K: Qual é então a diferença
entre uma mente religiosa e uma mente filosófica? Entende o que estou tentando
transmitir? Podemos investigar a base a partir de uma mente que esteja
disciplinada pelo conhecimento?
DB: Fundamentalmente,
inerentemente, dizemos que a base é desconhecida. Consequentemente não podemos
começar com o conhecimento, e sugerimos que começássemos com o desconhecido.
K: Sim. Digamos, por exemplo,
que "X" afirma que existe tal base, e que todos nós, "Y" e
"Z", perguntamos o que é essa base, e solicitamos que ele prove que
ela existe, que a mostre, que permita que ela se manifeste. Quando fazemos
essas perguntas, nós as fazemos com uma mente que busca, ou melhor, que possui essa paixão, esse amor pela verdade? Ou estamos apenas
querendo falar a respeito do assunto?
DB: Acho que nessa mente
existe a necessidade da certeza; queremos ter certeza. Não há então qualquer
investigação.
K: Suponhamos que você declare
que existe tal coisa, que existe a base; que ela é inabalável, etc.; e que eu
diga que quero descobrir. Peço que me mostre, que prove isso para mim. Como
poderá minha mente, que evoluiu através do conhecimento, que foi altamente
disciplinada no conhecimento, tocar nisso nem que seja de leve? Porque isso não
é conhecimento, não é composto pelo pensamento.
DB: Sim, no momento em que
pedimos que isso seja demonstrado, queremos transformá-lo em conhecimento.
K: Exatamente!
DB: Queremos ter certeza
absoluta, para que não possa haver qualquer dúvida. Ainda assim, do outro lado
da moeda, existe também o perigo da auto-decepção e da desilusão.
K: Naturalmente. A base não pode ser encontrada enquanto existir qualquer
forma de ilusão, que é a projeção do desejo,
do prazer ou do medo. Como percebemos, então, essa coisa? A base é uma
ideia a ser investigada? Ou ela é uma coisa que não pode ser investigada?
DB: Correto.
K: Como minha mente está
treinada, disciplinada, pela experiência e pelo conhecimento, ela só pode
funcionar nessa área. Então uma pessoa se aproxima e me diz que essa base não é uma ideia, não é um conceito filosófico; não é algo
que possa ser composto ou percebido pelo pensamento.
DB: Não
pode ser vivenciado, não pode ser percebido ou compreendido através do
pensamento.
K: Então o que eu tenho? O que
devo fazer? Tenho apenas essa mente que foi condicionada pelo conhecimento.
Como posso me afastar disso tudo? Como posso eu, uma pessoa comum, educada,
instruída, experimentada, sentir essa coisa, tocá-la, e
compreendê-la?
Você me diz que palavras não poderão transmitir isso. Você me diz que temos de ter uma mente livre de todo conhecimento,
exceto do conhecimento tecnológico; e está me pedindo uma coisa impossível, não
está? E se disser que farei um esforço, isso também terá nascido do desejo egoísta.
Então o que farei? Acho que isso é uma pergunta muito séria. Isso é o que todas
as pessoas sérias perguntam.
DB: Pelo menos implicitamente.
Elas poderão não externar isso.
K: Sim, implicitamente. Então,
do outro lado do rio, por assim dizer, me diz que não
existe nenhum barco para realizar a travessia. Não podemos nadar. Na verdade, não podemos fazer nada. Fundamentalmente,
a coisa se resume nisso. O que farei então? Você está me pedindo, está pedindo
à mente, não à mente geral, mas...
DB: ... à mente particular.
K: Está pedindo a essa mente
particular que se abstenha de todo conhecimento. Isso já foi dito alguma vez no
mundo cristão ou judaico?
DB: Não estou a par do que
ocorre no mundo judaico, mas em certo sentido os cristãos dizem para termos fé
em Deus, para nos entregarmos a Jesus, como o mediador entre nós e Deus.
K: Sim. Contudo, Vedanta
significa o fim do conhecimento; e sendo um ocidental, digo que isso não
representa nada para mim, porque a cultura em que tenho vivido enfatizara o
conhecimento, desde os gregos e tudo o mais. Quando nos dirigimos, porém, a
algumas mentes orientais, elas reconhecem na sua vida religiosa que deve haver
uma ocasião em que o
conhecimento deve terminar; a
mente deve ficar livre do conhecimento. Vedanta é a única maneira de olhar.
