O que temos discutido nas últimas semanas é a questão do "eu" e suas tendências. Chegamos a perceber que o "eu" é a causa fundamental de todos os males? O "eu", com todas as suas extravagâncias e ações sutis é o responsável por todos os nossos males. Todo homem inteligente deve resolver esse problema do "eu", em vez de procurar contrabalançá-lo, encobri-lo: deve compreender como, na vida cotidiana, está dando sustento, vitalidade e continuidade ao "eu". Se desejamos compreender qualquer um dos problemas mundiais, cumpre-nos, de certo, compreender todo o processo do "eu", com todas as suas complexidades, tanto conscientes como inconscientes. É o que temos discutido e considerado, sob diferentes aspectos.
A religião organizada, a crença organizada e os estados totalitários são muito semelhantes, visto que têm o mesmo escopo de destruir o indivíduo pela compulsão, pela propaganda, por várias formas de coerção. A religião organizada faz a mesma coisa, embora de maneira diferente, e por ela sois também obrigados a crer, a aceitar, sois também condicionados. A tendência geral, tanto da esquerda como das chamadas organizações espirituais, é moldar a mente segundo determinado padrão de conduta; porque o indivíduo, quando entregue a si mesmo, se torna um rebelde. Por isso, destrói-se o indivíduo, pela compulsão, pela propaganda: é ele controlado, dominado, a bem da sociedade, do Estado, etc. As chamadas organizações religiosas fazem a mesma coisa, com a diferença apenas de que o fazem um pouco mais disfarçadamente, um pouco mais sutilmente. Porque, também lá, os indivíduos devem crer, devem reprimir, devem controlar, etc, etc. Todo processo visa a dominar o "eu", de uma ou de outra maneira. Pela compulsão, busca-se promover a ação coletiva. É esse o alvo da maioria das organizações, quer econômicas, quer religiosas. Querem ação coletiva, o que significa que o indivíduo deve ser destruído; em última análise, só pode significar isso. Aceitais a esquerda, a teoria marxista, ou as doutrinas hinduistas, budistas ou cristãs; e por essa maneira esperais promover ação coletiva. Sem dúvida, cooperação é coisa muito diferente de coerção.
Como se promove a ação coletiva, ou, como deve ser promovida? Até agora ela tem sido promovida pela crença, pela promessa econômica de um estado de prosperidade, pela promessa de um futuro brilhante; ou o tem sido pelo chamado método espiritual, pelo medo, pela compulsão, e por vários tipos de recompensa. Não ocorre cooperação só quando existe inteligência não coletiva, nem coletiva nem individual? É sobre isso que desejo discorrer nesta tarde.
Para estudarmos o problema com proveito, deveis descobrir qual é a função da mente. Que entendemos por "mente"?[...]
Ao observardes a vossa própria mente, estais observando não apenas os chamados níveis superiores da mente, mas também o inconsciente: estais vendo o que a mente realmente faz. Não é assim? Essa é a única maneira em que se pode investigar. Não deveis sobrepor (ao que a mente faz) o que ela deveria fazer, como deve pensar ou como deve agir, etc. — pois isso redundaria em fazer meras afirmativas. isto é, se dizeis que a mente deve ser isto ou não debe ser aquilo, pondes termo a toda investigação e a todo o pensar; e também, se citais alguma autoridade, parais de pensar. Não é verdade? Se citais Sankara, Buda, Cristo ou XYZ, pondes ponto final à busca, ao pensar, à investigação. Assim, devemos precaver-nos a esse respeito. Deveis colocar de parte todas essas sutilezas da mente e saber que estais investigando, junto comigo, este problema do "eu".
Qual é a função da mente? Para descobrir precisais saber o que a mente está, na realidade, fazendo. Que faz a vossa mente? Ela é todo um processo de pensamento, não é verdade?
De outra maneira, a mente não existe. Quando a mente não está pensando, consciente ou inconscientemente, quando não está verbalizando, não existe consciência. Cumpre-nos averiguar o que a mente faz — tanto a mente de que nos servimos em nossa vida diária, como a mente de que a maioria de nós não está cônscia — cumpre-nos averiguar cumpre-nos averiguar o que a mente faz com relação aos nossos problemas. Devemos examinar a mente, tal como ela é, e não como deveria ser.
