A NATUREZA DE DEUS
Pupul Jyakar (PJ): Podemos, por favor, discutir e investigar a natureza
de Deus?
Jiddu Krishnamurti (K): Você pergunta o que é a criação, ou se a Realidade, a
Verdade, é Deus?
PJ: Por trás dessa palavra “Deus” se encontra milênios de busca humana em
prol de algo absoluto, algo incontaminado...
K: Sim, de algo universal.
PJ: Se podemos discutir tudo o demais, por que não é possível investigar a
natureza “daquilo”, chame-se Deus ou criação, ou base da existência?
K: Penso que é possível se se pode liberar a mente de todas as crenças e
de todas as consequências e implicações tradicionais da palavra “Deus”. Podem o
cérebro e a mente estar completamente livres para investigar aquilo que os
israelitas chamam “o inominável” e os hindus chamam “brahman” ou o “princípio supremo?”
Todo mundo crê na palavra Deus.
Podemos deixar de lado todas as crenças? Porque só então será possível
investigar.
PJ: Mas, sendo uma palavra, é um depósito de um milhão de anos de conteúdo.
Portanto, quando a mente diz que está livre da crença, que quer dizer
exatamente?
K: Uma pessoa disse: “Creio em Deus; Deus é onipotente e onipresente.
Existe em todas as coisas”. Essa é a aceitação tradicional dessa palavra com
todo seu conteúdo. Pode-se estar livre dos muitos milhares de anos dessa
tradição? Pode-se, tanto consciente como inconscientemente, estar livre dessa
palavra, palavra que tem julgado um papel tremendo no mundo islâmico e no
cristão?
PJ: Em certo nível, é possível dizer que se está livre, como, por exemplo,
se você me perguntara se eu creio em Deus, se creio em Krishna, Rama ou Siva.
Mas aí não termina tudo.
K: Não.
PJ: Há um sentimento de Deus que vai muito mais além de tudo isto. Parece
estar integrado no fato da vida mesma. Veja, existe um sentimento de que sem
“isto” nada poderia existir, o sentimento de que “isto” é a base da existência.
K: Discutiremos isso, a base da
qual tudo se origina? Como descobre-se acerca dessa base? Como disse, se pode descobrir só quando é absolutamente
livre. Geralmente, nosso ser inconsciente está carregado, completamente afetado
com esta...
PJ: Existe a possibilidade de um estado de ser onde acabe excluído qualquer
movimento mental como a crença, e onde é negada a crença em qualquer Deus
particular.
K: A nega-se a verbalmente ou a fundo, quer dizer, na raiz mesma de nosso
ser? Pode-se dizer “Não sei nada” e deter-se aí?
PJ: Eu não posso dizer “Não sei nada”. Mas posso dizer que o movimento do pensar que implica a crença num Deus
determinado, não aparece na mente. Portanto, não há nada externo que deva negar
como crença. Mas sigo sem conhecer o estado “Não sei nada”, muito diferente do
movimento externo da crença.
K: Poderíamos, então, investigar isso?
PJ: Como se procede?
K: Pode-se negar, completamente, todo o movimento do conhecer? Não o
conhecimento tecnológico, é claro. Pode negar o sentimento de que se conhece,
de que sabe? Profundamente dentro de nós se acha a experiência do homem, a qual
diz que Deus existe. Desde logo, tem havido profetas e visionários que tem dito
que não há tal coisa como Deus, mas suas palavras só se agregam às crenças do
homem, aos seus conhecimentos.
PJ: Deixe-me expressá-lo deste modo. Compreendeu-se a maneira de negar o
movimento que surge...
K: O movimento do pensar que surge com a crença?
PJ: Sim, mas no fundo, o latente, os milhares de anos que formam a matriz
de nosso ser, como se alcança isso?
K: Isso é o que se tem que fazer.
PJ: Sim, mas, como o alcança?
K: Poderíamos começar investigando se Deus existe, senão investigando,
por que a mente humana tem trabalhado, tem lutado para o vir a ser, um vir a
ser que se baseia no conhecimento, no movimento constante, não só externamente
senão também internamente?
PJ: Estão ambos relacionados?
K: Quais ambos?