Contudo, ela representa apenas um entendimento
conceitual, teórico, e para um ocidental, ela não significa absolutamente nada.
DB: Creio que houve uma
tradição ocidental semelhante, mas não tão comum. Por exemplo, na Idade Média,
houve um livro chamado A Nuvem do Desconhecimento, que
segue essa linha de pensamento, embora não seja a principal linha do pensamento
ocidental.
K: Então o que farei? Como
abordarei a questão? Quero descobrir isso. Isso dá significado à vida. Não quer
dizer que o meu intelecto dê significado à vida inventando alguma ilusão,
alguma esperança, alguma crença, mas percebo vagamente que esse entendimento,
recaindo sobre essa base, fornece um enorme significado à vida.
DB: Bem, as pessoas empregaram
essa noção de Deus para dar significado à vida.
K: Não, não. Deus é apenas uma
ideia.
DB: Sim, mas a ideia contém
alguma coisa semelhante à ideia oriental de que Deus transcende o conhecimento.
A maior parte das pessoas aceita a coisa dessa maneira, embora algumas possam
não fazê-lo. Então existe uma espécie de noção semelhante.
K: Mas você me disse que a
base não é criada pelo pensamento. Então não podemos
encontrá-la, sob quaisquer circunstâncias, através de qualquer forma de
manipulação do pensamento.
DB: Sim, eu entendo. Mas estou
tentando dizer que existe esse problema, esse perigo, essa ilusão, no sentido
de que as pessoas dizem: "sim, isso é bem verdadeiro, é através de uma
experiência direta com Jesus que nós a encontramos, e não através do pensamento
de Deus!" Não consigo expressar precisamente o ponto de vista delas.
Talvez seja melhor dizer a graça de Deus.
K: Sim, a graça de Deus.
DB: Algo que transcende o
pensamento, entende?
K: Como um homem razoavelmente
educado, ponderado, rejeito tudo isso.
DB: Por que o rejeita?
K: Porque isso se tornou
comum, em primeiro lugar; comum no sentido de que todo mundo diz isso! E também
porque pode haver nisso um grande sentido de ilusão criado pelo desejo, pela
esperança e pelo medo.
DB: Sim, algumas pessoas
parecem achar isso significativo, embora possa ser uma ilusão.
K: Mas se elas nunca tivessem
ouvido falar de Jesus, elas nunca vivenciariam Jesus.
DB: Isso parece razoável.
K: Elas vivenciariam alguma
coisa diferente que lhes tivesse sido ensinada. Quero dizer, na índia...
INTERROGANTE: Mas as pessoas
mais sérias nas religiões não afirmam que Deus, ou seja lá o que for, o
Absoluto, a base, é uma coisa que não pode ser vivenciada através do
pensamento? Elas podem ir até o ponto de dizer que isso não pode ser em absoluto
vivenciado.
K: Oh, sim, eu disse que isso
não pode ser vivenciado. "X" afirma que isso não pode ser vivenciado.
Digamos que eu não saiba. Há aqui uma pessoa que diz
que existe tal coisa; e eu a escuto. Ela não
apenas transmite isso devido à sua presença como
também através da palavra. Contudo, ela me diz para ter cuidado; a palavra não é o essencial, mas ela usa a
palavra para transmitir que existe algo tão imenso que meu pensamento não consegue
captar. Eu digo então: está bem, você explicou o assunto com muito cuidado;
contudo, como o meu cérebro, que está condicionado e disciplinado pelo
conhecimento, conseguirá se livrar disso tudo?
I: Será que ele conseguiria se
libertar através da compreensão da sua própria limitação?
K: Está me dizendo, então, que
o pensamento é limitado. Prove isso para mim! Não através da fala, da lembrança
da experiência ou do conhecimento; e entendo isso, mas não consigo captar o
sentimento de que ele é limitado, porque vejo a beleza da terra, vejo a beleza
de um prédio, de uma pessoa, da natureza. Vejo tudo isso, mas quando você afirma
que o pensamento é limitado, não consigo senti-lo; vejo apenas um punhado de
palavras. Consigo entender intelectualmente o processo, mas não possuo qualquer
sentimento com relação a ele. Ele não tem perfume. Como pretende me mostrar —
mostrar não — como pretende me ajudar — ajudar não — cooperar comigo, para que
eu consiga ter esse sentimento de que o pensamento em si é frágil, é um
elemento de pouca importância, de modo que sinta isso no meu sangue? Você
entende? Uma vez que esteja no meu sangue, eu o terei comigo; você não terá que
explicá-lo.
