Uma mente que pratica um sistema
pode descobrir o que está além dela? Uma mente confinada na estrutura da
própria disciplina é capaz de buscar? Não é preciso haver liberdade para
descobrir?
(...) Todos nós buscamos uma
saída para nossa infelicidade e provação; mas a procura acaba quando adotamos
um método pelo qual desejamos dar fim à dor. Somente na compreensão da dor há
um fim para ela, e não na prática de um método.
(...) É possível compreender
quando, por meio da disciplina e de várias práticas, a mente está moldada pelo
desejo? A mente não precisa ser livre para que a compreensão aconteça?
(...) A liberdade está no começo,
não no fim... Quando a totalidade daquilo que leva inevitavelmente a
infelicidade e confusão é percebida, não há qualquer sentido na disciplina
contra ela. Se aquele que agora despende tanto tempo e energia na prática de
uma disciplina, com todos os seus conflitos, dedicasse o mesmo pensamento e
atenção à compreensão do total significado da dor, haveria o fim completo da
dor. Mas estamos presos na tradição da resistência, da disciplina, e por isso
não há qualquer compreensão dos mecanismos da dor.
(...) Podemos realmente escutar
enquanto a mente se apega a conclusões baseadas em suposições e experiências?
Certamente, só escutamos quando a mente não está traduzindo o que ouve em termos
daquilo que conhece. O conhecimento impede o escutar. Talvez um indivíduo saiba
muitas coisas; mas para escutar algo que pode ser totalmente diferente do que
ele sabe é preciso deixar de lado todo conhecimento.
(...) O verdadeiro e o falso não
se baseiam em opinião ou julgamento, independente de quão sábios e antigos.
Perceber o verdadeiro no falso e o falso naquilo que se diz verdadeiro, e ver a
verdade como verdade, exige uma mente que não está presa no próprio
condicionamento. Como podemos perceber se uma afirmação é verdadeira ou falsa
se a mente é preconceituosa, presa na própria estrutura das próprias conclusões
e experiências, ou de outro? Para essa mente, o importante é perceber a própria
limitação.
(...) Para compreender
completamente o significado de um problema é preciso considerar toda a questão
do esforço... O esforço por ser ou não ser algo é a continuação do “eu”. Esse
esforço pode se identificar com o Atman, a alma, o Deus interior, e
por aí vai, mas seu núcleo ainda é a ganância, a ambição, que é o “eu”, com
todos os seus atributos conscientes e inconscientes.
(...) Enquanto houver um
observador que está tentando mudar, ou ganhar ou colocar de lado aquilo que
observa, haverá esforço; pois, afinal, o esforço é o conflito entre o que é
e o que deveria ser, o ideal. Quando esse fato é compreendido, não
apenas verbal ou intelectualmente, mas profundamente, então a mente adentrou o
estado de ser em que todo esforço, como o conhecemos, não existe.
(...) Tal estado não pode ser
buscado; ele chega sem convite. O desejo de alcança-lo compele a mente a
acumular conhecimento e praticar disciplinas como meio de adquiri-lo — o que,
mais uma vez, é um obstáculo à experiência de tal estado.
(...) Uma mente que é resultado
do tempo, uma mente que leu, estudou, que meditou sobre o que lhe foi ensinado,
e é em si mesma uma continuação do passado — como pode tal mente experimentar a
realidade, o atemporal, o sempre novo? Como pode divisar o desconhecido?
Certamente, saber, ter certeza, é o caminho da vaidade, da arrogância. Enquanto
alguém sabe, não há morrer, há apenas a continuação; e o que tem continuidade
jamais pode achar-se naquele estado de criação que é o atemporal. Quando o
passado cessa de contaminar, a realidade é. Não há, então, qualquer necessidade
de buscá-la.
Com uma parte de si, a mente sabe
que não há permanência, nenhum canto no qual repousar; mas, com outra parte,
está sempre se disciplinando, buscando aberta ou sutilmente estabelecer um
refúgio de certeza, de permanência, uma relação além de toda contenda. Assim,
há uma infinita contradição, um esforço por ser e também por não ser, e
passamos nossos dias em conflito e dor, prisioneiros entre os muros de nossas
próprias mentes. Os muros podem ser destruídos, mas o conhecimento e a técnica
não são os instrumentos para essa liberdade.
Jiddu Krishnamurti