O PROBLEMA do saber e da
especialização parece-me muito importante. Consideremo-lo e vejamos se a mente,
educada na especialização e no conhecimento pode ser livre para investigar e
descobrir se nada mais existe além daquilo que lhe é conhecido; se pode
perceber a onde o conhecimento nos está levando, e o significado da
especialização.
Há muitos ramos do saber, e cada
dia se põem ao nosso dispor, numa escala formidável, novos e copiosos
conhecimentos. A onde nos está levando tudo isso? Qual é a função do saber?
Vê-se que o saber está essencialmente num certo nível do nosso viver consciente
ou inconsciente, da nossa existência. Pode esse saber ser um obstáculo à
investigação mais profunda, à compreensão do inteiro significado da existência?
Por exemplo, eu posso, como indivíduo, saber construir uma ponte. Pode esse conhecimento
produzir uma mudança radical na minha maneira de pensar? O que ele pode
produzir é uma modificação ou ajustamento superficial. Mas, que é necessário, na
atual crise do mundo: um mero ajustamento superficial ou uma revolução radical?
A mim me parece que a revolução nascida de qualquer sistema determinado de ação
não é revolução, absolutamente, e que, se desejamos criar uma nova geração, com
uma nova mentalidade, precisamos descobrir qual é a função do saber.
Que é o saber? — não estou
pedindo o significado ou a definição do dicionário. O saber não significa
cultivo da memória numa dada especialidade? Não significa o desenvolvimento da
faculdade de acumular conhecimentos, para serem utilizados para um determinado
fim? Sem a ciência, evidentemente, é quase impossível a existência moderna.
Pode o saber, que é cultivo da memória, acumulação de conhecimentos e emprego
desses conhecimentos para fins especiais — a cirurgia, a guerra, o
desconhecimento de novos fatos científicos, etc., etc. — pode o saber
constituir um obstáculo à perfeita compreensão da sociedade humana?
Como disse, o saber pode ser de
notável utilidade num nível especial. Mas, se não compreendemos o processo
total da existência humana, não será esse saber um obstáculo à paz humana? Por
exemplo: temos suficientes conhecimentos científicos para dar alimentação e
teto a toda a humanidade. Por que razão não se põe isso em prática? Não é um
problema que interessa à maioria de nós? Não está este problema impedindo que
se tome na devida consideração a questão do bom entendimento e da paz entre os
homens?
Que é que impede a abolição da
guerra, o fornecimento de alimentos, de roupas, de morada a todos os homens?
Certamente não é o saber, e, sim, uma coisa de todo diferente. É o nacionalismo
e os interesses de toda ordem – capitalistas, comunistas, ou de determinado
grupo religioso — é tudo isso que está impedindo a união dos homens. A menos
que haja uma transformação radical da nossa maneira de pensar, o saber
continuará a ser utilizado para a destruição do homem. Que estão fazendo as
nossas sapientes Universidades, acadêmicas e espirituais? Estão a produzir, a
gerar, uma revolução fundamental em nossos corações e em nossas mentes? O ponto
fundamental parece-me ser este e não a constante acumulação de mais
conhecimentos e mais saber.
Pode realizar-se uma revolução
total, mercê do conhecimento, que, afinal de contas, é o desenvolvimento
contínuo da mente, por meio da memória? Posso conhecer muitos fatos, saber as
distâncias entre os vários planetas, saber operar aviões a jato; mas esse
saber, esses conhecimentos podem produzir uma mudança radical do meu pensar? Se
não pode, que produzirá ele então? Este problema não interessa à maioria de
nós? Queremos paz, neste mundo, queremos acabar com a inveja entre os
indivíduos humanos, na sua busca de poder, desejamos pôr fim às guerras. Como
consegui-lo?
A mera acumulação de
conhecimentos pode acabar com as guerras, ou o que se necessita é uma revolução
radical em nosso pensar? Pode, o pensar, produzir essa revolução? Não sei se já
tendes considerado qual desses pontos; mas a mim me parece que uma revolução
baseada em determinado padrão de pensamento não é revolução, em absoluto. Bem
considerado, pensar é a reação a uma determinada condição, reação a um
“desafio”, de acordo com um determinado “fundo”
(background). Reajo ao desafio de
acordo com meu condicionamento, meu próprio “fundo” (background): meu preparo,
minha educação de cristão, hinduísta, muçulmano, etc. Como pode desaparecer
esse “fundo”, esse condicionamento, esse peculiar padrão de ação, e nascer uma
nova maneira de pensar? Não é um problema que interessa à maioria de nós? Por
que nenhuma revolução radical é possível, a menos que se dê a quebra completa
do condicionamento, do padrão do nosso pensar, orientado em determinado
sentido.
O saber, a acumulação de
conhecimentos sobre fatos, pode produzir a quebra do meu condicionamento?
Entretanto, é isto o que estamos fazendo; cuidamos tão-somente de acumular
conhecimentos, saber, de exercitar a memória. Isso é importante, no seu nível
próprio. Pode-se conhecer ou, buscar pela investigação, obter conhecimentos
relativos à consciência total do homem pelo método psicológico de
auto-revelação — quase todo ele intelectual, verbal — ou seja, pela
especialização. Pode isso, porém, produzir a transformação fundamental? Eu acho
que a mera instrução e saber não pode operar nenhuma transformação radical.