I: A abordagem possível,
contudo, não será não falar a respeito da base, que no momento está
extremamente afastada, e sim observar diretamente o que a mente pode fazer?
K: O que significa pensar.
I: A mente está pensando.
K: Isso é tudo que tenho.
Pensamento, sentimento, ódio, amor — conhecemos tudo isso; a atividade da
mente.
I: Bem, eu diria que nós não a conhecemos, que apenas achamos que a conhecemos.
K: Sei quando estou zangado.
Sei quando estou magoado. Não é uma ideia, eu tenho o sentimento, estou levando
a ferida dentro de mim. Estou farto da investigação porque eu a realizei em
toda minha vida. Procuro o Hinduísmo, o Budismo, o Cristianismo, o Islamismo —
e digo que as invés é que eu, como ser humano, posso ter esse sentimento
extraordinário a respeito disso? Se eu não tiver paixão, não estarei investigando. Quero possuir a paixão
que fará com que eu arrebente esse pequeno envoltório. Construí um muro à minha
volta, um muro que sou eu mesmo; e o homem viveu com isso por milhões de anos.
Venho tentando me libertar desse invólucro através do estudo, da leitura, indo
a gurus, através de todos os tipos de coisas, mas ainda estou preso ali. E você
fala a respeito da base, porque vê algo que é emocionante, que parece tão vivo,
tão extraordinário. Contudo, estou aqui, preso aqui. Você, que "viu"
a base, deve fazer alguma coisa que exploda, que rompa completamente esse
centro.
I: Eu tenho que fazer alguma
coisa, ou é você que tem que fazê-la?
K: Ajude-me! Não através da
oração e de todas essas bobagens. Entende o que estou tentando dizer? Jejuei,
meditei, renunciei, fiz votos disso e daquilo. Fiz todas essas coisas porque
vivi um milhão de anos; e no final desse milhão de anos ainda estou onde
estava, no começo. Isso é uma grande descoberta para mim. Pensava que havia
avançado com relação ao início, por ter passado por tudo isso, mas
repentinamente descobri que estou de volta ao mesmo ponto onde comecei. Tive
mais experiências, vi o mundo, pintei, toquei música, dancei — entende? Mas voltei
ao ponto de partida original.
I: Que é o eu e o não eu.
K: Eu. Pergunto a mim mesmo:
o que devo fazer? E qual é a relação da mente humana com a base? Talvez eu
possa estabelecer um relacionamento que possa romper totalmente esse centro.
Isso não é um motivo, um desejo, ou uma recompensa. Percebo que se a mente
puder estabelecer uma relação com aquilo, minha mente se tornará aquilo —
certo?
I: Mas nesse caso minha mente
já não terá se transformado naquilo?
K: Oh, não.
I: Mas penso que você acabou
de eliminar a maior dificuldade ao afirmar que não existe desejo.
K: Não, não. Disse que vivi um
milhão de anos...
I: Mas isso é uma visão
intuitiva.
K: Não. Não aceitarei a visão
intuitiva tão facilmente assim.
I: Bem, deixe-me colocá-lo
dessa maneira: é algo muito mais do que o conhecimento.
K: Não, não está entendendo o
que quero dizer. Meu cérebro viveu por um milhão de anos. Ele vivenciou tudo.
Foi budista, hinduísta, cristão, maometano; ele já foi todos os tipos de
coisas, mas tudo tem a mesma essência.
Alguém então se aproxima e diz: olhe, existe uma base que é... alguma coisa!
Estaria voltando para o que já conhecia — as religiões, etc.? Rejeito todas
essas coisas, porque digo que já passei por todas elas e, no final, são como
cinzas para mim.
DB: Bem, todas essas coisas
representaram uma tentativa de criar uma base evidente pelo pensamento. Parecia
que por meio do conhecimento e do pensamento as pessoas criavam o que elas
encaravam como sendo a base. Mas não era.
K: Não era. Porque o homem
gastou um milhão de anos nisso.
DB: Enquanto o conhecimento
participar da base, ela será falsa?
K: Naturalmente. Existe, pois,
uma relação entre a base e a mente humana? Ao fazer essa pergunta, também estou
ciente do seu perigo.