PJ: Começamos com uma investigação na natureza de Deus, e logo seguimos
falando da matriz e do vir a ser. Estão relacionados?
K: Não estão relacionados? Penso que o estão. Assim que consideremo-los.
Veja. Nosso ser se baseia essencialmente nesse sentimento que jaz no mais fundo
de nós, de que há algo extraordinário, incrivelmente imenso; falo acerca dessa
parte de nosso ser, esse conhecimento, essa tradição, que é a matriz, o solo
sobre o qual nos achamos parados. Enquanto isso, se encontra aí, não se é
verdadeiramente livre. Podemos investigar isso?
Interlocutor (I): Há, em cada ser humano, um movimento inerente para
algum ser desconhecido? Em outras palavras, existe uma inerente busca de algo
que está mais além do que se tem sido ensinado, mais além do que se reconhece
de sua herança? Isso é genético?
K: A genética está implicada no tempo.
PJ: Na genética está a matriz.
K: Nela está envolvido o tempo, e o processo de crescimento, evolução.
Correto?
I: Sim, um movimento biológico.
K: Nisso que eu queria chegar. Ainda assim se trata de algo inerente,
pode-se esvaziar completamente seu ser de tudo isso? Esvaziá-lo da acumulação
de um milhão de anos? Examinemos.
Pode-se
esvaziar seu ser daquilo que pode haver sido implantado desde a infância? Pode
esvaziá-lo dos séculos de crença acerca de que há algo mais além de tudo isso?
Creio que essa é a crença mais profundamente arraigada. É algo que se acha no
inconsciente — sempre estão aí as coisas profundas. E penso que, se queremos
investigar, também essa crença deve desaparecer.
PJ: Pode-se ir até o último movimento da mente inconsciente? Senhor, é
possível que a crença chegue a seu fim, que seja exposto o inconsciente? Como é
possível experimentar aquilo que não se pode formular, aquilo que se encontra
mais além de tudo quanto contém o conhecimento de qualquer pessoa?
K: Entendo.
PJ: Posso examinar a fundo a totalidade de meu conhecimento e, sem dúvida,
este não conterá aquilo.
K: Não. Mas, não alcança você a ter nisto um discernimento direto, a
saber, que deve existir a negação completa de tudo quanto o homem produziu com
seu pensamento?
I: Você nos pede que neguemos, que recusemos tudo, ainda nossos pequenos
discernimentos que nos atraíram até este ponto, ou seja, o ponto onde nos damos
conta de que há “algo” no que nos está dizendo.
K: Pupulji formula uma pergunta completamente diferente, senhor. Ela
pergunta se podemos investigar, explorar isso que chamamos Deus, a origem, o
princípio de todas as coisas.
I: Mas você não disse que, inclusive para começar, temos que colocar de
lado todas as coisas, todas as crenças, de fato, colocar de lado o solo mesmo
no qual nos achamos parados? Pergunto-me se nossos pequenos discernimentos e
nossas percepções não se mesclam com isso.
PJ: Agora entendo. Sim, o que nós consideramos como discernimentos têm que
desaparecer.
I: Então, como se começa a investigar? Você nega inclusive a base para
perceber algo.
PJ: Não. Mas o discernimento findou. Portanto, já forma parte do passado,
como qualquer outro recordação. Eu compreendo a negação de tudo o que surge no
cérebro. Mas, as capas do inconsciente, o solo sobre o qual estamos parados,
posso negar isso? Quem sabe formulo a pergunta equivocada. Quem sabe jamais
possa haver uma negação disso.
K: Espere um momento. O homem tem tentado negar tudo de diversas
maneiras. Tem jejuado, tem torturado a si mesmo, mas sempre tem permanecido
ancorado em algo.
PJ: Sim.
K: Como os grandes místicos cristãos; estavam ancorados a Jesus, e se
moviam a partir daí.
PJ: Posso perguntar-lhe algo? Pensa que estamos ancorados em você?
K: Quem sabe, mas isso é irrelevante.
PJ: Isso é irrelevante.
I: Não estamos ancorados em nossas poucas percepções?
K: Sim, estão, desenganche-se;
levantem ancoras...
I: Pode-se liberar-se de estar ancorado à maioria das coisas, mas posso
estar com respeito a pergunta?
K: Oh, sim, sim.
