Este caminho do auto-adestramento está dividido em
dois estágios e contém diferentes práticas. O primeiro estágio é intelectual e
consiste de observações que propiciam compreensão; o segundo é místico e
provoca a compreensão. No primeiro estágio formamos uma corrente mental de
auto-indagação, tentando descobrir aquilo que realmente somos e localizar o ser
vivo que pensa e sente dentro do corpo; ao passo que no segundo a mente
racional é desligada, o assim chamado consciente é posto em recesso e o erroneamente
chamado subconsciente pode assim aparecer.
Os componentes da personalidade
são sujeitos a uma rígida análise durante o período da meditação. O corpo e
suas partes, órgãos e sentidos, são cuidadosamente examinados em pensamento,
visando-se apurar se o eu reside ou não nele, e, através de numerosas análises,
verifica-se que tal não acontece. Elimina-se então o corpo da análise e as
emoções são submetidas a um exame semelhante. Aqui, uma vez mais, a
temporalidade das emoções e as implicações da frase instintiva, “Eu sinto”,
indicam que o eu é alguma coisa à parte.
As faculdades da mente: imaginação, raciocínio e percepção são semelhantemente
observadas e analisadas; descobre-se que o eu não é inerente em nenhuma dessas
funções. O próprio intelecto é cortado em pedaços, verificando-se que não passa
de um conglomerado de pensamentos. Observamos os pensamentos no processo e
depois tentamos transfixá-los na mística quietude da qual provêm. Afinal o eu consciente é referido a um único
pensamento. Do grande silêncio e vazio anteriores à mente, o pensamento do eu é
o primeiro surgindo do eu pessoal interior à consciência. Dele proveio a
multidão de outros pensamentos que criaram o conceito de um ser pessoal dotado
de existência própria. Toda a personalidade desenvolveu-se em torno dessa única
raiz-pensamento. Erradicando-se esse pensamento primordial não restará senão a Vida Impessoal.
Se persistirmos e nos dedicarmos
a frequentes meditações sobre o tema, o esforço propiciará o mais elevado
emprego criativo da lógica e, em última instância, iremos referir esse
pensamento à sua origem, o eu à sua toca e a consciência ao seu estado
primordial indivisível.
No final desta análise metal e
mente deverá, portanto, ser silenciada tanto quanto possível e um estado emocional
de quase-oração deverá sobrepor-se. Aquela quietude da qual o eu surgiu deve ser o objeto dessa devoção. O próprio eu é imobilizado e tornado inerte. Toda
a nossa atenção deverá ser focalizada na misteriosa vacuidade anterior a ele. É
a esta altura que a eletrizante orientação de um verdadeiro Iniciado — se
tivermos a boa sorte de encontra-lo — torna-se de poderosa ajuda.
Mas antes de
conseguirmos essa quietude, precisamos dominar a tendência dos pensamentos a
divagar-se e dissipar-se, e chegar àquela concentração de atenção que é tão
essencial; em consequência alguns acessórios da prática mental se fazem
necessários e breve serão apresentados. Primeiro existe um exercício
respiratório a ser feito; ele acalma a mente. A seguir há um
exercício de vista, que fixa a atenção e induz a um estado concentrado. A
cessação da atenção no campo externo coloca a atenção no campo interno.
Atingido esse estado, que acontecerá então? Se o esforço tiver sido corretamente
executado, cria-se uma espécie de vácuo provisório na consciência, mas a
Natureza, tendo horror ao vácuo, rapidamente reajusta as coisas. A investigação
mental cessando então, fica assegurada uma
revelação interior. Os pensamentos banidos são substituídos pela
Universal Mente Superior; esta, por sua vez dá mais tarde lugar ao divino Eu
Superior, que entra no campo de nossa consciência. Esta investigação
traz consigo “a paz que ultrapassa a compreensão” na expressão de São Paulo.
(Melhor tradução seria: “A paz que ultrapassa o intelecto”).
Uma vez
consumado o salto, o verdadeiro eu revela-se à mente estupefata. Somos então compelidos a uma quietude mental
absoluta, porque compreendemos estar diante de uma presença divina. Trata-se de
uma experiência que não pode ser suplantada. Ela romperá todas as ilusões tolas
e desfará todos os sonhos errôneos. A confusão e a contradição desaparecerão
com o escuro. A iluminação inundará de um brilho radiante os recantos escuros da
mente. Nós sabemos, e, sabendo,
aceitaremos. Pois descobriremos que o coração do nosso ser é também o coração do Universo.
E isso é bom.
Depois, a
tarefa que se resumia num retiro
temporário transforma-se na criação de um hábito de auto-recolhimento ao
qual se deve recorrer sempre que necessário durante o dia e onde quer que
estejamos, até que surja uma disposição fixa e prevalecente quando o coração
estiver para sempre imerso no Único, mesmo estando a cabeça e as mãos ocupadas
com outras coisas.