DB: Bem, podemos criar uma
ilusão do mesmo tipo daquela pela qual já passamos.
K: Sim. "Já toquei essa
música antes."
I: Você está declarando que a
relação não pode ser feita por nós, mas que ela deve aparecer...?
K: Estou perguntando isso.
Não, pode ser que eu tenha de formar um relacionamento. Minha mente está agora
num estado tal que não aceitarei nada. Minha mente diz que já passei por tudo
isso antes. Eu sofri, busquei, observei, investiguei, morei com pessoas que eram
extremamente hábeis nesse tipo de coisa. Estou, então, fazendo a pergunta, e
estou completamente consciente do perigo da mesma, como quando os hindus dizem:
Deus está em vós, Brahma está em vós — o que é uma ideia maravilhosa! Mas já
passei por tudo isso.
Assim, estou perguntando se a
mente humana não tem qualquer relação com a base, e se há apenas a comunicação
num só sentido, dela para mim...
DB: Certamente isso é então,
como a graça de Deus, que você inventou.
K: Não aceitarei isso.
DB: Você não está afirmando
que a relação é num só sentido, e nem está dizendo que ela não é.
K: Talvez; eu não sei.
DB: Você não está dizendo
nada.
K: Não estou dizendo nada. Tudo que eu "quero" é que esse centro seja destruído.
Você entende? Pois o centro não existe. Porque percebo que o centro é a causa
de todo mal, de todas as conclusões neuróticas, de todas as ilusões, de toda
diligência, de todo esforço, de toda miséria — tudo emana desse núcleo. Depois
de um milhão de anos, não consegui me libertar dele; ele não foi embora. Existe
afinal alguma relação? Qual é a relação entre o bem e o mal? Pense nisso. Não
há relação.
DB: Depende do que você
entende por relação.
K: Contato, toque,
comunicação, estar na mesma sala...
DB: ...vir da mesma origem.
K. Sim.
I: Estamos dizendo então que
existe o bem, e que existe o mal?
K: Não, não. Vamos usar outra
palavra; o todo, e o que não é o todo. Isso não é uma ideia. Existe uma relação
entre esses dois? Evidentemente que não.
DB: Não, se você estiver
dizendo que num certo sentido o centro é uma ilusão. Uma ilusão não pode ser
relacionada com o que é verdadeiro, porque o conteúdo de uma ilusão não tem
qualquer relação com o que é verdadeiro.
K: Exatamente. Veja, isso é
uma grande descoberta. Quero estabelecer uma relação com aquilo.
"Quero"; estou usando palavras curtas para transmitir algo. Essa
pequena coisa insignificante quer estabelecer um relacionamento com aquela
imensidão. Ela não pode.
DB: Sim, não apenas por causa
da sua imensidão, mas porque na verdade essa coisa não é - real?
K: Sim.
I: Mas eu não vejo isso. Ele
diz que o centro não é real, mas eu não percebo que o centro não é real.
DB: Não real, no sentido de
não ser genuíno e sim uma ilusão. Quero dizer, alguma coisa está atuando, mas
não é o conteúdo que conhecemos.
K: Você consegue ver isso?
I: Você diz que o centro tem
que explodir. Ele não explode porque não vejo sua falsidade.
K: Não. Você não entendeu o
que eu quis dizer. Vivi um milhão de anos, fiz tudo isso; e no final ainda
estou de volta ao começo.
I: Então você diz que o centro
deve explodir.
K: Não, não, não. A mente diz
que isso é excessivamente pequeno, e que ela não pode fazer nada a respeito...
Ela rezou, fez tudo. O centro, porém, ainda está ali; e alguém me diz que
existe essa base. Quero estabelecer uma relação com ela.
I: Ele me diz que essa coisa
existe, e diz também que o centro é uma ilusão.
DB: Espere, isso é rápido
demais.
K: Não. Espere. Eu sei que ela
está ali. Chame-a do que quiser, de ilusão, de realidade, de ficção — de
qualquer coisa que queira. Ela está ali. A mente, porém, acha que isso não é
suficiente; ela quer captar aquilo. Quer manter um relacionamento com ele. E
aquilo diz: "sinto muito, você não pode ter um relacionamento
comigo". Isso é tudo!
I: Essa mente que quer ter
ligação com aquilo, que quer manter uma relação com ele, é a mesma mente que é
o "mim"?