I: Em outras palavras, todas as respostas acerca de Deus, da Realidade,
etc., estão profundamente arraigadas dentro de nós. Isso talvez possa ser
negado, mas...
K: Eu não formularia essa pergunta: “Que é Deus?” Porque então meu cérebro
começaria a criar um montão de palavras.
I: A mim me parece que já temos formulado a pergunta e temos ido mais além
das respostas. Mas atrás de tudo isso persiste a investigação.
K: O que você quer dizer com “persiste a investigação”?
I: Quero dizer que a pergunta acerca de se há algo mais, parece
encontrar-se de maneira inata dentro de nós. Em outras palavras, o movimento
para esse interrogante parece ser inato em nós.
K: Se minha investigação é um movimento para a compreensão do que
chamamos Deus, esse movimento e, em si, uma escravidão.
I: Por quê?
K: O que quer dizer o seu “por quê”? Obviamente, movimento significa
mover-se para algo. E uma ação, um movimento, implica tempo. Por que você introduz
tudo isto?
I: Trato de penetrar no que você está dizendo.
K: Não usemos palavras que contém implicações de tempo, implicações de “ir
para algo”. Ir para algo, tratar de encontrar algo, implica tempo, e isso deve
cessar.
I: Então, como Pupul pode formular essa pergunta?
K: Essa é toda a questão. Nos perguntamos, em primeiro lugar, se se pode
fazer tal coisa. Isso é possível? Ou seja, é possível estar totalmente em e com
o não movimento? Porque do contrário, estaremos sempre com o movimento, o qual
é tempo e pensamento e tudo isso.
Antes
de tudo, por que queremos encontrar o significado que há por trás de tudo isto?
PJ: Existe uma parte de nós que segue...
K: ...Que segue buscando, indagando, exigindo. Existe?
PJ: Olhe, senhor, no escutar do ouvido, no ver do olho, na palavra
pronunciada, não se encontra, por acaso, todo o conteúdo do que é Deus? Não é
necessário eliminar a matriz?
K: Oh, sim.
PJ: Não deveria o ouvido escutar-se?
K: Você pode eliminar a matriz?
PJ: Não sei.
K: O que quer dizer isso? Quando você usa a palavra “matriz”, o que
entende por essa palavra?
PJ: Só sei que mais além do horizonte de minha mente, mais além das crenças
óbvias...
K: Exclua tudo isso; é superficial.
PJ: ... há em minhas profundezas e profundezas. Você geralmente usa, aqui e
ali, uma frase muito significativa: “Joguem com o profundo”. Por conseguinte,
também aponta às profundidades que se acham por debaixo da superfície. Esta profundidade, se encontra dentro da
matriz?
K: Não, não, não se pode encontra-se ali. Minha pergunta é: Por que
desejamos averiguar se há algo mais além de tudo isto?
PJ: Porque, Krishnaji, não posso fazer nada com respeito a essa matriz.
K: Pergunto-me o que você chama de matriz.
PJ: Refiro-me com isso a esta profundidade que não posso trazer à
superfície, à luz natural da consciência, da percepção, da atenção. Entendo por
“matriz” aquilo que não entra na esfera da ação de meus olhos e ouvidos, mas
que segue estando aí. Sei que está aí. Sou “eu mesma”. Ainda quando não seja
capaz de vê-lo, de tocá-lo, tenho um sentimento de que quem sabe, se houvesse
um adequado escutar a verdade...
K: Então, por que usa a palavra “profundidade”? Porque “profundidade”
está necessariamente lidada ao mensurável.
PJ: Uso a palavra “profundidade” para implicar aquilo que está mais além
de meu conhecimento. Veja, se está dentro dos contornos de meu horizonte, se é
acessível aos meus sentidos, então é mensurável. Mas se não é acessível, nada
posso fazer a respeito. Não tenho o instrumento para chegar a isso.
K: Como sabe que tudo isso não é imaginação? O conhece como uma
experiência?
PJ: Sim.
K: Ah! Cuidado, cuidado.
PJ: O problema é que sinto que se se diz “se”, é uma armadilha, e ainda se
diz “não”, é uma armadilha.
K: Quero ter muito claro, Pupul, que ambos entendemos o significado da
palavra. Eu falo de um sentir.
