Pergunta: Podemos ver nas mais fundamentais emoções humanas, fome,
sede, sexo, amor, algo que nos sentimos envergonhados; ou antes reconhece-las
como expressões da vida e ao mesmo tempo procurar extrair-lhes todo egoísmo?
Krishnamurti: Não podeis
beneficiar, limpar, o que é a verdadeira expressão da Vida. Só podeis limpar o
que é a expressão do egoísmo. A verdadeira expressão da Vida é livre, não
limitada pela eu-consciência. Por conseguinte, ela é, e nada existe ali para ser
purificado. É parte da candura essencial que é a Vida. É completa; não conhece
separação, não brota da tristeza, da dor, do medo dos opostos. O Amor, que é a
sua própria eternidade, é Vida. Na plenitude, o amor a ninguém conhece, nem
meu, nem teu, nem divisão, nem atração ou repulsão. O mesmo acontece com a
inteligência, a pura percepção interna, que é o verdadeiro atributo da Vida, sua
verdadeira expressão externa.
Enquanto o homem se apega à
eu-consciência, há luta entre os opostos, prazer e desgosto, atração e
repulsão. O homem que deseja libertar-se da eu-consciência, deve ser normal,
não deve eliminar desejo algum pelo medo, mas deve conhecer o conflito, o amor,
o sexo. Este entendimento o libertará da eu-consciência. No homem reside a todo
o instante essa Vida em sua plenitude; mas, enquanto perdurar a eu-consciência
com todas as suas qualidades, opostos, virtudes, medos, apegos, ele se acha
cativo da ilusão. Ele se imagina incompleto e dessa imperfeição brota a
opressão, a expressão de autoridade, o sentido de posse, de poder. Quando um
homem realmente deseja ser livre, quando em verdade aspira alcançar essa
plenitude, usa tudo isso como pedras-degrau: por meio dos conflitos, colhe o
valor da experiência.
Pergunta: Não há o perigo de que os que vos rodeiam, sendo seres
humanos normais com emoções normais, compreendendo que considerais o celibato
mais próximo da Verdade do que o casamento, possam ocasionar os mesmos males
que sempre sucederam à acusação religiosa das normais relações humanas? Não
acusais, mas tacitamente condenais, de modo que os vossos irmãos se acham até
envergonhados de vos dizer que estão apaixonados e querem se casar! Eles sentem
que, aos vossos olhos, de algum modo “desmerecem a graça”; não porque as
relações entre sexos sejam indignas, mas porque representam apego. O mesmo
acontece com o ter filhos. Devemos aspirar uma vida normal como a vossa, não
estando ainda preparados? Devemos considerar a vossa vida como o ideal a
atingir? É o desprendimento completo de relações humanas uma sequência da
verdadeira busca da Verdade? Caso contrário, deveríamos então viver
anormalmente vidas normais, isto é, diferentemente da maioria? Significa isto
um novo padrão? O desenvolvimento pleno do indivíduo, ou o maior bem do maior
número pela subordinação do indivíduo tal como se dá no Comunismo, no Fascismo,
ou no chamado patriotismo?
Krishnamurti: Pela minha resposta à pergunta
precedente e de acordo com a minha palestra de outro dia, vereis que não acuso
o casamento nem patrocino o celibato. Deveis ser normais; porém, a maioria das
pessoas são anormais, doentias. São doentias porque têm medo; têm medo tanto de
casar como de permanecer solteiras. A normalidade não é positivamente
encontrada no casamento e nem no celibato. A maioria das pessoas do mundo, que
não renunciaram à religião, agem pelo medo; e os que renunciaram à religião, não
se preocupam, apenas desejam boa vida. Os que se apegam à idolatria, que
procuram tornar-se no mundo àquilo que imaginam ser espiritual, pela repressão,
amoldando-se ao padrão de outrem, são a meu ver doentios e anormais. Não
importa que sejam ou não religiosos; quem quer que tente conseguir a Verdade
pela imitação, pelo seguir a outrem ou pela idolatria, por meio de
instituições, de cerimonias, é uma criatura doentia. E sendo doentios, deveis antes
de tudo sanar-vos, e, só por meio dessa normalidade, podereis compreender a
Verdade. Perguntareis: “Qual a vantagem de falar da Verdade a pessoas
anormalmente doentias?” Dir-vos-ei: Se nelas tiver despertado o desejo de
buscar a Verdade a todo o tempo, então, mesmo quando doentias, não mais se
adaptarão às circunstâncias imediatas que os não levarão nem à saúde nem à ultérrima
plenitude.