K: Não separe as coisas por
favor. Você está deixando escapar algo. Eu passei por tudo isso. Eu sei. Posso
discutir com você de trás para frente. Tenho uma experiência de um milhão de
anos, e isso me concedeu uma certa capacidade. No fim de tudo, porém, percebo
que não existe qualquer relação entre mim e a verdade. Isso é um tremendo
choque para mim. É como se você tivesse me golpeado, porque o meu milhão de
anos de experiência diz, vá atrás daquilo, busque-o, reze por ele, lute por
ele, chore, sacrifique-se por ele. Eu fiz tudo isso. E de repente me diz que
não posso ter um relacionamento com aquilo. Eu derramei lágrimas, abandonei minha
família, tudo, por aquilo. E aquilo diz: "Não há relacionamento". Então
o que aconteceu comigo? É aí que quero chegar. Entende o que estou dizendo — o
que aconteceu comigo? À mente que viveu dessa maneira, que fez tudo em busca
daquilo, quando aquilo diz: "você não tem qualquer relação comigo".
Essa é a maior coisa...
I: Se você disser isso será um
tremendo choque para o "mim".
K: É para você?
I: Creio que sim, e então...
K: Não! Estou lhe perguntando,
é um choque descobrir que o seu cérebro, a sua mente, e
o seu conhecimento não têm valor? Que todas as suas investigações, todos os
seus esforços, todas as coisas que você reuniu por anos e anos, por séculos,
são absolutamente inúteis? Você enlouquece, ao concluir que fez tudo isso por
nada? Virtude, abstinência, controle, tudo — e, no final, você reconhece que
eles não têm valor! Entende o que isso faz com você?
DB: Bem, se a coisa toda vai
embora, então isso não tem importância.
K: Certamente: não existe
qualquer relacionamento. O que fizemos ou deixamos de fazer não tem
absolutamente qualquer valor.
DB: Não num sentido
fundamental. Tem um valor relativo, um valor relativo apenas dentro de uma
certa estrutura, que não tem valor em si mesma.
K: Sim, embora tenha um valor
relativo.
DB: Mas a estrutura em geral
não tem valor.
K: Exatamente. A base diz que
seja o que for que tenhamos feito "sobre a terra", isso não tem
qualquer significado. É aquilo uma ideia? Ou uma realidade? Ideia no sentido de
que já me disseram, mas eu continuo lutando, desejando, tateando. Ou é uma
realidade, no sentido de que de repente percebo a futilidade de tudo que já
fiz. Temos então de tomar muito cuidado para
compreender que aquilo não é um conceito; ou melhor, que não o transformamos
num conceito ou numa idéia, e sim que
recebemos o seu impacto total!
I: Veja, Krishnaji, o homem
buscou por centenas de anos, provavelmente desde que existe, o que ele chama de
Deus, ou a base.
K: Como uma idéia.
I: Mas então a mente
científica se aproximou, e também disse que ela é apenas uma idéia, que é
apenas tolice.
K: Oh, não! A mente científica
diz que através da investigação da matéria talvez nos deparemos com a base.
DB: Sim, muitas pessoas acham
isso. Algumas até acrescentariam a investigação do cérebro.
K: Sim. Esse é o objetivo da
investigação da mente, e não nos exterminarmos mutuamente da terra através das
armas. Não estamos nos referindo a cientistas do governo, e sim aos
"bons" cientistas, àqueles que dizem que estão examinando a matéria,
o cérebro e todo o resto, para descobrirem se existe algo além disso tudo.
I: E muitas pessoas, muitos
cientistas, diriam que encontraram a base; a base é vazia, ela é o vazio; é uma
energia que é diferente do homem.
K: Isso então é uma idéia ou
uma realidade para eles, que afeta suas vidas, seu sangue, suas mentes, seu
relacionamento com o mundo?
I: Penso que é apenas uma
idéia.
K: Então sinto muito, já
passei por tudo isso. Fui um cientista há dez mil anos atrás! Entende? Já
passei por tudo isso. Se é apenas uma idéia, nós dois podemos participar desse
jogo. Posso enviar a bola para você, ela estará na sua quadra, e você pode
mandá-la de volta para mim. Podemos jogar esse jogo; mas já não participo mais desse tipo de jogo.
