A CONTENÇÃO DO MAL
Interlocutor
P: Um dos problemas mais vitais que tem
preocupado ao homem é a necessidade de colocar um freio ao mal. Isso parece
como se em certos períodos d história, devido a diversas circunstâncias, o mal dispôs
de um campo mais vasto no qual operar. As manifestações do mal são tão amplas,
os problemas do mal são tão complexos; que o indivíduo não sabe como se
entender com eles.
Qual diria você que é o modo de encarar
o mal? Existe uma coisa como o mal independente do bem?
KRISHNAMURTI:
Pergunto-me o que é que você quer significar. O arbusto está com muitos
espinhos — chama isso de mal? O mal é para você uma serpente venenosa? Nenhum
animal selvagem é mal — em o tubarão nem o tigre. O que é então o que você
entende com a palavra “mal”? Algo danoso? Algo que pode ocasionar tremenda
aflição, um grande sofrimento? Algo capaz de destruir ou impedir a luz da
compreensão? Você chamaria a guerra de mal? Você diria que os generais, os
governantes, os almirantes são o mal porque ajudam a produzir guerras,
destruição?
P: Podemos chamar o mal àquilo que deforma e destrói
a natureza das coisas.
KRISHNAMURTI:
O homem é cruel. Acaso ele é mal?
P:
Se está obstruindo, se através de uma
intenção maligna faz que certas coisas se desviem...
KRISHNAMURTI:
Perguntava-me simplesmente o que significa essa palavra “mal”. Que significado
tem o mal para uma mente dotada de inteligência, uma mente que se dá conta de
todos os horrores do mundo?
P: O mal é aquilo que degrada a consciência,
que traz escuridão.
KRISHNAMURTI:
Isso o faz o medo, a dor, o sofrimento. Você diria que o mal é estimulado pelo
medo? É o mal um meio para fomentar a dor? O mal é o condicionamento social ou
ambiental que perpetua as guerras? Todas
estas coisas limitam a consciência e criam escuridão e dor. O mal, conforme a
ideia cristã, é o demônio. Tem o hindu alguma ideia a respeito do mal? Se é que
a tem, qual seria? Pessoalmente, eu nunca penso no mal.
Você
diria que no florescer da bondade o mal não existe em absoluto, que tal estado
não conhece o mal? Ou o mal é uma invenção da mente que engendra o medo e cria
o bem?
P: Posso dizer algo? Se penetra-se
profundamente nos recônditos rincões da mente humana, na história da humanidade,
sempre tem existido o feiticeiro que transtorna as leis da natureza, que provoca
o medo e traz a escuridão. É este um dos mais estranhos elementos da mente
humana. É a causa deste terrível pavor ao desconhecido — essa escuridão sem
limites, sem fim —, que reina ao longo de toda a história do homem, que tem
estado proferindo, em busca de proteção, um grito que repercute através da
consciência humana. Isto é o desconhecido, a incomoda matriz do medo. Não basta
sugerir que isso é o medo. É tudo isso e muito mais.
KRISHNAMURTI:
Você disse que muito profundamente no homem, nos lugares mais recônditos da
mente, existe o medo ao desconhecido, a algo que o homem não pode alcançar ou
imaginar? Que estando tão profundamente amedrontado, reclama a proteção dos
deuses, e que a qualquer coisa que desperte esse perigo, a qualquer insinuação
dessa coisa oculta, ele a chama de mal?
P: Essa escuridão existe profundamente na
consciência humana todo o tempo.
KRISHNAMURTI:
O mal é o oposto do bem, ou é completamente independente do bem?
P: É independente do bem.
KRISHNAMURTI:
Você disse que é independente. Portanto, é o mal algo que em si mesmo não tem
relação alguma com a beleza, com o amor? Contra o mal, o homem sempre tem
buscado proteção, como o faria contra um animal. Existe este escuro perigo
oculto. O homem é consciente deste perigo, tem medo e mediante encantamentos,
rituais, pregações, etc., busca afugentá-lo e precaver-se contra ele. O arbusto
que está tão cheio de espinhos se protege contra o animal e o animal, como não
pode alcançar as folhas, chamaria isso de mal. Existe uma força semelhante, uma
personificação semelhante do mal que esteja completamente afastada do bem, e da
beleza? Existe toda essa ideia de que o
mal está combatendo o bem. Este mal se vê personalizado nas pessoas, e assim o
mal está sempre lutando contra o bom e o generoso. Eu pergunto: é o mal algo
completamente independente do bem? Você deve ser muito cauteloso para não se
tornar supersticioso.
P: O “medo” é oposto à bondade. Mas os medos
mais escuros não são com relação a “alguma coisa”.
S: Não é só proteção e medo, e o medo que
envolve o mal, senão a proteção com o fim de progredir.
P: A exigência de proteção: os mantras como
feitiços, as mandalas como diagramas mágicos, e os mudras como gestos mágicos,
tinham como objetivo proporcionar proteção contra o mal.
KRISHNAMURTI:
Veja, quando você penetra profundamente dentro da consciência, alcança um ponto
de onde o desconhecido aparece como o escuro, e aí você se detém porque está amedrontado.
A mente penetra fundo até um ponto, e abaixo desse ponto está o sentimento do
tenebroso vazio. Devido a escuridão, você tem as rezas, os encantamentos, e por
causa do medo à escuridão você roga por proteção.
Pode
a mente travessar a escuridão? Vale dizer, pode a mente não experimentar o
medo? Pode ela operar de tal modo que a escuridão se converta em luz? Você pode
penetrar a escuridão que tanto teme, e ao que tem designado como “o mal”? Você
pode penetrar isso tão completamente que a escuridão não exista? Então, o que é
o mal?
