Temos de considerar juntos se o
cérebro, que agora opera apenas parcialmente, tem a capacidade de funcionar
inteiramente, completamente. Agora, estamos usando apenas uma parte dele, o que
podemos observar por nós mesmos. Podemos perceber que a especialização, que
pode ser necessária, produz o funcionamento de apenas uma parte do cérebro. Se
somos cientistas, nos especializamos nessa matéria, naturalmente apenas uma
parte do cérebro funciona; se somos matemáticos, dá-se o mesmo. No mundo moderno
temos que nos especializar e estamos perguntando se, mesmo assim, é possível
permitir ao cérebro que opere inteiramente, completamente. (1)
(...) Agora, pode o cérebro ser totalmente
livre para funcionar inteiramente? Porque qualquer especialização, o seguir
qualquer caminho, uma determinada rotina habitual ou modelo, inevitavelmente
implica que o cérebro está funcionando parcialmente e, portanto, com energia
limitada. Vivemos numa sociedade de especialização — engenheiros, físicos,
cirurgiões, carpinteiros, e as especializações das crenças, dogmas e rituais
particulares. Certas especializações são necessárias, tais como a do cirurgião
ou a do carpinteiro; mas, apesar disso, pode o cérebro funcionar completamente,
inteiramente e, portanto, possuir uma energia extraordinária? Esta é, acho, uma
questão muito séria, a qual temos que indagar juntos.
Se observarmos a nossa própria
atividade, descobrimos que o cérebro funciona de modo parcial,
fragmentariamente, resultando que nossa energia torna-se cada vez menor à
medida que envelhecemos. Biologicamente, fisicamente, quando somos jovens somos
cheios de vitalidade; mas aos sermos instruídos e, depois, seguimos um modo de
vida que necessita de especialização, a atividade do cérebro torna-se reduzida,
limitada e a sua energia torna-se cada vez menor.
Embora o cérebro possa ser
obrigado a ter uma determinada forma de especialização — não especialização
religiosa, porque isso é superstição — como cirurgião, por exemplo, será que
ele também pode operar integralmente? Ele só pode operar integralmente, com
tremenda vitalidade de um milhão de anos, quando é completamente livre. (2)
Quando o cérebro está ocupado com
problemas, com especialização, com um modo de vida, está numa atividade
limitada.
(...) Pode a consciência de
vocês, com o seu conteúdo básico de medo, da busca do prazer, com todas as
implicações do pesar, da dor e do sofrimento, sendo magoado interiormente, e
assim por diante, tornar-se totalmente livre? Podemos ter outras formas de
consciência — consciência de grupo, consciência racial, consciência nacional, a
consciência do grupo católico, do grupo hindu, e assim por diante — mas,
basicamente, o conteúdo da nossa consciência é o medo, a busca do prazer e a
dor resultante, o sofrimento e, por fim, a morte. Isso compreende o conteúdo
central da nossa consciência... Somos a humanidade porque a nossa consciência,
seja a de um cristão que vive no mundo Ocidental, a de um muçulmano no Oriente
Médio ou a de um budista no mundo asiático é, basicamente, o medo, a busca do
prazer e a interminável carga de dor, mágoas e de sofrimento. A nossa
consciência não é nossa, pessoal. Isso é muito difícil de aceitar, porque fomos
tão condicionados, tão instruídos que resistimos ao fato real de que não somos,
de modo algum, indivíduos: nós somos a humanidade toda... Assim, temos de
descobrir se o cérebro pode ficar livre do conteúdo da sua consciência. (3)
(...) O conteúdo da nossa consciência
é formado por todas as atividades do pensamento. Pode o conteúdo ser sempre
livre, de modo a haver uma dimensão totalmente diferente?... O cérebro foi
condicionado a isso e, portanto, tornou-se limitado. Qualquer coisa que seja
condicionada é limitada e, portanto, o cérebro quando está perseguindo as
diversas formas de prazer, torna-se, inevitavelmente, pequeno, limitado, estreito...
Se vocês observarem, verão que o nosso cérebro está ocupado todo o dia com uma
coisa ou outra, tagarelando, falando interminavelmente, como uma máquina que
nunca para. E, assim, o cérebro gradualmente vai se desgastando, e se tornará
inativo se o computador tomar o seu lugar. (4)
(...) O medo é o estado comum de
toda a humanidade, vivam vocês numa casinha ou num palácio, não tenham nenhum
trabalho ou tenham trabalho demais, tenham um tremendo conhecimento a respeito
de tudo sobre a face da terra ou sejam ignorantes, sejam vocês padres ou os
mais altos representantes de deus, ou sejam o que forem, ainda há este medo profundo
enraizado, comum a toda humanidade. Este é o terreno comum onde pisa toda a
humanidade. Não há duvidas quanto a isto. Trata-se de um fato absoluto,
irrevogável, que não pode ser contradito. Enquanto o cérebro estiver
aprisionado neste modelo de medo, sua operação é limitada e, portanto, nunca
poderá funcionar inteiramente. Assim, é necessário, se a humanidade quiser
sobreviver completamente, como seres humanos e não como maquinas descobrir por
si mesmos se é possível ficar totalmente livre do medo.
Estamos preocupados com o próprio
medo, não com a expressão do medo. O que é o medo? Quando há medo, existe
naquele momento o reconhecimento do medo? Será o medo descritível no momento em
que a reação está acontecendo, ou a descrição vem depois? “Depois” é tempo.