DB: Porque, em geral, o que as
pessoas descobrem sobre a matéria não parece afetá-las
profundamente, psicologicamente.
K: Não, naturalmente que não.
DB: Poderíamos pensar que se
elas percebessem toda a unidade do universo, elas agiriam de modo diferente,
mas isso não ocorre.
I: Poderíamos dizer que isso
afetou um pouco as suas vidas. Veja, toda a doutrina comunista está baseada na
idéia (que seus seguidores consideram um fato) de que tudo que existe é apenas
um processo material, que é essencialmente vazio. O homem então tem de
organizar sua vida e a sociedade de acordo com esses princípios dialéticos.
K: Não, não, os princípios
dialéticos representam uma opinião que se opõe a outra opinião; o homem espera
encontrar a verdade a partir das opiniões.
DB: Acho que deveríamos deixar
isso de lado. Há maneiras de observarmos diferentes significados da palavra
dialético — mas precisamos compreender a realidade como um movimento que flui;
ver as coisas não como sendo fixas e sim em movimento e interligadas. Acho que
poderíamos dizer que não importa o modo como as pessoas conseguiam ver as
coisas, depois que percebiam essa unidade; isso não mudava fundamentalmente suas
vidas. Na Rússia, as estruturas mentais são as mesmas de todos os lugares, se é
que não são piores. Além disso, sempre que as pessoas tentaram, isso não afetou
realmente, fundamentalmente, a maneira como elas sentem e pensam, e o modo como
vivem.
I: Entenda, o que eu quis
dizer é que o fato das pessoas abandonarem a busca da base não teve qualquer
efeito chocante sobre elas.
K: Não! Não estou interessado.
Foi um tremendo choque para mim descobrir a verdade, ou
seja, que todas as igrejas, orações, livros, não possuem absolutamente qualquer
significado — a não ser como podemos construir uma sociedade melhor, e
assim por diante.
DB: Se conseguíssemos
organizar esse ponto, haveria então um grande significado — construir uma boa
sociedade; mas enquanto essa desordem estiver no centro, não podemos usá-lo do
modo correto. Acho que seria mais preciso dizer que há um grande significado
potencial em tudo isso, mas que não afeta o centro, e não há qualquer indício
de que jamais o tenha feito.
I: Veja, o que não entendo é como podem existir tantas pessoas que nunca buscaram nas suas
vidas aquilo que você chama de base.
K: Elas não estão
interessadas.
I: Bem, não estou tão certo.
Como você se aproximaria de uma pessoa assim?
K: Não estou interessado em me
aproximar de qualquer pessoa. Todos os trabalhos que já realizei — tudo que fiz
— a base afirma que não tem valor. E se eu puder abandonar tudo isso, minha
mente será a base. Avanço então a partir daí. A partir daí eu crio a sociedade.
DB:
Penso que poderíamos dizer que enquanto estivermos procurando a base em algum
lugar por meio do conhecimento, estaremos bloqueando o caminho.
K: Voltando então à terra: por
que o homem fez isso?
DB : Fez o quê?
K. Acumulou conhecimento. Sem
contar com a necessidade de o conhecimento existir com relação a algumas áreas,
por que essa carga de conhecimento continuou por tanto tempo?
DB: Porque num determinado
sentido o homem vem tentando criar uma base sólida através do conhecimento. O
conhecimento tentou criar uma base. Essa é uma das coisas que aconteceram.
K: E o que quer dizer isso?
DB: Significa novamente
ilusão.
K: O que significa que os
santos e os filósofos me educaram — no conhecimento e através do conhecimento —
para que eu encontrasse a base.
I: Para criar uma base. Veja,
de certo modo, houve todos esses períodos em que a humanidade foi envolvida
pela superstição; e o conhecimento foi capaz de destruir isso.
K: Oh, não.
I: Até certo ponto, sim.
K: O conhecimento apenas me
impediu de perceber a verdade. Eu me mantenho fiel a isso. Ele não me
desembaraçou das minhas ilusões. O próprio conhecimento pode ser ilusório.
I: Isso é possível, mas ele
dissipou algumas ilusões.
K: Eu quero dissipar todas as
ilusões que conservo — não algumas. Eu me livrei da minha ilusão com relação ao
nacionalismo; libertei-me da ilusão sobre a crença, sobre isso, sobre aquilo.
