(...)
Todos podem ser levados à dúvida
por outrem, a duvidar do próprio conhecimento, da própria compreensão que
houverem colhido, por meio do sofrimento de vocês. Porém, a dúvida que não for
oriunda de vocês mesmos, não purificará. Somente purificará as suas crenças
estreitas, só dará estabilidade à sua estreita forma de culto à personalidades,
se você se apegarem a algo que, de momento, é um conforto e, portanto, uma
traição à verdade. Mas, se houverem convidado a dúvida na plenitude do coração
de vocês para colocarem à prova essa compreensão da verdade da qual colheram um
vislumbre, então, duvidando da própria dúvida, o que permanecer será puro,
absoluto e final.
E a fim de que possam compreender
o absoluto e o eterno, devem ter experimentado a sombra da dúvida lançada sobre
o entendimento de vocês. E, como a maioria das pessoas temem a dúvida, pensam
ser um crime, um pecado, expulsam a dúvida de suas mentes, acrescentando assim
a sua estreiteza, a sua mesquinhez na adoração de personalidades, em seus
abrigos que acalentam decadência e conforto.
Ao contrário, se convidarem a
dúvida para entrar no coração e na mente de vocês e se acompanharem a dúvida,
logicamente, por todos os seus caminhos, avenidas e sombras da mente e do
coração e incansavelmente escutarem e examinarem todas as coisas, então, o que
permanecer será do próprio conhecimento de vocês, e, portanto, o absoluto, o
eterno.
(...)
Existe contradição de ideias,
teorias, criadas pelas constantes afirmações dos dirigentes, a respeito do que é
e do que não é.
Alguns deles dizem que Deus
existe, outros que não existe. Alguns sustentam que o indivíduo vive após a
morte; os espíritas proclamam haver provado que existe continuação da mente
individual; — outros dizem que só existe o aniquilamento. Alguns acreditam na
reencarnação, outros a negam.
Empilha-se teoria sobre teoria,
incerteza sobre incerteza, afirmação sobre afirmação. O resultado de tudo isto
é que o indivíduo fica integralmente incerto; ou então, o indivíduo fica tão
cercado, tão limitado por conceitos e formas de crenças particulares, que recusa
ponderar sobre o que realmente é verdadeiro. Ou estão incertos, confusos, ou
estão certos nas suas crenças e na forma particular de pensamento. Para o homem
que está verdadeiramente incerto, há esperança; para o homem, porém, que está incrustado
na crença, naquilo que ele chama intuição, há pouquíssima esperança, pois
fechou a porta à incerteza, à dúvida, e acha repouso e consolação na segurança.
Imagino que a maioria de vocês estejam
incertos, confusos, portanto, profundamente desejosos de compreender o que é a
realidade, o que é a verdade.
A incerteza engendra o medo, o
qual dá nascimento ao desânimo e à ansiedade. Depois consciente ou
inconsciente, começa o indivíduo a fugir desses temores e suas consequências.
Observem os seus pensamentos, e surpreenderão este
processo em operação. À medida que anseiam por se assegurarem do propósito da
vida, do além, de Deus, começam a se aperceber dos seus desejos, por meio dessa
investigação, sobrevém a dúvida, a incerteza. Depois essa mesma dúvida e
incerteza criam o medo, o isolamento, a vacuidade ao redor e em vocês mesmos.
Isto é um estado necessário para
a mente, porque então ela deseja experimentar e compreender a realidade.
Porém, o sofrimento implícito
neste processo é tão grande que a mente procura abrigo e cria para si mesma o
que ela chama intuições, conceitos, crenças e agarra-se a essas coisas
desesperadamente, com esperança de encontrar certeza. Este processo de fuga da
atualidade, da incerteza, tem de necessariamente conduzir à ilusão, à
anormalidade, às neuroses e desequilíbrio. Mesmo que aceitem essas instituições
, essas crenças, e nelas tomem abrigo, se, apesar disso, se examinarem a si
mesmos com profundidade, verificarão que existe ainda o medo, a incerteza
continua.
Este estado vital de incerteza,
isento do desejo de a ele escapar, é o início de toda a verdadeira busca da
realidade. O que é que realmente vocês estão procurando? Só pode haver um
estado de compreensão, uma percepção direta daquilo que é, da atualidade, pois,
a compreensão não é um fim, um objetivo a ser atingido. O discernimento do
processo efetivo do "eu", do seu vir-a-ser e de sua verdadeira
dissipação é o começo e o fim da busca.