Suponhamos que alguém esteja com medo: quer seja medo de alguma coisa, medo de
algo que fez no passado e não quer que outra pessoa saiba, ou aconteceu alguma
coisa no passado que novamente desperta o medo, ou existe um medo por si mesmo
sem um objeto? No segundo em que o medo acontece nós o chamamos de medo? Ou
isso acontece somente depois? Certamente que é depois de ter acontecido. Isso significa
que os incidentes anteriores do medo, que foram mantidos no cérebro, são
lembrados imediatamente após a reação acontecer; a memória diz: “Isso é medo.”
Na proximidade da reação não o chamamos de medo. É somente depois de acontecer
que o chamamos de medo. Nós o chamamos de medo pela lembrança de outros
incidentes surgidos, os quais foram chamados de medo. Lembramo-nos desses medos
do passado e surge uma nova reação, que imediatamente identificamos com a
palavra medo. Isso é bastante simples. Assim, sempre há a memória operando no
presente.
Então, o medo é tempo? — O medo
de alguma coisa que aconteceu há uma semana, que produziu esta sensação que nós
chamamos de medo e a sua implicação futura, de que não deva acontecer de novo;
no entanto, ela pode acontecer de novo; logo, temos medo dela. Assim, nós nos
perguntamos: será o tempo a origem do medo?... Assim, será o medo parte do
tempo psicológico? Parece. E o que é o tempo psicológico? Não é apenas o tempo físico
que precisa de espaço, mas também o tempo psicológico precisa de espaço —
ontem, a semana passada, modificados hoje, amanhã. Há espaço e tempo. Isso é
simples. Assim, será o medo o movimento do tempo? Assim, o pensamento é tempo e
o tempo é o medo, obviamente... Assim, o medo é um movimento do pensamento no
espaço e no tempo. Se percebermos isso, não como uma ideia, mas como uma
realidade (o que significa que temos que dar a esse medo atenção completa no
momento em que ele nasce), então ele não é registrado. (5)
(...) Se vocês derem atenção
completa ao fato de que o medo é o movimento do pensamento, então não existirá
o medo, psicologicamente. O conteúdo de nosso consciente é o movimento do
pensamento no tempo e no espaço. Seja esse tempo muito limitado, ou vasto e
extenso, ainda assim é um movimento no tempo e no espaço.
O pensamento criou muitas formas
diferentes de poder em nós, psicologicamente, mas todas elas são limitadas. Quando
há a libertação da limitação há um surpreendente sentido de poder, não o poder
mecânico, mas um extraordinário sentido de energia. Isso nada tem a ver com o
pensamento e, portanto, esse poder, essa energia, não podem ser mal-empregados.
Mas se o pensamento diz: “vou usá-la”, então esse poder, essa energia é
dissipada.
Outro fator que existe em nossa
consciência é o pesar, o desgosto, a dor e as mágoas que permanecem na maioria
dos seres humanos desde a infância. Esse ferimento psicológico, a sua dor, é
lembrada, resiste; o desgosto nasce dele, o pesar está envolvido com ele. (6)
(...) estamos perguntando se todo
este modelo de estarmos magoados, de conhecermos a solidão e a dor, de
resistirmos, de nos recolhermos, de nos isolarmos, o que causa dor física; pode
ter um fim; se o desgosto, o pesar de perdermos alguma crença preciosa que
temos mantido, ou a desilusão que vem de perdermos alguém que havíamos seguido,
por quem lutamos, nos entregando, pode também ter um fim. É possível sermos sempre livres de tudo isto? É possível,
se nos aplicarmos, e não apenas falarmos interminavelmente sobre isto. Nestas
circunstâncias, percebemos que estamos magoados psicologicamente desde a
infância, vemos todas as consequências desse ferimento a que resistimos, do
qual nos retraímos, não querendo mais ser feridos. Nós encorajamos o isolamento
e, portanto, construímos um muro em volta de nós mesmos. Em nossas relações,
estamos fazendo o mesmo.
As consequências de sermos
feridos desde a infância são a dor, a resistência, o recolhimento, o
isolamento, um medo cada vez mais profundo... Em todo este pesar não há nenhuma
compaixão, nenhum amor. O fim do pesar traz o amor — não o prazer, não o
desejo, mas o amor. Quando há amor, há compaixão, e disso nasce a inteligência,
que nada tem a ver com a “Inteligência” do pensamento. (7)
(...) Estamos feridos porque
construímos uma imagem de nós mesmos. Isto é um fato. Quando dizemos: “estou
ferido”, é a imagem que temos a nosso próprio respeito que está ferida. Alguém
aparece e pisa com sua bota essa imagem, e nós nos ferimos. Nós nos ferimos
pela comparação: “Eu sou isto, mas a outra pessoa é melhor”. Enquanto tivermos
uma imagem de nós mesmos, de qualquer espécie, alguém vai espetar nela um
alfinete e vamos nos ferir. Se fazemos uma imagem de nós mesmos... então alguém
irá ferir essa imagem... Se dermos atenção completa à imagem que temos de nós
mesmos — atenção, não concentração, mas atenção —, então veremos que a imagem
não tem sentido e desaparece. (8)
Krishnamurti - 21 de julho de 1981
(1) A rede do pensamento – pág. 51
(2) A rede do pensamento – pág. 52
(3) A rede do pensamento – pág. 53
(4) A rede do pensamento – pág. 55
(5) A rede do pensamento – pág. 57-58
(6) A rede do pensamento – pág. 58
(7) A rede do pensamento – pág. 60
(8) A rede do pensamento – pág. 61-62