Começando com um paradoxo fundamental do caminho místico, expresso pelo arqueiro zen que não olha para o alvo quando atira a flecha, um dos personagens de Heidegger faz uma observação a respeito da abordagem à contemplação: a natureza do pensamento só pode ser vista se não olharmos o pensamento. Assim, precisamos nos afastar do nosso impulso de calcular, olhando para o céu ou para o outro lado das montanhas do nosso ser, para podermos nos tornar receptivos à profunda natureza do pensamento por baixo da função superficial do querer. E o segundo participante do diálogo responde: Em resposta à sua pergunta com relação ao que eu realmente desejava da nossa meditação a respeito da natureza do pensamento... eu quero não querer. Esse não-querer entra em ação quando deixamos de olhar para o alvo. Não podemos agarrar intencionalmente o não-querer, precisamos ser largados nele. O terceiro participante da conversa observa: você quer um não-querer no sentido de uma renúncia do querer, de modo que por meio disso possamos... nos libertar para a essência procurada de um pensamento que não é um querer. O pensador contemplativo não se apodera da essência do pensamento, sendo, ao contrário, liberado para a essência do pensamento. Essa distinção não é apenas um jogo de palavras. Se esperamos entender um significado particular, extraindo energicamente a essência do objeto, permanecemos então no nível do pensamento calculador.Até o uso da sintaxe comum, de um verbo e seu complemento, como Eu conheço a essência do pensamento, representa um envolvimento sutil com o modo de controle intencional. O pensamento contemplativo, ao contrário, é uma perfeita liberação, que é, fundamentalmente, a liberação com relação ao querer. O contemplativo não mais afirma, Eu conheço a essência, porém pondera, não quer conhecer, e sim aguardar a essência num perfeito não-saber. Importantes avanços culturais e científicos se desenvolveram a partir do querer ambicioso dos seres humanos para se apoderar de essências e, desse modo, controlar a energia, mas isso jamais nos liberará para a natureza da contemplação.
A conversa triangular prossegue, cada pensador respondendo ao outro como instrumentos numa composição musical.
— Se ao menos eu já possuísse a liberação adequada, eu poderia logo me livrar da tarefa de afastar-me do querer.
— Até onde conseguimos nos afastar do querer, estamos contribuindo para o despertar da liberação.
— Diga, em vez disso, para nos mantermos despertos para a liberação.
Encarar nossos esforços pessoais como estando contribuindo para o despertar da liberação significa envolvermo-nos no cálculo sutil. A frase mantermos-nos despertos para a liberação expressa com maior precisão esse despertar do modo contemplativo. É preciso perceber que já possuímos a liberação adequada, porque a tarefa de nos afastarmos da vontade é interpenetrada pelo próprio querer. O querer nunca pode transcender a vontade. A única maneira de nos livrarmos do querer é vivenciar a verdade de que a perfeita liberação já existe. Assim continua a conversa:
— Não despertamos a libertação em nós mesmos por nós mesmos.
— Por conseguinte, a libertação é influenciada por algum outro lugar.
— Influenciada não, admitida. A libertação desperta quando nossa natureza é admitida para lidar com o que não é um querer.
Heidegger demonstra um cuidado constante de mudar a voz ativa para passiva, o sentido intencional de influenciar a libertação para o sentido contemplativo de ser admitido. Porém essa predileção do pensamento profundo pelo modo passivo no reino da linguagem não significa passividade no reino da ação. Isso se torna claro através da continuação da conversa dos três amigos enquanto vagueiam sem rumo pela trilha campestre:
— Você fala em deixar como está e dá a impressão de querer se referir a uma espécie de passividade... Creio que compreendo que esta não é uma maneira de debilmente permitir que as coisas vaguem ao léu.
— Talvez uma ação mais elevada do que a encontrada em todas as ações do mundo esteja oculta na liberação.
— E essa ação mais elevada ainda é não-atividade.
Apesar de emergir diretamente da tradição filosófica ocidental, o pensamento profundo de Heidegger evoca a ação destituída de ego dos contemplativos zen e taoístas, cujo perfeito relaxamento no meio da ação admite o fluxo do Tao, ou o não-querer, deixa-o estar de um modo que permite espaço para a imobilidade no centro de uma intensa atividade. É isso que Heidegger denomina liberação.
Lex Hixon em, O Retorno à Origem - A Experiência da Iluminação Espiritual nas Tradições Sagradas