Devemos ter
presente que uma frieza e insensibilidade não bastará durante a análise; este
caminho exige que coloquemos nele o coração, tanto quanto a cabeça.
A esta altura
também é importante compreender que a duplicação intelectual dos pensamentos
dada nessa análise meditativa é por si só insuficiente; se a análise fria e
crítica pudesse por si só alcançar o sutil reino do espírito, muitos pensadores
deste mundo não se teriam transformado em materialistas; não, algo mais é
requerido. Esse algo mais é a inspiração íntima no sentido da verdade, um
desejo sincero e genuíno de guindar-se à região espiritual. Devemos colocar de
lado todos os demais desejos durante o período da auto-investigação. Essa
inspiração atua como uma força propulsora e, sem ela, um detalhamento seco e
intelectualizado do ego poderá levar a resultados estritamente negativos. O que
se deseja então é induzir estados em que o pensamento seja incendiado pelo
sentimento; e criar emoções quando a mente é inflamada pelas centelhas da
inspiração espiritual. Se seguirmos cuidadosamente as instruções, tal resultado
será conseguido. Desta forma um desenvolvimento equilibrado nos preparará para
progredirmos no caminho e, embora o treinamento fundamental seja de caráter
intelectual, a exaltação essencial das emoções caminhará passo a passo com ele.
Assim, no devido tempo, surgirá uma atmosfera adequada à sublime manifestação
interior do divino e a que se aspira.
Depois de
havermos treinado um espaço de tempo suficiente, o segundo estágio começará a
desdobrar-se gradualmente e nele a leitura atenta destas páginas tornar-se-á
desnecessária e as ideias e frases básicas precisarão ser apenas reavivadas
mentalmente pela memória e meditadas. A questão da duração da meditação deve
ser resolvida por nós mesmos. A meditação é necessária enquanto sentirmos que
está sendo exigida; é necessária até que se obtenha a mais ampla convicção
intelectual das verdades ensinadas nestas páginas. É necessária até que a
achemos tão fácil, espontânea e agradável que ansiamos por aquela meia hora
diária e nos apressemos a fazer o nosso exercício diário; necessária até que
possamos abandonar todos os tipos de pensamento digressivo e sentir uma
crescente luminosidade no cérebro, de maneira que todas as ideias verdadeiras
apareçam como imagens de espantosa clareza ou como certezas inspiradas a essa
luz deslumbrante. Os exercícios devem ser continuados até que possamos superar
o clamor constante das impressões externas, das sensações físicas e dos pensamentos
inquietos em favor de uma vigilância interior que, embora intensa, dispensa na
aparência qualquer esforço. O estado induzido deve ser reiteradamente
reproduzido até tornar-se habitual; só então poderá ser deixado de lado.
Não pode haver
pressa nem paciência. A menos que o estudante caminhe nesse mundo mental com
calma e confiança e tranquila determinação, ele não atingirá seus propósitos.
Pensamentos meramente superficiais, a passagem apressada de dados insuficientes
a conclusões vagas e generalizadas, a pressa em terminar a meditação — todos
esses fatores entravam o progresso da vida interior; tal pressa não é realmente
velocidade e na verdade atrasa o estudante e o impede de penetrar no profundo
mundo da alma a que ele aspira.
Devemos nos
sentar para a nossa prática de meia hora com compreensão de que um determinado
espaço de tempo é necessário para a perscrutação preliminar da mente, antes que
as camadas mais profundas sejam atingidas; outro fator é preciso para a entrada
na Mente Superior; daí precisarmos estar prontos para esperar com resignação
pelos resultados enquanto lutamos por eles.
A questão da
atitude íntima tem alguma importância nesta busca, como também é importante a
atitude do corpo. É preciso que nos entreguemos ao exercício dessa meditação
com um estado de espírito esperançoso, confiante e otimista, e jamais
vacilemos; contudo não devemos jamais perder de vista a importância capital da
humildade. A humildade é o primeiro passo em todos os caminhos que conduzem ao
Infinito, por mais distantes que sejam, e é também o último. Mas devemos
começar acreditando que a Verdade pode
ser atingida, que a mente pode ser
dominada, que o próprio antagonismo de um ambiente hostil fornece oportunidades
para superar tal ambiente, e que esse esforço constante no sentido de encontrar
a luz-Alma terminará por evocar a sua Graça.
Não devemos
hesitar em manter essa atitude íntima porque o simples fato de havermos adotado
uma tal prática significa que o Eu Superior está começando a nos tocar, a nos
despertar. E o interesse do Eu Superior é em si mesmo um arauto da vinda da sua
Graça.
