[...]Vemos que toda religião, toda filosofia, e mesmo o estado totalitário, deseja destruir o processo separativo da mente. Nunca houve revolução, nunca houve transformação econômica exterior, nunca houve disciplina interior, como se costuma dizer, capaz de destruir ou de fazer findar o "eu". Penso que a maioria de nós percebe ou está cônscia de que o "eu" precisa findar, não teoricamente, mas de fato. Pode-se filosofar e especular a respeito; a maioria o faz fraudulentamente ou com um intento agressivo, como a maioria dos políticos, por quem somos dirigidos, ou como os ricos que controlam quase toda a nossa economia externa, ou como os que seguem o caminho espiritual. Todos eles, de maneiras diferentes, estão aplicados à expansão do "eu". Não é esse m dos principais fatores que concorrem para destruir a mente?
O único instrumento que possuímos é a mente. Até agora nós a temos usado de maneira errada. É possível, agora, fazermos findar todo esse processo do "eu", com todos os seus fatores de degeneração, todos os seus elementos destrutivos? Creio que a maioria de nós percebe que o "eu" é separativo, destrutivo, anti-social; tanto externa como internamente, é um processo isolante, em que não é possível nenhum estado de relação, em que não pode existir o amor. Nós percebemos esse fato, uns mais, outros menos, mas a maioria não está cônscia dele. É possível findar verdadeiramente esse processo — não o substituindo por outra coisa, ou adiando, ou o afastando por meio de explicações?
Como já vimos, nem a mera disciplina, nem a conformidade, colocam fim ao "eu"; dão-lhe, sim, vitalidade, mudando-lhe, apenas a direção. A maioria das pessoas inteligentes, das pessoas que refletem, já deve ter examinado essa questão. Independente das sanções religiosas, das compulsões totalitárias — injunções, campos de concentração — a maioria de nós temos nos perguntado se o "eu" pode realmente findar. Quando fazemos tal pergunta a nós mesmos, a reação automática, a reação natural é o "como". Como pode ele findar? Assim, o "como", o método prático, a maneira, tem importância para nós. Se pudermos examinar um pouco mais perto toda a questão relativa ao "como" e sua técnica, talvez venhamos a compreender o "como", o método prático de se conseguir um resultado que colocará fim ao "eu".
Quando desejamos conhecer o método de terminar o "eu", a maneira de conseguir tal resultado, qual é o processo da mente? Existe o "como", a maneira de proceder, o método, o sistema? Se seguirmos o sistema, ele colocará fim ao "eu"? Ou lhe dará força de expansão em outra direção? A maioria de nós, sobretudo os que sentimos um certo interesse e temos inclinações religiosas, desejamos ansiosamente conhecer ou descobrir o método de terminar, a maneira de vir-a-ser, a maneira de se conseguir um resultado. Se nos examinássemos profundamente, em nossos corações e em nossas mentes, é bem certo que conseguiríamos o método de terminar o "eu", se tal método existisse.
Ora, porque pergunta a mente, pela técnica, pelo método? Não é importante esta pergunta? O que acontece é o seguinte: Vocês têm um sistema, um método, o "como", a técnica; e a mente forma, de acordo com a técnica, o padrão. Isso coloca fim ao "eu"? Vocês possuem um método disciplinar muito rigoroso, ou um método de gradualmente se aliviarem do conflito do "eu", um método que lhes proporcionará consolação; entretanto, essencialmente, o desejo de método só indica, realmente, o fortalecimento do "eu". Não é verdade? Prestem bem atenção e verão se é verdade ou não que o "como" indica um processo de pensamento, um processo imitativo, por meio do qual a mente, o "eu", pode acumular força, adquirir maior capacidade, em vez de acabar-se definitivamente.
[...] Se pudermos compreender o processo de como desejamos um método para alcançar um resultado, e, também, se compreendermos a mente que cultiva a técnica, veremos, então, que isso, essencialmente, é um meio de fortalecer o pensamento. O pensamento é um dos principais fatores de deterioração, porque o pensamento é um processo da memória, sendo a verbalização da memória e uma influência condicionadora. A mente que busca uma saída desta confusão, só está fortalecendo aquele processo de pensamento. O que importa, pois, não é que se ache uma maneira ou método, porque já vimos quais são as consequências aí contidas — mas, sim, de estarmos cônscios de todo o processo da mente.