Para entender aquilo que é,
deverá a compreensão principiar por si mesmos. O mundo é uma série de processos
indefinidos, variados, que não podem ser plenamente compreendidos, pois cada
força é única em si mesma e não pode ser verdadeiramente perceptível em sua
totalidade. O processo integral da vida, da existência no mundo, depende
inteiramente de forças únicas e só poderão compreender por meio desse processo que se acha focalizado
no indivíduo sob a forma de consciência. É possível alcançarem superficialmente
o significado de outros processos; porém, para compreender a vida plenamente,
necessitam entender o processo que opera em vocês, sob a forma de consciência.
Se cada qual de vocês, profunda e
significativamente, compreender esse processo que opera sob a forma de
consciência, então nenhum de vocês lutará para si mesmo, existirá para si nem
se preocupará consigo. Presentemente, cada qual preocupa-se consigo próprio,
lutando para si e agindo antissocialmente, por não se compreender a si mesmo,
plenamente; e é somente pela compreensão de nossa força única como consciência, que há a possibilidade de
compreender o todo. Quando plenamente discernirem o processo do "eu",
cessarão de ser uma vítima que luta sozinha no vácuo.
Esta força é única, e em seu
próprio desenvolvimento torna-se consciência, de onde surge a individualidade.
Por favor, não decorem esta frase; porém, antes, pensem a respeito, e assim
verificarão que esta força é única para cada um e, mediante seu desenvolvimento
auto-ativo, torna-se consciente. O que é esta consciência? Ela não pode ter
localização alguma, e tão pouco pode ela dividir-se em superior e inferior. A
consciência compõe-se de múltiplas camadas de lembranças, de ignorância, de
limitações, de tendências e anseios. Ela é discernimento e tem o poder de
compreender os valores últimos. É o que nós chamamos individualidade. E não
perguntem: "nada mais existe além disto?" Isso será discernido,
quando o processo do "eu" houver terminado. O que importa é se
conhecer a si mesmo, e não — saber o que está para além.
Vocês apenas procuram recompensa
para os seus esforços, algo a que possam se apegar no presente desespero,
incerteza e temor de vocês, que evidenciam ao perguntar: existe algo além desse
"eu"?
Ora, a ação é esse atrito, essa
tensão que se dá entre a ignorância, o anseio e o objeto de seu desejo.
Esta ação sustenta-se a si
própria e é isso que dá continuidade ao processo do "eu". Portanto, a
ignorância, pelas suas atividades por si mesma sustentadas, perpetua-se sob a
forma de limitações por ele próprio criadas, impedem as verdadeiras relações
com os outros indivíduos, com a sociedade. Estas limitações isolam o indivíduo,
e por isso surge o medo constantemente. Esta ignorância, no que a nós diz
respeito, cria sempre o medo, com suas múltiplas ilusões, e daí decorre a busca
da união com o eu superior, com qualquer inteligência super-humana, com Deus, e
assim por diante. Deste isolamento provém a continuação de sistemas, de métodos
de conduta, de disciplina.
Pela dissolução destas
limitações, vocês começam a discernir que a ignorância não tem princípio, que
se mantém a si própria pelas suas próprias atividades, e que este processo só
pode finalizar pelo reto esforço e pela reta compreensão. Vocês podem colocar
isto à prova, mediante a experiência e discernir, por si mesmos, que o processo
da ignorância é isento de começo e isento de terminação. Se a mente-coração
estiver presa por qualquer preconceito particular, sua própria ação tem de
criar outras limitações, e, portanto, produzirá maior tristeza e confusão.
Assim, perpetua ela sua própria ignorância e suas próprias tristezas.
Se vocês se tornarem plenamente
conhecedores desta atualidade, mediante a experiência, então, se dará a
compreensão do que seja o "eu", e o esforço reto poderá lhe colocar
fim.
Este esforço é o percebimento no
qual não há seleção ou conflito de opostos, uma parte da consciência vencendo a
outra parte, um preconceito sobrepujando a outro. Isto exige um pensamento
vigoroso, que libertará a mente de temores e limitações. Somente então haverá o
permanente, o real.
Pelo simples afirmar que toda a existência
está condicionada, jamais descobrirão se existe um estado que possa não ser
condicionado. Ao se tornar integralmente apercebido do estado condicionado,
cada um começará a compreender a libertação que vem através da cessação do
medo.
Krishnamurti — O medo — 1946 —
ICK