Deve haver um outro fator totalmente diverso; e esse fator é a compreensão do
processo da consciência, do processo da mente, sempre a acumular, a entesourar
conhecimentos.
Porque vivemos acumulando
conhecimentos? Fazemo-lo para alcançar a segurança, que aliás é essencial num
nível da nossa existência. Pensam alguns que o conhecimento é meio de
descobrimento. Pode-se descobrir com o conhecimento? O conhecimento não impede
o descobrimento? Como pode a mente descobrir coisas novas, se, na sua
totalidade, ela só está preparada para juntar conhecimentos, saber? Não deve a
mente examinar esta questão, sem estar ancorada em coisa alguma, em nenhuma
crença, nenhum conhecimento? A mente que possui conhecimentos, que possui
saber, deve ficar livre deles, para que possa descobrir; do contrário, nada
descobrirá.
Afinal, em todos nós há um
conflito entre o consciente e o inconsciente, entre os hábitos superficiais de
pensamento e o processo oculto, dos “motivos”, dos desejos, das ansiedades e
temores. Estamos acumulando conhecimentos e saber, no nível superficial, sem
alterarmos fundamentalmente os níveis mais profundos da nossa consciência. A
coisa mais importante, na crise atual, é que a revolução se realize no nível
inconsciente, e não meramente no nível consciente. É impossível a revolução no
nível inconsciente quando o consciente não faz outra coisa, senão cultivar a
memória. Não é este o problema de todos nós, i. é., como produzir uma revolução
profunda em nós mesmos?
O indivíduo, afinal de contas, é
o homem; o resto do mundo não é
diferente de vós nem de mim; e é só o indivíduo quem pode produzir a
transformação radical. Mostra a História que foram sempre uns poucos
indivíduos, diferentes dos outros na sua conduta de vida, que operaram
modificações na sociedade.
A não ser que, individualmente,
nos transformemos profundamente, fundamentalmente, nenhuma possibilidade vejo
de se ter a paz, a tranqüilidade no mundo.
Como pode o indivíduo — vós e eu
— transformar-se radicalmente, no profundo nível inconsciente? — exeqüível isso
pela prática de um ideal ou virtude? O cultivo de determinada virtude não tem
por efeito, meramente, tornar mais forte aquela consciência que está nutrindo o
processo acumulativo da memória, tornar mais forte o “eu”, o “ego”? A prática
de uma idéia ou ideologia não é também uma forma de fortalecer o “eu”, o “ego”,
com o inevitável conflito interior e exterior, que é a causa fundamental de
todas as guerras?
Pode haver revolução no “eu” pela
ação da vontade? Não sei se já exercitastes a vossa vontade com o fim de
produzir modificação. Se o fizestes, deveis ter notado que a ação do “eu” está
sempre no nível consciente e nunca no nível inconsciente; mas a simples
alteração ou exercício da vontade no nível consciente jamais produzirá
revolução alguma, alteração, transformação radical de nossos hábitos de
pensamento. Não é, pois, importante investigarmos, cada um de nós, como a mente
funciona; investigar não de acordo com uma dada filosofia, mas observando as
“maneiras” da nossa mente em ação, o nosso comportamento na vida, para que, com
a compreensão da mente superficial, possamos descer abaixo da superfície e
compreender a mente total?
Como disse no domingo passado, a
menos que se produza a integração do pensador e do pensamento, o pensador se
servirá do pensamento, da razão, da filosofia, da acumulação de saber, como
meio de engrandecimento individual ou coletivo, ou como instrumento de
propaganda de uma dada ideologia. Muito importa, pois, que todos aqueles que
sentem muito interesse por estas questões, descubram o modo de realizar a total
integração do homem. Isso, obviamente, não se pode fazer mediante qualquer
forma de compulsão ou persuasão, nem mediante processos disciplinares, nem pela
ação da vontade; porque tudo isso — se observarmos bem — se acha no nível
superficial. Nosso problema é então este: como poderá realizar-se a
transformação total do nosso ser? Já o tentamos por meio da autoridade, da
compulsão, do ajustamento, da imitação. Se compreendermos a verdade relativa à
compulsão, à disciplina, à imitação ou ajustamento, a mente superficial se
tornará livre desses processos compulsórios e imitativos e se tornará
tranqüila. Então todos os processos inconscientes poderão projetar-se na mente
consciente; e, nessa projeção, temos a possibilidade de descobri-los,
compreendê-los e libertar-nos deles.
Sempre que há compreensão dos
fatos profundos da vida, a mente está, invariavelmente, tranqüila; não está
fazendo esforço algum para compreender. E só quando a mente está de todo
tranqüila, se oferece a possibilidade de uma compreensão capaz de operar a
revolução radical em nossa vida.
Krishnamurti – Debates sobre educação com alunos e professores em
Banaras, Índia – 1954