você tem estado praticando asanas, pranayama todos os dias, durante
anos. Por que?
KRISHNAMURTI:
Isso não é importante. É como manter limpas minhas unhas. Estou dizendo que o
outro é infantil; gastar anos em aperfeiçoar o instrumento. Tudo o que você tem
que fazer é “observar”.
P: Mas se você nasceu cego, só quando uma
pessoa como você, vem e diz “observem” ocorre algo. A maior parte das pessoas
entenderá aquilo de que você fala.
KRISHNAMURTI:
A maior parte das pessoas não escutaria tudo isto. O deixaria de lado.
B: O outro é mais fácil; dá algo, enquanto que
isto não dá nada.
KRISHNAMURTI:
Veja, eu estou terrivelmente interessado nisto: como se manteve a mente de
Krishnamurti neste estado de inocência?
P: O que você está dizendo não é pertinente.
Você pode ser uma exceção. Como deu com isso o menino Krishnamurti? Teve
dinheiro, organização, teve tudo e sem dúvida abandonou tudo. Se eu tomasse a
minha neta e a deixasse com você, e ela não tivesse outra companhia que a sua,
ainda assim ela não teria isso.
KRISHNAMURTI:
Não, não a teria. (Pausa). Descarte
tudo isto.
P: Quando você diz isso, é como o koan do Zen;
o ganso que está fora da garrafa. Você teve um centro ao que necessitou
eliminar?
KRISHNAMURTI:
Não.
P: Assim que você não teve um centro que
eliminar? Você é o único e, portanto você é um fenômeno; de modo que não pode
dizer-nos que você faz isto e então isso ocorreu. Você só pode dizer-nos “não é
isto e se nos afogarmos ou não, nenhum outro pode dizer-nos. Isto o vemos.
Poderemos não estar iluminados, mas não estamos “desiluminados”.
KRISHNAMURTI:
Penso que é tremendamente interessante ver que qualquer coisa que o pensamento
toca, não é o real. O pensamento é tempo. O pensamento não pode tocar o
real.
Nova Delhi
16 de dezembro de 1970
Tradição e Religião
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