PJ: Certamente, senhor, uma palavra pode ser pronunciada com ligeireza,
desde a superfície da mente, e também pode ser pronunciada com uma grande
profundidade atrás dela. Eu estou dizendo que existe esta base que contém toda
a história do homem. Há vida nessa expressão; ela tem grande peso e
profundidade. Não se pode perceber essa profundidade? Não posso, pois,
investigá-la sem que você me pergunte se não é tudo um assunto de imaginação?
Porque, se é assim, então não há nada que se fazer, senão tão só olhar e
escutar. Não há pergunta alguma que se possa formular.
K: Compreendo, Pupul, mas essa profundidade, é a profundidade do
silêncio? O silêncio significa que a mente, o cérebro, está totalmente quieto;
não é algo que vem e vai.
PJ: Como posso responder a isso?
K: Penso que se pode se não há um sentimento de apego a isso, nem há
envolvida nenhuma recordação. Comecemos de novo.
Todo
o mundo crê em Deus. No Ceilão se transtornavam muito quando eu dizia que a
palavra “Deus” é criada pelo pensamento. Estão de acordo? Desafortunadamente,
eu não sei o que é Deus. Comecemos com isso. Realmente, não sei o que é Deus.
Provavelmente, jamais o descobrirei, e não estou interessado em descobri-lo. O
que me interessa é se a mente, o cérebro, pode estar completa e totalmente
livre de toda a experiência acumulada do conhecimento. Porque se não está,
funcionará sempre dentro de seu campo. Este poderia expandir-se enormemente,
mas está sempre confinado a essa área. Veja, não importa quanto se acumule,
porque isso estará sempre dentro dessa área, e se a mente se afasta dessa área
e diz: “Devo descobrir”, continuará com o mesmo movimento. Não sei se me
exponho com clareza.
Meu
interesse radica em saber se o cérebro, a mente, pode estar completamente livre
da contaminação do conhecimento. Para mim, isso é extraordinariamente
significativo, porque se não o está, jamais poderá achar-se fora dessa área.
Jamais.
Qualquer
movimento da mente fora dessa área, segue estando ancorado no conhecimento;
será, então, só uma busca de conhecimento acerca de Deus. O que me interessa,
pois, é se a mente, o cérebro, pode permanecer completamente imóvel.
Quando
você se enfrenta com um interrogante desta classe, se nega tanto a
possibilidade como a probabilidade disso, então, que resta? Me segue?
Eu
poderia ter uma percepção direta, a profundidade de percepção no movimento do
conhecer, de modo tal que essa percepção detenha o movimento? É a percepção
direta, o discernimento instantâneo, o que detém o movimento; não sou eu que o
detenho, nem o cérebro o detém. Quando esse movimento se detém, isso implica o
findar do conhecimento e o conhecimento de outra coisa. Em consequência, isso é
só o que me interessa: o findar consciente, profundo, do conhecimento.
Existe
este sentir imenso que advém quando nos damos conta de que somos todos um. O
sentir que surge da unidade, de uma harmoniosa unidade, é extraordinário, mas
se se o estimula, carece de valor, porque então só está se perpetuando a si
mesmo. De acordo?
I: O “eu” que tem sido formado por todas as relações do mundo, que tem
criado toda a beleza, toda a cultura, toda a arte do mundo, esse “eu”, não tem
absolutamente nenhuma relação com o que chamamos Deus?
I2: Poderíamos falar um pouco mais acerca deste questionamento que parece
tão completo? Poderíamos discutir o não ter âncoras? O não ter âncoras,
implica, por acaso, descartá-lo totalmente?
K: Você não vê a importância disso? E, se a vê, se pergunta se esse ver é
tão só intelectual?
I2: Sim, senhor, vejo realmente a importância disso; mas, ao que parece,
isso não é suficiente.
PJ: De algum modo, há algo que estamos passando por alto.
K: Olhe, Pupul, suponha que esta pessoa — K — não estivesse aqui. Como voe
abordaria este problema? Como encararia o problema de Deus, o problema da
crença? Como o encararia, de fato, sem nenhuma referência de ninguém?