P: Quando se desenha o ritual mandala, a entrada
na mandala se faz por meio do feitiço e o mudra. Neste penetrar dentro da
escuridão, qual é o feitiço que abrirá as portas?
KRISHNAMURTI:
A consciência como pensamento se investiga a si mesma — sua profundidade.
Quando penetra se encontra com esta escuridão. Esta investigação não é um
processo de tempo. E você pergunta qual é o feitiço ou a energia que haverá de
penetrar até o fundo mesmo da escuridão, qual é essa energia e como há de
surgir.
A
mesma energia que começou a investigar está ainda aí, mais forte, mais vital e
medida que avança, que penetra. Por que você pergunta se há necessidade de uma
energia maior?
P: Porque a energia se esgota. Penetramos até
um ponto e não vamos mais longe.
KRISHNAMURTI:
Por causa do medo, da apreensão por algo que não conhecemos, dissipamos a
energia ao invés de concentrá-la. Eu quero penetrar em mim mesmo. Vejo que o
penetrar em mim mesmo é um movimento igual ao externo. Implica penetrar no
espaço. Ao penetrar no espaço há certa exigência de energia. Essa energia deve estar
livre de todo esforço, de toda distorção. A medida que penetra, a energia vai
reunindo impulso. Se não tem um desvio pelo qual escapar, não há distorção. Se
torna mais profunda, mais ampla, mais forte. Então se alcança um ponto onde
está a escuridão. E como se penetra nessa escuridão com esta tremenda energia? (Pausa).
P: A primeira questão com que começamos era:
como pode colocar-se freio ao mal. Você tem dito que a medida em se penetra no
mar da escuridão, a escuridão deixa de existir; existe a luz. Mas quando o mal está
nos seres humanos, em certas situações, em certos acontecimentos, há alguma
ação que possa conter, frear esse mal?
KRISHNAMURTI:
Eu não colocaria desse modo. A resistência ao mal reforça o mal. Por isso, se a
mente vive na bondade, não há resistência e o mal não pode alcançá-la. De modo
que não há contenção do mal.
P: Então só há bondade?
KRISHNAMURTI:
Temos que retroceder a outra coisa — a mente tem penetrado na escuridão, e
terminou com a escuridão. Mas há um mal que seja independente de tudo isso? Ou o
mal faz parte da bondade?
Você
vê que na natureza, o grande vive do pequeno, e o maior vive do grande. Eu não
chamaria a isso de “mal”. Há o deliberado desejo de causar dano aos outros;
isso é parte de mal? Eu desejo ferir a outro, isso é parte do mal? Eu quero ferir
a você porque você me disse algo, isso é o mal?
P: Isso é parte do mal.
KRISHNAMURTI:
Então isso implica em vontade. Você me fere, e porque sou orgulhoso quero
vingar-me. O desejo de vingança é uma ação da vontade. Seja vontade de reagir
ou vontade de fazer o bem, ambas são o mal.
P: Voltado a mandala; o mal pode penetrar
quando as entradas não estão protegidas. Aqui, os olhos e os ouvidos são as
entradas.
KRISHNAMURTI:
Você diz então que quando os olhos veem claramente, quando os ouvidos ouvem
claramente, o mal não podem entrar. Retrocedamos: o propósito deliberado, o
conjunto de propósitos, o pensar sobre isso, tudo o qual constitui a profunda
intenção de causar dano, é parte da vontade. Eu penso que é nisso onde radica o
mal — no deliberado ato de ferir. Você me fere, eu o firo, peço desculpas e
isso se encerra. Mas se me aferro a isso, se o retenho, se o fortaleço
deliberadamente, se sigo um plano de ação para feri-lo — o qual é parte da
vontade que o homem tem de causar dano ou de fazer o bem —, então isso é o mal.
Há,
pois, um modo de viver sem executar a vontade? No momento em que resisto, de um
lado tem que estar o mal e do outro o bem, e ambos estão relacionados entre si.
Quando não há resistência, não há relação entre ambos. E o amor é então um
espaço aberto, sem palavras, sem nenhum tipo de resistência. O amor é a ação
que surge deste vazio. Tal como o descrevemos ontem, quando os elementos
masculinos se voltam deliberadamente afirmativos, exigentes, possessivos,
dominantes, o homem convida o mal. E a mulher, submetendo-se, submetendo-se,
submetendo-se deliberadamente com o fim de dominar com a submissão, também
convida o mal.
De
modo que onde está a astuta perseguição do domínio — que é a operação da
vontade —, ali está o principio do mal.
Contra
esse mal tratamos de nos proteger. Nós mesmos criamos o mal e sem dúvida
desenhamos um círculo, um diagrama ao redor do umbral da casa para buscar
proteção contra esse mal, e no interior a serpente do mal está operando.
Mantenha
limpa sua casa e esqueça todos os mantras;
nada poderá feri-lo. Pedimos proteção aos deuses que temos crido. É realmente
algo bem fantástico.
Todas
as guerras, todos os ódios raciais, os ódios acumulados que o homem tem estado
armazenando, isso deve constituir-se em uma coleção de ódio, em um estoque de
mal. Os Hitlers, os Mussolinis, os Stalins, os campos de concentração, os
Atilas, tudo isso deve acumular-se, deve ter corpo em alguma parte. Assim
também o sentimento de “não mate, seja bondoso, seja amável, seja compassivo”,
isso também deve acumular-se em alguma parte.
Quando
as pessoas tratam de proteger-se Cintra um dos dois — o mal —, assim mesmo
estão se protegendo contra o bem, porque o homem tem criado ambos. Pode, pois,
a mente, penetrar na escuridão? No mesmo ato de penetrar nela, a escuridão se
dissipa.
Nova Delhi
15 de dezembro de 1970
Tradição e Revolução
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