Pois bem, que é a mente, quando em funcionamento? Ela, de fato, é um processo de isolamento, não achais? Fundamentalmente, é isso o que ela é. É isso que constitui o processo do pensamento, — pensar de maneira isolada, embora permanecendo coletiva. Observando o vosso próprio pensar, vereis que ele é um processo isolado, fragmentário. Estais pensando em conformidade com vossas reações, as reações de vossa memória, vossa experiência, vosso saber, vossa crença. Estais reagindo a tudo isso. Não é exato? Se digo que há necessidade de uma revolução fundamental, reagis imediatamente. Haveis de objetar à palavra "revolução", se tendes bons "investimentos" (vantagens) — espirituais ou de outra natureza. Vossa reação, pois, depende do vosso saber, de vossas crenças, de vossa experiência. Isso é um fato bem óbvio. Há várias formas de reação. Dizeis: "Devo ser fraternal, devo cooperar, devo ser cordial, devo ser bondoso", etc. Que é isso? Só reações; mas a reação fundamental do pensar é um processo de isolamento. Não aceiteis isso prontamente, porque estamos investigando juntos. estais observando o processo de vossa mente, cada um de vós, o que significa que estais observando vossa própria ação, crença, saber, experiência. Tudo isso dá segurança, não é verdade? Dá segurança, dá força, ao processo do pensar. Como já apreciamos ontem, esse processo só serve para fortalecer o "eu", a mente — não importando que esse "eu" seja "alto" ou "baixo". Todas as nossas religiões, todas as nossas sansões sociais, todas as nossas leis, existem para o amparo do indivíduo, do "eu" individual, da ação separativa; e, do lado oposto, temos o estado totalitário. Se penetrardes mais fundo no inconsciente, vereis que lá também está funcionando o mesmo processo. Lá, somos o coletivo, influenciado por ambiente, clima, sociedade, pai, mãe, avô. Sabeis tudo isso. Lá também existe o desejo de impor, de dominar, como indivíduo, como "eu".
Nessas condições, não é a função da mente, como a conhecemos e como funcionamos em cada dia, um processo de isolamento? Não estais em busca da salvação individual? Haveis de ser alguém no futuro; ainda nesta vida, haveis de ser um grande homem, um grande escritor. Toda a nossa tendência é para estarmos separados. Pode a mente fazer alguma coisa mais do que isso? É possível à mente não pensar de maneira separativa, de maneira egocêntrica, fragmentária? É impossível. Por esta razão, rendemos culto à mente, a mente é sobretudo importante. Não é verdade que qualquer pessoa que possui um bocadinho de sagacidade, um bocadinho de vivacidade, um pouquinho de ilustração e saber, logo se torna muito importante na sociedade? Sabeis quanto venerais os homens que são intelectualmente superiores, os advogados, os professores, os oradores, os bons escritores, os grandes explicadores e expositores! Não é verdade? Tendes cultivado o intelecto e a mente.
A função da mente é existir isolada; de outra maneira, vossa mente não existe. Depois de cultivarmos este processo durante séculos, vemos que é impossível cooperar; economicamente e religiosamente, só somos empurrados, compelidos, tangidos pela autoridade, pelo medo. Se tal é a situação de fato, não apenas conscientemente, mas também nos níveis mais profundos, em nossos motivos, nossas intenções, nossas ocupações, como é possível qualquer cooperação? Como podemos unir-nos inteligentemente, para fazer alguma coisa? Sendo isso quase impossível, as religiões e os partidos sociais organizados forçam o indivíduo a certas formas de disciplina. Torna-se então obrigatória a disciplina tendo em vista a união e a cooperação.
Assim, enquanto não compreendermos como transcender este pensar separativo, esse processo de exaltação do "eu" e da mente, quer sob forma coletiva, quer sob forma individual, não teremos paz; teremos constante conflito e guerras. Pois bem, o nosso problema consiste em descobrir a maneira de dissolver, de eliminar o processo separativo do pensamento. Pode o pensamento jamais destruir o "eu" — sendo o pensamento processo de verbalização e de certas reações? O pensamento não passa de reação; o pensamento não é criador; é apenas expressão verbal da criação, a que chamamos pensamento. Pode esse pensamento por fim a si mesmo? É o que estamos procurando averiguar. Penso segundo esta diretriz: "preciso disciplinar-me", "preciso identificar-me", "Preciso pensar de maneira mais adequada", "Preciso ser isto, preciso ser aquilo".
O pensamento está forçando, impelindo, disciplinando a si mesmo, para ser alguma coisa ou para não ser alguma coisa. Não é isso um processo de isolamento? Logo, não é a inteligência integrada, capaz de funcionar como um todo e da qual, tão somente, pode provir a cooperação. Percebeis o problema, agora? Não vos estou apresentando um problema. Deveis saber que este problema é vosso, se já não o sabeis. Ele poderá ser enunciado de várias maneiras. Mas, fundamentalmente, o problema é este.