O pensamento nunca pode ser independente; não há pensar independente, porque todo pensamento é um processo de conformidade com o passado. Não há nenhuma independência ou liberdade pelo pensar. Como que pode a mente que é essencialmente o resultado do passado, que está condicionada por várias memórias... como pode essa mente ser independente? Assim, — quando vocês buscam a independência do pensamento, estão apenas perpetuando o "eu". Qual é o processo dessa independência? A maioria de nós nos sentimos solitários, e há em nós uma constante ânsia de preenchimento. Conscientes desse vazio em nós, buscamos várias maneiras de fugir dele — atividades religiosas, atividades sociais... vocês bem conhecem essas fugas. Enquanto não resolvermos aquele problema, a independência que estamos procurando, para o nosso pensar, será sempre, apenas, uma perpetuação do "eu".
Para a maioria de nós, a criação é coisa inexistente; não sabemos o que significa criar. Sem essa ação criadora que não é do tempo, que não é do pensamento, será que não poderemos fazer nascer uma civilização basicamente diferente, um diferente estado de relações humanas? É possível a mente se achar naquele estado receptivo, no qual pode se realizar a criação? O pensamento não é criador; o cultivo de um ideal é processo de pensamento e está condicionado em conformidade com a mente. Como pode, então a mente, que é processo de pensamento, que é resultado de tempo, que é resultado de educação, de influências, de coerção, do medo, da busca de recompensa e fuga da punição — como pode a mete, em tais condições, ser livre, de maneira que possa se realizar a criação? Quando nos fazemos esta pergunta, desejamos saber o método, o "como", a maneira prática de alcançar aquela liberdade mental. Procurar conhecer o "como", o método, é a coisa mais absurda, um processo colegial. O "como" implica sempre o método, que é a coisa que interessa ao pensamento, que é conformidade com uma técnica determinada. Vemos também que só há criação quando a mente, com seu processo de pensamento, chega ao seu fim.
Sem dúvida, na atual crise mundial e com os políticos e suas astuciosas explorações, a criação é a coisa mais difícil de se alcançar. Não queremos mais teorias, mais guias, mais técnicas e técnicas mais novas, os meios de manter em vigor o padrão.
As mentes criadoras são só as dos entes humanos que são "integrados".
É possível para a mente, que é resultado de séculos de processo de pensamento, encontrar-se, em algum tempo, naquele estado criador? Isto é, pode o pensamento, alguma vez, receber, ou cultivar, aquele impulso criador? Creio que esta é uma das perguntas mais importantes que podemos fazer a nós mesmos. Porque já vimos que a simples observância de um padrão nunca nos levou a parte alguma, nem social, nem religiosamente. Nenhum guia pode nos dar o verdadeiro impeto criador, nenhum exemplo é capaz disso; todo exemplo é expansão do "eu", o herói é expansão do eu, glorificado. O cultivo do ideal, portanto, é uma expansão de mim mesmo, o preenchimento de mim mesmo numa ideia; é continuação do pensamento, como tempo, e por isso não há estado criador. Julgo muito importante averiguar bem isso, estar bem consciente de quanto é essencial que cada um de nós descubra esse espírito criador. A mente nunca será capaz de descobri-lo, por mais que faça; o pensamento não pode compreender nem gerar o estado criador.
Que estado criador é esse? Por certo, não se pode dizer positivamente o que ele é. Descrevê-lo seria limitá-lo, seria um processo de medição; e medi-lo é empregar um processo de pensamento. Não há dúvida de que isso é exato. Por conseguinte, o pensamento nunca será capaz de apreendê-lo. De nada vale o descrevê-lo. O que está ao nosso alcance fazer é descobrir quais são os obstáculos, chegando-nos a eles de maneira negativa, indireta. A maioria de nós fará objeção a isso, porque estamos, em geral, habituados a ser diretos. "Faça isso, e você obterá aquilo", tal é a atitude que governo o nosso proceder. estamos aqui discutindo, não com o fim de descrever aquele estado, mas com o fim de verificar o que devemos fazer para descobrir, por nós mesmos, os empecilhos que estão obstruindo àquele estado criador, àquele estado extraordinário em que a mente, a entidade que observa, é inexistente.