Afastemo-nos
daí. Veja, cada um de nós é totalmente responsável. Não estamos nos referindo a
autoridades passadas, aos santos. Cada um é totalmente responsável em sua
resposta a este interrogante. Você tem
que responder.
PJ: Por que deveria ter que responder?
K: Direi-lhe por que. Você tem que responder por que forma parte da
humanidade, e a humanidade está se formulando esta pergunta. Cada santo, cada
filósofo, cada ser humano, em alguma parte de suas profundezas, se formula esta
pergunta.
I: Senhor, esta pergunta, não é, em certo sentido, errônea?
K: Isso é o que disse. Mas você tem que responder a ela sem nenhuma
referência ao que K tenha dito ou não tenha dito. Eu venho a você com estas
perguntas. Para mim, como ser humano, estas perguntas são tremendamente
importantes.
PJ: Posso perguntar-lhe algo? Como se recebe uma pergunta como esta e a
deixa na consciência?
K: Pupul, ou você refletiu sobre ela e reuniu uma enorme informação dos
livros, ou jamais pensou para nada nesta pergunta. Esta pode ser a primeira vez
está se enfrentando com ela, assim que vá devagar, muito devagar.
PJ: Senhor, você tem uma maneira de receber uma pergunta de formulá-la e,
depois, permanecer com ela.
K: Sim, isso é certo.
PJ: Quando nós formulamos uma pergunta assim, há um movimento da mente para
ela. Com você, quando tal pergunta é formulada, não há movimento algum.
K: Tem razão. Agora você está perguntando “como” se alcança este estado?
PJ: Sei que não posso alcançá-lo.
K: Não, mas está correto ao formular essa pergunta. Compreende, senhor, o
que Pupul disse? Se pergunto a você como ser humano, tal como os seres humanos
o têm feito durante um milhão de anos: O que é Deus? Eu venho e lhe formulo
esta pergunta. Está pronto para respondê-la, ou contém silenciosamente a
pergunta? A contém, compreende? Porque desde esse conter mesmo — esse conter no
que não há reação nem réplica alguma — surge a resposta.
I: Você poderia dizer algo acerca da natureza desse conter?
K: Falo de um conter em que não há nenhuma onda, nenhum motivo ou
movimento, um conter sem vestígio algum de tentar achar a resposta.
I: Com quase todos nós ocorre que podemos não tentar achar a resposta,
podemos, a principio, permanecer silenciosamente com uma pergunta não
respondida, mas cedo ou tarde surge uma resposta a partir dos poços profundos
do inconsciente, resposta que ascende para preencher esse espaço.
K: Eu sei. Agora, espere um momento. Formulo-lhe uma pergunta: Você crê em
Deus? Você pode dizer: “Não sei”. Ou imediatamente diz: “Não creio”, “Creio”,
“Quem sabe exista”, etc. Pode olhar a pergunta, tão só olhá-la, sem dizer
absolutamente nada? Pode? Veja, se essa pergunta é feita a um devoto cristão,
ele imediatamente diria: “É claro que creio em Deus”. Obterá também uma reação
imediata se fizer a pergunta a um hindu; é como apertar um botão. Porém eu não sei realmente se há ou não há
Deus.
PJ: Então não há nada que a mente possa fazer.
I: Você está dizendo, senhor, que o “conter” é algo que ocorre fora desta
área?
K: Desde já.
I: No conter, não há uma investigação?
K: Não, veja, a menos que você compreenda isto, pode conduzi-lo a
muitíssimos mal-entendidos. Senhor, os computadores podem ser programados por
dez professores diferentes, todos os quais possuem conhecimentos
extraordinários, uma enorme informação. Bem, agora, o computador analisa todas
as perguntas que lhe são formuladas, faz uma síntese e contesta. Nossos
cérebros também trabalham desse modo. Temos sido programados durante milhões de
anos, e o cérebro reage imediatamente. Se o cérebro não está programado,
observa, vê. Bem, agora, podem nossos cérebros permanecer sem uma só
programação?
I: Mas esta atividade de observar não é o conter, verdade? Você pode
dizer algo acerca do conter?
K: Diga você.
I: Eu não tenho nada que dizer.
K: Force; tem que força, pressionar.
I: Você tem falado de um vaso que contém a água, e da terra que contém o
lago. Há algo em que contém, tal como o vaso e a terra contém?