No final, percebo que minha mente é ilusão. Veja bem: para mim, que vivi mil
anos, descobrir que tudo isso não tem qualquer valor, é algo imenso.
DB: Quando diz que viveu mil
anos, ou um milhão de anos, isso quer dizer, em certo sentido, que toda a
experiência da humanidade é...?
K:... sou eu.
DB:... sou eu. Você sente
isso?
K: Sim.
DB: E como sente isso?
K: Como sentimos qualquer
coisa? Espere um minuto. Eu lhe direi. Não é simpatia, ou empatia, não é uma
coisa que eu desejei, é um fato, um fato absoluto, definitivo.
DB: Será que poderíamos
compartilhar esse sentimento? Veja bem, essa parece ser uma das etapas que
estão faltando, porque você repetiu isso frequentemente como sendo uma parte
importante da coisa toda.
K: O que significa que quando
amamos alguém não existe um "mim" — é amor. Do mesmo modo, quando
digo que sou a humanidade, isso é um fato - não é uma idéia, não é uma
conclusão, é parte de mim.
DB: Digamos que é um
sentimento de que eu já passei por tudo isso, tudo que você descreve.
K: Os seres humanos já
passaram por tudo isso.
DB: Se os outros passaram por
isso, então eu também já passei.
K: Naturalmente. Não estamos
conscientes disso.
DB: Não, nós nos isolamos.
K: Se admitirmos que os nossos
cérebros não são o meu cérebro particular, e sim o cérebro que evoluiu através
dos milênios...
DB: Deixe-me falar porque não
é fácil transmitir isso: todo mundo sente que o conteúdo do seu cérebro é de
alguma forma individual, que ele não passou por tudo isso. Digamos que alguém,
há milhares de anos, esteve envolvido com a ciência ou a filosofia. Em que isso
me afeta? É isso que não está claro.
K: Porque estou preso nesta
pequena cela estreita e egoísta, que se recusa a olhar mais além. Porém você,
como cientista, como homem religioso, aproxima-se e me diz que o seu cérebro é
o cérebro da humanidade.
DB: Sim, e todo o conhecimento
é o conhecimento da humanidade.
De modo que de certa maneira
possuímos todo o conhecimento.
K: Naturalmente.
DB: Embora não em detalhes.
K: Então você me diz isso, e
eu compreendo o que você quer dizer, não de forma verbal ou intelectual; é
assim. Só chego aí, porém, quando abandono as coisas comuns como a
nacionalidade, etc.
DB: Sim, nós renunciamos às
separações, e podemos perceber que a experiência é de toda a espécie humana.
K: É tão óbvio. Se formos ao
lugarejo mais primitivo da índia, o camponês nos contará todos os seus
problemas, da sua esposa, dos seus filhos, da sua pobreza. É exatamente a mesma
coisa, apenas ele usa roupas diferentes ou seja lá o que for! Para
"X" isso é um fato indiscutível; é assim. Ele diz: está bem, no final
disso tudo, de todos esses anos, descobri de repente que a coisa é vazia. Veja
bem, nós não aceitamos isso, somos espertos demais. Estamos saturados por
debates, discussões e pelo conhecimento. Não percebemos um simples fato. Nós
nos recusamos a vê-lo. "X" então se aproxima e diz: veja, está ali; o
mecanismo imediato do pensamento logo se põe em ação — e diz, fique em silêncio.
Praticamos então o silêncio! Nós o fizemos durante mil anos e isso nos levou a
lugar algum. Existe então apenas uma coisa, que é descobrir que tudo que fiz é inútil
— cinzas! Isso não me deprime, é a beleza da coisa. Acho que ela é como a Fênix.
DB: Elevando-se das cinzas.
K: Nascida das cinzas.
DB: De certa maneira é a
liberdade, é estar livre disso tudo.
K: Nasce algo totalmente novo.
DB: Entretanto o que você
disse anteriormente é que a mente é a base, que ela é o desconhecido.
K: A mente? Sim. Mas não esta
mente.
DB: Nesse caso não é a mesma
mente.
K: Se eu passei por tudo isso,
e cheguei num ponto em que tenho que acabar com tudo isso, é uma nova mente.
DB: Está claro, a mente é o
seu conteúdo, e o conteúdo é o conhecimento, e sem esse conhecimento ela é uma
nova mente.
A Eliminação do tempo psicológico - 12 de abril de 1980, Ojai,
Califórnia