Como chegareis a por fim ao pensamento? Ou, melhor, como chegará o pensamento ao seu fim? Refiro-me ao pensamento que é isolado, fragmentário e parcial. De que maneira ides proceder? A disciplina o destruirá? Aquilo a que chamais disciplina o destruirá? É bem evidente que não conseguistes tal resultado em todos estes longos anos; do contrário não estaríeis aqui. Cumpre-vos examinar o processo de disciplinamento, o qual é apenas um processo de pensamento, em que há sujeição, repressão, controle, dominação — tudo atingindo o inconsciente. Este se imporá mais tarde, ao ficardes mais velho. Tendo tentado a disciplina por tanto tempo, inutilmente, deveis ter reconhecido que a disciplina não é o processo capaz de destruir o "eu". O "eu" não pode ser destruído pela disciplina, porque a disciplina é um processo de fortalecimento do "eu". Entretanto, todas as vossas religiões a defendem: todas as vossas meditações, todas as vossas asserções estão baseadas nisso. O saber o destruirá? A crença o destruirá? Por outras palavras, tudo o que estamos fazendo presentemente, todas as atividades a que estamos entregues com o fim de desarraigar o "eu", darão tal resultado? Tudo isso, fundamentalmente, não é um esforço em vão, dentro de um processo de pensamento, um processo de isolamento, um processo de reação? Que fazeis, ao reconhecer, fundamental e profundamente, que o processo do pensamento não pode colocar fim a si mesmo? Que acontece? Observai-vos, senhores, e dizei-mo. Ao ficardes inteiramente cônscios desse fato, que acontece? Compreendeis, então, que toda reação é condicionada, e que, mediante condicionamento, não haverá liberdade, nem no começo nem no fim. A liberdade está sempre no começo, e não no fim.
Ao perceberdes que toda reação é uma forma de condicionamento e que, por conseguinte, dá continuidade ao "eu", por diferentes maneiras, que sucede realmente? Precisais ter muita lucidez a esse respeito. A crença, o saber a disciplina, a experiência, todo o processo que visa ao resultado ou ao fim, a ambição, o vir-a-ser alguma coisa nesta vida ou na outra, na vida futura, — tudo isso é processo de isolamento, processo que gera destruição, sofrimento, guerras e do qual não há fugir pela ação coletiva, por mais que vos ameacem com campos de concentração, etc. Estais cônscios desse fato? Qual é o estado da mente que diz: "É exato", "Este é o meu problema", "E" justamente o estado em que me acho", "rejeitei", "Vejo o que o saber e a disciplina podem fazer, o que a ambição faz"? Há aí, por certo, um processo diferente em funcionamento.
Vemos os caminhos do intelecto: não vemos o caminho do amor. O caminho não pode ser encontrado por meio do intelecto. O intelecto, com todas as suas ramificações, com todos os seus desejos, ambições, empenhos, tem de cessar, para que o verdadeiro amor venha à existência. Não sabeis que, quando amais, cooperais, não estais pensando em vós mesmos? Essa é a mais alta forma de inteligência — não quando sois amado como uma entidade superior ou quando vos encontrais em boa situação, — o que nada é senão medo. Onde houver direitos adquiridos, não pode haver amor; só há o processo de exploração, que culmina no temor. O amor só pode começar a existir, quando a mente não existe. Por conseguinte, cumpre-vos compreender todo o processo da mente, o funcionamento da mente. Só então podereis descobrir quando se realizará a revolução fundamental.
Não podeis compreender esse processo da mente em poucos minutos ou com o ouvir uma ou duas palestras, apenas. Só podeis compreendê-lo quando há em vós mesmos uma grande revolução, profundo interesse em compreender esse descontentamento, esse desespero. Não estais, porém, em desespero. Estais bem nutrido, intelectual e fisicamente. Não vos deixais levar ao estado de desespero. Tendes sempre alguma coisa a que vos encostar. Sempre podeis fugir, ir ao templo, ler livros, ouvir uma conferência, escapar; e o homem que foge não cai em desespero. Se vos vêdes em desespero, procurais uma maneira de ficar esperançosos, de fugir para longe do desespero. Só o homem realmente inconsciente, que abandonou completamente todas essas coisas, se despojou de tudo, só esse descobrirá o que é o amor, e, sem amor, não há transformação, não há revolução, não há renovação. Só há imitação e cinzas; e tal é o estado de nossa civilização, no presente. Só quando sabemos amar uns aos outros, pode haver cooperação, ação inteligente, podemos reunir-nos no interesse de qualquer coisa. Só então é possível descobrir o que é Deus, o que é a Verdade. Ora, desejamos achar a verdade por meio do intelecto, por meio da imitação — o que é idolatria, quer os ídolos sejam feitos pela mão, quer pela mente. Só quando, pela compreensão, abandonais completamente a estrutura total do "eu", só então vem aquilo que é eterno, atemporal, imensurável; não podeis ir a ele; ele vem a vós.
Krishnamurti — Quando o pensamento cessa