K: Não, não, estamos nos afastando. Pupulji formulou-me uma pergunta, uma
pergunta que tem grande profundidade. Você escutou essa pergunta, a recebeu:
foi sua resposta a ela?
I: Qual pergunta, senhor?
K: Ela esteve falando da profundidade, da base. Qual foi a sua reação a isso?
I: Só estive escutando; só procurava compreender.
PJ: Veja, senhor, no geral, quando à mente é formulada uma pergunta, é como
quando deixamos cair ao solo um grão de açúcar: as formigas correm para ele de
todas as partes. De maneira similar, quando plantamos uma pergunta, se
despertam todos os movimentos, todas as reações, e se orientam para a pergunta.
Então,
pode a pergunta ser formulada sem os movimentos?
K: Sem as formigas, sim. Me disseram que, quando o cérebro não está
trabalhando, quando está quieto, tem um movimento próprio. Nós nos referimos ao
cérebro que se acha num constante movimento, cuja energia é o pensamento. O
problema é que o pensamento se aquiete. Como você aborda esse problema? Pode
questionar completamente o pensamento? Não responda de imediato. Olhe a
pergunta, contemple-a. Isto não é um exame. Você pode ter uma mente capaz de
não reagir de imediato a uma pergunta? Pode haver uma ação dilatória, quem
sabe, um conter a pergunta indefinidamente?
Retrocedamos,
Pupul. Pode-se, absolutamente, não ter âncoras, nem o conhecimento, nem a
crença? Posso ver que ambos carecem de significado? Penso que é absolutamente
essencial não conceder significação a nada.
Esse
estado da mente, se encontra fora do tempo? É um estado de verdadeira e
profunda meditação, uma meditação na qual não há sentido algum de realização,
nada? O estado de meditação em que o meditador não é o fundamento, a origem de
todas as coisas.
PJ: Você está dizendo, pois, que o meditador não é a base sobre a qual se
apoia a meditação?
K: Obviamente, não o é.
PJ: Pode essa base de apoio existir sem o meditador?
K: Se há um meditador, não existe a base.
PJ: Mas, pode haver meditação sem o meditador?
K: Estou falando de uma meditação sem
o meditador.
PJ: A meditação, não é um processo humano?
K: Não.
PJ: Investiguemos se isso é possível. A meditação não pode achar-se livre
do ser individual. Não pode haver meditação sem o meditador. Você poderá dizer
que o meditador não é a base da meditação, mas...
K: Não, espere um momento. Enquanto eu
esteja tratando de meditar, a meditação não existe.
PJ: de acordo.
K: Portanto, só há um cérebro, uma mente, que se encontra em estado de
meditação.
PJ: Sim.
K: Então, essa é a base. O universo se encontra num estado de meditação.
E essa é a base, essa é a origem de
tudo; e isso é possível unicamente quando não existe o meditador.
PJ: E quando não há âncoras...
K: Absolutamente. Isso ocorre quando há uma liberdade total com respeito
ao sofrimento. O estado de meditação advém com a completa terminação do “eu”.
Sabe,
Pupul?, o começo pode ser o processo eterno; quem sabe haja um eterno começo.
Veja,
pergunta-se se é totalmente possível para um cérebro, para um ser humano, estar
completamente, absolutamente livre do meditador. Isto é essencial, correto? O
meditador trata de meditar a fim de chegar a alguma parte, a fim de ocultar algo,
a fim de colocar sua vida em ordem. Qualquer que seja o modo em que o expresse,
seja que medite para colocar sua vida em ordem, ou ponha sua vida e ordem e depois
medite, segue operando o meditador. A questão é se é possível a liberdade a respeito
do meditador. Se tal liberdade fosse possível, não se suscitaria ao interrogante
acerca da existência ou não existência de Deus, porque então essa meditação é a
meditação do universo.
É
possível uma liberdade tão absoluta? Faço essa pergunta. Não conteste; contenha-a.
Vê o que quero dizer? Deixá-la atuar. Ao contê-la, a energia se acumula, e essa
energia atuará — não você —. Compreende?
(Larga pausa).
Então,
temos compreendido a natureza de Deus?
Brockwood Park
27 de maio de 1981