Devemos agora
lutar por captar a essência deste método especial. Não é apenas a ruminação
diária das verdades metafísicas, pois se trata em parte de um processo de
refinar a mente e dar-lhe uma tendência à abstração. Nem é tampouco o cultivo
intermitente de determinados estados que exaltam a alma, porque, isto também
não passa da aquisição daquela enaltecedora força da aspiração que nos faz
progredir na busca interior. Não; trata-se também da criação que uma atitude de
indagação correta. Esse deslocamento da vida mental para o campo da auto-interrogação
é uma diferença vital que distingue o método presente de todos os demais. Ao
invés de fazer do esforço pessoal o único
fator do nosso progresso, ele consegue a colaboração de uma parte mais elevada
do nosso ser num estágio mais adiantado do caminho. Pois, a questão permanente
do eu, a busca do eu, quando
praticadas como aqui se recomenda, fornece bases adequadas para tal
colaboração, porque depois de propiciar a preparação devida, convida o Eu
Superior a participar mais ativamente do jogo, e fazer algo que nos empurre para diante! Dificilmente se poderá
exagerar a importância deste princípio da auto-interrogação. Ao invés de fazer
afirmações positivas porém vãs como: “Eu tenho uma alma” ou “Eu sou uma alma” o
que se faz é perguntar: “Tenho eu uma alma?” ou “Sou eu uma alma?” E a resposta fica a cargo do componente
anímico do nosso ser. Enquanto o primeiro método resume-se em dogmatizar
intelectualmente, o último torna humilde o intelecto, silencia o seu balbuciar
incessante e aguarda que a resposta seja dada pela única parte do nosso ser
competente para dá-la. Significa isto que já não valorizamos em excesso o intelecto,
mas mantemo-lo em seu devido lugar. Uma busca espiritual só pode ter êxito
quando recebe satisfação na região espiritual de nosso ser, e não apenas na
intelectual. Os pensamentos nos trarão para a estrada do eu espiritual, mas
eles próprios não contêm esse eu. Se alegássemos que continha, então as
acusações dos críticos de que poderíamos nos tornar vítimas de visões
autosugestivas seriam corretas. E, na verdade, se a alma não existisse, se a
divindade não passasse de uma ilusão e o corpo fosse todo o ser e todo o fim do
homem, jamais poderíamos obter uma resposta espiritual genuína para as nossas
perguntas e teríamos de nos contentar com meras teorizações. Por isso, esse
método ocupa o seu lugar na realidade do eu divino da humanidade. Porque o Eu
Superior é de fato uma realidade, esse método pode ser entregue ao mundo com
confiança, na certeza de que aqueles que o seguirem com sinceridade e paciência
obterão um dia resultados demonstráveis, vale dizer, resultados em suas
próprias experiências. Se o Eu Superior não existisse, ou mesmo dando de barato
a sua existência, se fosse totalmente indiferente às aspirações dos homens e
aos seus anseios de um consolo que apenas a vida material não pode
proporcionar, então este método não teria valor nem produziria resultados. Mas,
pelo contrário, o Eu Superior é o fator fundamental mais revelador da nossa existência
e está sempre pronto a revelar-se, a dar o supremo consolo da vida àqueles que
preenchem as condições já mencionadas. Por isso esta investigação não passa
desapercebida, mas no devido tempo o investigador que se mantém fiel à sua
busca toma consciência do seu eu divino.
Este princípio
envolve, por isto, uma completa inversão da mente, que passa de uma atitude de
afirmação positiva para uma atitude de humilde indagação. A verdade não faz
questão de revelar-se aos intelectualmente arrogantes, mas se entrega àqueles
que se prostram humildemente de joelhos; e a prática deste método leva
invariavelmente o homem à humildade do espírito. Não foi à toa que Jesus se
pronunciou dizendo que o Reino dos Céus só está aberto aos que se comportam
como criancinhas. O dito constitui uma referência simbólica à condição de
humildade intelectual de que tanto carece a nossa época. Embora tenhamos
primeiro que penetrar com cérebro aguçado a casca do ego, precisamos contudo
não hesitar em abandonar esse instrumento ao atingirmos um ponto em nossos
exercícios no qual percebemos que aquela condição foi atingida. Essa disposição
para “pedir” a verdade em cada estágio, com espírito de uma criancinha, depois
de empregadas todas as forças intelectuais, não é um sinal de fraqueza. Se a
nossa orgulhosa época pudesse compreendê-lo, isto seria um indício de fortaleza
espiritual. Reconhecer livremente as limitações do intelecto quando houvermos
chegado ao limite extremo daquela faculdade é facilitar a vinda de alguma coisa
mais elevada. Este é o verdadeiro desiderato da ioga: submeter o pensamento e a
seguir descartar-se dele.
Paul Brunton em, A Busca do Eu Superior