Para mim, nesse caso, é uma
questão de pleno desenvolvimento do indivíduo ou de sua subordinação. Falo da
verdade como plenitude no homem, que ele só pode alcançar pela libertação da
eu-consciência. Falo da Verdade, e para consegui-la, precisais de ser normais,
impávidos, livres do desejo de apoiar-se em outrem, de idolatrar, livres da cobiça,
de poder, de crueldade, de malícia e de todos os opostos.
Isto não quer dizer que não
devais casar, que não vos apaixoneis ou que não tenhais filhos. Tendes a ideia
de que, se casardes, tereis desmerecido a graça. De quem? Não a minha, por
certo! Nada tenho para vos oferecer, nem céu nem inferno, nem recompensa nem
castigo. Não desmerecereis a minha graça porque não desejo seguidores, não
quero discípulos, não aspiro à vossa adoração ou a qualquer outra coisa.
Consegui a plenitude em mim próprio e por isto nada pretendo. Por favor,
abstende-vos da ideia de seguir-me, de desmerecer a minha graça, imaginando que
por mim ou por qualquer outro alcançareis a Verdade. Tendes que encontrar essa
plenitude em vós mesmos, pelos vossos próprios esforços. Quando conhecerdes o
verdadeiro valor das coisas, não mais estareis nas garras do conflito e
adotareis um padrão de acordo com o vosso entendimento da plenitude.
A consecução se faz pelo
entendimento das experiências da vida e não pelo evita-las. O modo como vos
conduzis, se tendes medo ou se vos apoiais em algo, se tendes ânsia de
idolatria ou de autoridade, isso é da máxima importância. É na vida humana
normal que encontrareis a Verdade, a Felicidade, a plenitude e não na
anormalidade.
Assim, anormal é o homem que tem
muitas extravagâncias. A meu ver, anormal é o indivíduo que teme, que se
esquivou da existência, que se retirou da vida, que se recolhe em um mosteiro
ou igreja, que adora ou se senta à beira de um rio entregando-se à abstração,
ou ainda o homem que a outro considera completamente, que é cruel e
continuamente se entrega aos inúmeros anseios de poder, pompa, riqueza,
sensualidade e cobiça. Estes são os tipos que chamo anormais.
Desde o começo que mantenho diante
de mim a ideia de plenitude, de Verdade, e a desejei intensa e continuadamente.
Não a plenitude em oposição à humanidade, mas a plenitude pelo entendimento da
humanidade, que é eu mesmo; pela compreensão de
meus próprios conflitos, de meus próprios desejos, paixões, vaidades,
supressões, temores, apegos, sensações. Quando percebi tudo isso em mim mesmo,
libertei a minha eu-consciência, minha energia concentrou-se em profunda
contemplação. Essa consumação é a Verdade ultérrima e todos chegarão a alcançar
isto. Mas,
não o alcançareis se vos não for possível caminhar sós, se receardes, se
tiverdes apegos. Para ir longe, tendes que começar perto. Porque
sois cobiçosos, gerais a concorrência no mundo, ajudando a contribuir para o
caos; porque sois apaixonados, há crueldade no mundo; porque tendes ódio e
aversão, há guerras; porque vos apegais a posses, há nacionalismo, o obstáculo
das fronteiras. Com tudo isso, com as vossas verdades, desejos, ambições,
quereis compreender qual a flor, a consumação de toda a vida e esforço. Buscai,
primeiro, ser criaturas normais, com alegrias normais. Pesai o vosso próprio
sofrimento e as vossas alegrias. Compreendei que tendes medo e por conseguinte,
que andai em busca de conforto. Quando isto tiverdes compreendido, poreis de
lado o desejo de consolo, concentrando-vos na libertação do medo, em vez de o
ocultar profundamente em vós mesmos. De momento, o concentrais em achar consolo
em vossos deuses, em vossas idolatrias, em vossas fugas. Deveis ficar
inteiramente sós; não por meio de qualquer gesto trágico, não porque exista
qualquer coisa que deva ser evitada. Procurai ver se ostentais vaidade,
atraindo as pessoas com o vosso corpo, com as vossas ideias. Observai-vos.
Desenvolveis em vós próprios um espelho que possa refletir fielmente o que sois
no momento e assim vos tornareis acuradamente cônscios. Tal o começo da
normalidade e de se tornar sadiamente normal. Não tendes precisão de saber, por
meio de outrem, como vos tornar normais. Se o desejais, consegui-lo-eis; não
observando o passado ou o futuro, mas pelo esforço normal, pelo conflito
normal, pelo ajuste diário. Necessitais de desejo, não de força. Não combatais
os opostos só para vos tornardes escravos de um deles.
Krishnamurti, palestra em Ommen, verão de 1931