Qual é o primeiro obstáculo que se depara? É sem dúvida o desejo de ser poderoso, o desejo de dominar. O desejo de poder é um processo separativo; ainda que esteja identificado com o todo, com uma nação, ou com um grupo, é um processo de isolamento. O empecilho é a mente, que é ambiciosa, em qualquer nível... a chamada ambição espiritual, a mentalidade do político, do rico, do pobre. Todas essas pessoas desejam possuir mais. A ânsia de ter mais é o elemento destruidor que se nos depara. É muito difícil perceber isso, porque a mente é cheia de sutilezas. Uma pessoa pode não procurar o poder, escancaradamente, sem disfarce, mas pode procurá-lo como político, sob o pretexto de estar servindo aos interesses do Estado; ou pode também atuar como cabo eleitoral... Há várias maneiras de se buscar o poder, e tudo isso, essencialmente, é a vontade de ser, a vontade de vir-a-ser alguma coisa que se expressa sob a forma de virtude, de responsabilidade, pela ação da mente, pelo espírito de domínio, pelo orgulho de ser poderoso.
Um dos fatores mais fortes, uma das barreiras mais importantes, é esse desejo de poder, esse desejo de domínio. Observem suas próprias vidas, e verão como está sempre operando aquele desejo separativo, aquele desejo destruidor. Ele, naturalmente, levará de vencida o amor. Só no amor está a nossa redenção. Mas não se pode possuir o amor, quando há espírito de domínio, espírito que se manifesta no desejo de poder, de posição, de autoridade, quando está em ação a vontade, o desejo de alcançar um resultado. Sabemos tudo isso. Estamos colhidos na corrente do vir-a-ser, na corrente do desejo de poder, impossibilitados de detê-la, de sairmos dela. Para isso não há nenhum "como". Devemos conhecer todas as consequências do poder; e assim que as reconhecemos, saímos da corrente — não há nenhum "como".
Um dos obstáculos à criação é a autoridade, a autoridade do exemplo, a autoridade do passado, a autoridade da experiência, a autoridade do saber, a autoridade da crença. Tudo isso são obstáculos ao estado criador. Vocês não são obrigados a aceitar o que estou dizendo. Podem observá-lo na própria vida; e verão como a crença, o saber e a autoridade dão mais força ao processo separativo da mente.
Evidentemente, outro fator que impede o estado criador é a repetição, a imitação, a perpetuação de uma ideia, — repetição, não só de sensação, mas repetição de ritos, a vã repetição que tem por alvo o saber, a repetição da experiência — que são inteiramente sem significação e só constituem obstáculos. Não há nenhuma experiência nova. Toda experiência é processo de reconhecimento. Se não há reconhecimento, não há experiência, e o processo de reconhecimento é processo da mente, que é verbalização.
Outro fator que nos está separando do estado criador é o desejo de um método, do "como", da maneira — queremos proceder de modo que a mente alcance um resultado; esse é um processo de continuidade, de repetição, e a mente que está entregue à repetição não pode, jamais, ser criadora.
Assim, se puderem ver tudo isso, compreenderão que é na realidade a mente que se opõe à existência de um estado criador. Uma vez cônscia de seu próprio movimento, a mente cessa. Só então pode realizar-se o estado criador; esse estado criador é a única salvação, porque ele é amor. O amor nada tem em comum com o sentimentalismo; nada tem em comum com a sensação; não é produto do pensamento; não pode ser fabricado pela mente. A mente só é capaz de criar imagens de sensação, de experiência; e imagens não são o amor. Não sabemos o que significa o amor, embora empreguemos prodigamente a palavra. Mas sabemos o que é sensação; é da própria natureza da mente, o sentir sensações, o cultivar a sensação, através de imagens, através de palavras ou de qualquer forma de presunção. A mente não pode conhecer o amor; no entanto, vimos cultivando a mente há séculos.
É dificílimo à mente perceber todo esse processo, de modo que o "experimentador" não esteja separado da coisa experimentada. É esta divisão entre "observador"e "objeto observado" que é o processo de pensamento. No amor não existe "experimentador" ou "coisa experimentada", Nós não o conhecemos; mas, sendo ele a nossa única redenção, é lógico que um homem que sente verdadeiro empenho tem de observar todo o processo da mente, tanto o culto como o patente. Isso é extremamente difícil. A maioria de nós estamos dissipando as nossas energias, por influência do clima, por influência do regime alimentar, com maledicência ociosa — perdão, não há maledicência ociosa, só existe maledicência — e por causa da inveja. Não nos resta tempo para investigar. E só pela investigação meditativa nos é possível o percebimento claro da mente e da sua substância; então, a mente cessa, e o amor pode existir.
Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa