Vou narrar-vos pequeno incidente
que se passou comigo o ano passado, enquanto estava na Índia. Fui ao encontro
de alguns amigos em uma estação de caminho de ferro — e não podeis imaginar o
que é uma estação indiana, muito mais bulhenta e mesmo suja do que o costumam
ser vulgarmente as estações ferroviárias. Vi um homem que fazia rodeios,
desejoso de falar-me. Era um daqueles que puxam os rickshaw — carros de duas rodas nos quais um homem se senta e um
outro o puxa. Por fim ele encheu-se de suficiente coragem e veio falar-me.
Perguntou-me em inglês muito errado e falho onde eu morava, que fazia e se
estava para assistir à chegada de irmãos e irmãs minhas. Expliquei-lhe onde me
encontrava domiciliado; e, finalmente, perguntou-me se lhe seria permitido
descer a plataforma, acompanhando-me. Achava-se quase tão acanhado quanto eu!
Daí a pouco puxou um cigarro do bolso e começou a fumar. Após algumas baforadas
perguntou-me se fumava. Disse-lhe que não. Então, olhou por algum tempo para o
cigarro e disse: “Suponho ser desnecessário fumar”, e eu respondi-lhe: “Provavelmente”.
Pois esse homem, cujo maior prazer era talvez fumar, retrucou: “De hoje para o
futuro, nunca mais fumarei”, e atirou fora o cigarro com uma violência que,
realmente, me surpreendeu.
Não vos narro este incidente para
vos incitar a que não fumeis — isto é assunto aparte. Porém, um ato de real entendimento praticado com
real profundeza de sentir, colocará um homem em um pináculo de grande
visão, de grande entendimento, de grande deleite. Como disse em minhas
palestras, para descobrir essa eternidade que é o eu em consecução, essa
harmonia de estabilidade entre a razão e o amor, é necessário, do meu ponto de
vista, afastar-se de todas as coisas não-essenciais
e deve produzir-se uma expressão física desse afastamento. Por favor, não
penseis que pelo fato de as coisas não serem essenciais deveis continuar a
condescender com elas; sei que muita gente dirá: “Continuarei a fazer estas coisas
por não serem elas essenciais”. Isto pode ser maneira muito cômoda de encarar a
vida, porém vós necessitais, ao contrário, pelo processo de eliminação, afastar-vos
de todas essas coisas não-essenciais, por serem absolutamente infantis, triviais,
absurdas. Mediante este afastamento descobrireis o eu verdadeiro e
disciplinareis a esse eu. Não é por meio dessas complicações, por meio dessas
coisas não-essenciais, mas antes pela sua eliminação, pelo deixa-las de parte
que encontrareis
a verdade, que encontrareis o eu verdadeiro, mediante o qual o
genuíno processo de autodisciplina começará.
Pela autodisciplina eu não
entendo a repressão, mas antes a auto disciplina mediante o entendimento que
vos conduz à libertação, esse equilíbrio da razão e do amor. Se quiserdes encontrar
a verdade, essa disciplina do eu, que é a semente da razão e do amor, deve ter
lugar a todo o instante do dia, deve estar focalizada agudamente em toda a
coisa que fizerdes. A verdade está no processo e não na consecução. À medida que
viverdes, vos manifestardes e atuardes na vida diária, a encontrareis. No
adestramento desse eu reside a Verdade — e em nada mais. O assunto de importância,
pois, não é a invenção de multidão de teorias ou filosofias, mas antes a
descoberta do “Eu” que é progressivo e tornar esse “Eu” progressivo
incorruptível. No educar, no cuidar, no encorajar este “Eu” em direção à
liberdade, em direção ao reino no qual não existe limitação do ser, reside a
verdade. Tendo como vossa visão essa libertação da qual vos falo, mediante o
processo da autodisciplina imposta a vós próprios por vós próprios, não tendo em conta a recompensa ou o tenor da
punição, encontra-se o verdadeiro atingimento, o preenchimento, a
incorruptibilidade do eu. Toda a manifestação — não em sentido filosófico, pois
estou usando a linguagem vulgar — é a criação do eu, é a sombra do eu. Se o eu
for impuro, corruptível, então todas as manifestações desse eu serão impuras, e
corruptíveis. Assim, necessitais buscar primeiramente a perfeição, a
incorruptibilidade do eu, pois somente nisso reside a verdade. Deveis
afastar-vos de todas as coisas não-essenciais, pois que põem uma limitação
sobre o eu. Tendes de vir descarregados, livres, ilimitados; então essa
verdade, que não está longe nem está perto, será descoberta e aquele que a
houver descoberto constituir-se-á um perigo para todas as irrealidades, para
todas as falsidades da vida.
Krishnamurti, 3 de agosto de 1929, Acampamento de Ommen