O meu interesse por Krishnamurti surgiu era eu ainda estudante, em 1949, altura em que o conheci pela primeira vez em Colombo, nesse mesmo ano. Lembro-me do modo surpreendente como dei por mim por entre uma multidão imensa e impaciente que aguardava a chegada de certo homem santo, de nome Krishnamurti, junto ao hotel da cidade. E assim que a viatura da prefeitura chegou deparamos com uma silhueta delgada acondicionada de modo nervoso no banco de trás, junto do prefeito da época, o Dr.Kumaram Rutmam, um bem conhecido comunista.
Krishnamurti conservava ainda uma vasta cabeleira negra com algumas manchas acinzentadas situadas á altura das têmporas, e envergava um dhoty de seda branco. Depois de sair vigorosamente da limusine encaminhou-se a passo rápido para a escadaria a fim de evitar os olhares ávidos daquelas centenas de fervorosos.
Essa primeira impressão que dele preservo nunca se apagou da minha memória, particularmente porque no decurso da minha juventude não tinha muito hábito de contemplar homens santos assim vestidos, de modo tão refinado, tendo, antes, sido condicionado por exemplos como o do Mahatma Gandhi, que vestiam uma simples tanga. Durante as reuniões públicas posteriores tive boas ocasiões de o observar de modo mais atento; mas o seu olhar aveludado e distante surpreendia-me pois estava á espera de encontrar o olhar ardente de um yogue, e por essa altura já tinha tido a oportunidade de ver vários yogues indianos notáveis, como Sivananda, que, inclusive, me tinha estendido um convite para o seu ashram em Rishikesh, nos Himalaias. O olhar luminoso normalmente está associado ao ardor intelectual, ao passo que o olhar doce significa serenidade e compaixão.
...De certa feita um monge do templo budista de Colombo procurava dissuadir-me de assistir ás conferências de Krishnamurti dizendo-me que ninguém poderia suplantar Buda, e que esse K. pregava uma espécie de budismo desvirtuado. "Porque é ele tão emotivo?" perguntava-me. "Se ele é um arhat" não deveria preservar a sua serenidade?"
Numa outra altura, aquando de uma reunião pública, encontrava-se presente um eminente político que lançou formidáveis invectivas insultuosas, chegando mesmo a detratar Krishnamurti como impostor. Este, contudo, permaneceu calmo e prosseguiu o discurso como se nada se houvesse passado. Em outra ocasião um outro homem repreendeu Krishnamurti utilizando uma linguagem ordinária, ao que K. respondeu perguntando qual era o problema que o cavalheiro tinha. Esse indivíduo acabou por se tornar alvo de riso por parte do auditório, pois tornou-se evidente que o recurso à utilização daqueles modos grosseiros e ofensivos se devia à profunda agitação em que se encontrava.
No decurso de anos subsequentes em que pude observar atentamente Krishnamurti pude constatar que ele jamais sentia lisonja pelo louvor nem mágoa pelas críticas ou insultos que lhe endereçavam mas permanecia como uma árvore plácida diante de uma trovoada, sem jamais perder a sua dignidade e comportamento, mesmo em meio ás circunstâncias mais penosas.
Numa outra altura, os estudantes da Universidade de Ceylon comportaram-se de modo hostil e escandaloso, quando Krishnamurti foi convidado a dirigir-se-lhes; nessa mesma sala, em ocasiões de lugares lotados, pude assistir frequentes vezes à troça que os estudantes usaram contra personalidades de Estado célebres e políticos eminentes, bem como para com homens de letras, suponho que utilizando esses modos para dar prova da falta de confiança na autoridade e, quiçá, dando livre curso á sua própria frustração, á sua agressividade e violência.
Ao penetrar nessa sala Krishnamurti teve que fazer face a um acolhimento inexpressivo. Uns quantos bateram palmas mas a maioria vaiou-o ruidosamente. Essa conferência teve de ser interrompida por diversas vezes, e Krishnamurti foi importunado algumas outras, até acabar por lhes perguntar porque razão se comportavam eles daquele modo já que, antes de mais ele era um orador convidado especialmente para lhes dar uma conferência, mas a despeito da desordem instalada K. continuou a falar sem mesmo evidenciar o mais pequeno traço de ressentimento na atitude que lhes evidenciou e chegou mesmo a unir-se a eles em risos, a certa altura, acabando por conseguir uma alocução eloquente e tocante.
Krishnamurti gostava particularmente de passear ao longo das margens de um lago magnífico que existe nas cercanias da Ilha do Escravo, nos arrabaldes plenos de animação de Colombo, especialmente á hora do poente quando o tempo se fazia mais fresco e agradável, mas por vezes caminhava tão apressado pelo estreito carreiro que ladeia o lago, que se chegava a temer a possibilidade de o ver tropeçar nalguma pedra e cair às águas cheias de cobras; esse temor justificou-se certa vez ao entardecer, durante uma dessas caminhadas em que, de cabeça erguida e num estado extático ele contemplava longamente o céu escarlate, parecendo esquecer-se completamente do carreiro estreito e do lago limítrofe, justo na iminência de um acidente; nessa altura um amigo comum, deu um salto e protegeu-o, mas Krishnamurti tomou-lhe a mão e disse: "Olhe que céu, senhor! Este céu expande-me a mente".
O significado daquilo que proferiu confundiu-nos; quereria ele dizer com aquilo que a contemplação atenta do céu contribuiria para a atividade da mente? Por acaso não tinha ele oposto a prática de métodos á tomada de consciência? Conquanto dissertássemos extensivamente sobre o tema nada conseguimos porém.
Certa vez o grande filósofo E W Adikaram visitou Krishnamurti quando este permanecia no quarto e foi incapaz de conter as lágrimas que lhe escorreram pelas faces, chorando por um bom período de tempo. K sentou-se junto a ele e ficou a observá-lo em silêncio sem pronunciar uma só palavra; tomando consciência de se tratar de um comportamento de algum modo infantil, Adikaram conteve então o choro, de certa forma intimidado pela circunstância.
K. tomou-lhe a mão e consolou-o dizendo que vários outros visitantes tinham passado pelo mesmo, ao fim de pouco tempo na sua presença. É uma espécie de delicadeza ou sensibilidade a que se desenvolve, como quando vemos algo extraordinariamente belo ou escutamos um canto melodioso em que somos vencidos pela comoção.
Adikaram considerava K. com o maior respeito e endereçava-se a ele com tal deferência que por vezes os lábios estremeciam de emoção e a sua voz tremia ao tentar conversar com ele. Numa outra vez, K. chamou-o á parte e questionou-o da razão da sua inquietação, ao que ele respondeu desculpando-se por o considerar pessoalmente como um Buda. Krishnamurti disse-lhe: "Senhor, eu até posso ser um Buda, mas que coisa o levará a temer-me?"
J. Krishnamurti foi uma personalidade única. Não foi um filósofo, no sentido de formular doutrinas ou crenças; isso ele não o fez. Tampouco foi poeta, se bem que tenha escrito alguma poesia refinada. Não foi um grande escritor nem fundador de uma nova religião, se bem que as religiões tenham surgido de homens semelhantes a ele. A verdade é que Krishnamurti é de tal modo universal que se situa além de toda a classificação. Que coisa é que nos subjuga nele, e nos confunde, e que estranha missão terá sida a sua, é o que não sei.
Susunaga Weeraperuma