Você diz que o libertar-nos do “eu”
é uma árdua tarefa, e, ao mesmo tempo, você
declara que todo o esforço de libertação constitui um empecilho a essa própria libertação.
Como executar essa “árdua tarefa” sem esforço?
Krishnamurti: O que você entende
por esforço? Quando é que faz esforço? E se não há esforço algum, implica isso indolência,
estagnação? Comecemos, pois, por averiguar o que se entende por esforço, em que
sentido estamos fazendo esforço? E por que fazemos esforço.
Quando dizemos “fazer esforço”,
entendemos sempre um desperdício de energias com o fim de alcançarmos um
resultado, não é isso? Desejamos mais saúde, mais compreensão, uma melhor situação
econômica, social ou politica, etc., o que significa que estamos sempre fazendo
esforço para chegarmos a alguma parte.
Ou, também, fazemos esforço para
afastar certos obstáculos psicológicos. Se somos invejosos, dizemos que não devemos
sê-lo, assim, uma resistência contra a inveja.
Ou, ainda, queremos ser muito
eruditos, queremos saber mais, para causar impressão nos outros ou para
obtermos um emprego melhor; por conseguinte, lemos, estudamos.
Eis tudo o que sabemos a respeito
do esforço, não é verdade?
Para a maioria de nos, o esforço
ou é positivo ou negativo, um processo de vir a ser ou não vir a ser; e esse
mesmo processo provem do centro do “eu”, não é exato? Se sou invejoso e faço
esforço para não sê-lo, não há duvida de que a entidade que faz tal esforço é
ainda o “ego”, o “eu”.
Todo o esforço para dominar o “eu”,
positiva ou negativamente, é ainda parte do “eu “,
e, por conseguinte, só pode dar-lhe mais força; e ficamos presos nesse circulo
vicioso.
O problema, pois, é de como quebrar
o circulo vicioso, essa cadeia continua de esforços que só servem para
fortalecer o “eu”.
Ao perceber que é invejosa, a
mente deseja não ser invejosa, pensando que o não ser invejoso traz certa compensação;
obtém ela certa satisfação do esforço que faz para não ser invejosa, registra
uma vitória espiritual. Assim, em não ser invejosa a mente encontra segurança, proteção,
e o produto do esforço é ainda o “ego”, o “eu”.
Tenha a bondade de perceber bem
isso, só isso.
Surge assim, o problema: que devo
fazer, quando sou invejoso? Estou acostumado a rejeitar a inveja, a levantar resistência
contra ela; veja agora o quanto isso é fútil, quanto é absurdo que uma parte de
mim mesmo esteja a negar outra parte quando eu sou o todo. Que devo então fazer?
Entretanto, jamais chegamos a
esse ponto, não reconhecemos nunca o fato de sermos, ao mesmo tempo, a inveja e
o desejo de não ser invejoso. Quando somos invejosos, fazemos vigorosos
esforços para dominar a inveja, e pensamos que esse esforçar-se é benéfico, e
nos libertará do “eu”. Não o fará.
Mas quando compreendo, quando
estou perfeitamente cônscio de que a inveja e o desejo de não ser invejoso
constitui um processo total, há então esforço? Ocorre então algo inteiramente
diferente, não é verdade?
Muito bem. No momento em que
estamos cônscios de ser invejosos, coléricos ou ciumentos, põe-se em
funcionamento um processo de condenação; e enquanto estamos condenando, não há compreensão.
As próprias palavras “inveja”, “cólera”,
“ciúme”, subentendem julgamento, comparação, condenação, não é exato? Através de
séculos de educação, de civilização, de ensino religioso, estas palavras
adquiriram um sentido de censura, representam algo que cumpre afastar, algo que
devemos resistir, combater, e nossa reação é toda nesse sentido.
Assim, ao dar nome a certos
sentimentos, já estou em atitude condenatória; e o próprio ato de condenar, de
resistir a um sentimento, dá-lhe mais força. Se não condeno a inveja, isso
significa render-me a ela? Tornar-me-ei mais invejoso? Ora, a inveja é sempre
inveja, nem mais nem menos.
O desejo, a direção pode variar, mas a inveja, é sempre a mesma coisa, quer
tenha por objeto um “Ford” ou um “Cadillac”, quer objetive uma casa grande ou
uma casa pequena. Assim, pois, o não dar nome para a inveja, e portanto o não condena-la,
não significa ceder a ela.
Quando compreendemos que a
própria palavra “inveja” denota condenação, que o sentimento de antagonismo à
inveja é inerente à própria palavra, manifesta-se logo um estado de liberdade. Essa
liberdade não se opõe à inveja, não é liberdade da inveja.
Liberdade de uma determinada
qualidade não é liberdade nenhuma, e o homem livre de algo assemelha-se ao
homem que está contra o governo: enquanto ele está contra alguma coisa não é
um homem livre. A liberdade é completa em si; não resulta de alguma atitude, não
é contra algum estado ou qualidade.
Vemos, pois, que todo esforço
para vencermos alguma coisa, para libertar-nos de alguma coisa, só dá mais
força ao “eu”, ao “ego”; e quando compreendemos isso realmente, quando estamos
conscientes da qualidade do seu oposto, como um processo total, e percebermos
como a própria palavra encerra condenação ou estímulo, então já não estamos na sujeição
das palavras e, portanto, nosso espirito está livre para considerar, observar o que
é .
A compreensão do que é, e a
liberdade que traz, não resulta de exercício persistente, de esforço penoso, a que
dedicamos vários minutos todas as manhãs; apenas surge essa compreensão quando
estamos conscientes, em todo o ocorrer do dia, das árvores, dos pássaros, das
nossas próprias reações, das coisas que sucedem interior e exteriormente, como
um processo total.
Quando há condenação ou justificação,
não há compreensão do que é; por isso torna-se dificílimo o estar consciente.
O que é só pode ser compreendido
momento por momento, e isso significa devemos estar perfeitamente conscientes
de que estamos julgando, de que cada palavra implica rejeição ou aceitação. Enquanto
a mente for a expressão verbal do seu próprio condicionamento, nunca
será livre. Só há liberdade quando a mente está aliviada de todo o
pensamento.
Krishnamurti em, Percepção
Criadora