Tradução: Daniel Guimarães
Fragmento do livro “The Transparent Mind – a Journey with Krishnamurti”, de Donald Ingram Smith, onde o autor descreve uma discussão pública entre Krishnamurti e um líder comunista no Sri Lanka, durante os encontros realizados por Krishnamurti no país em 1949 e 1950.
Durante essas palestras e discussões em Colombo, desenvolvia-se um padrão de operação que iria continuar pelos anos seguintes: palestras aos fins de semana e discussões durante a semana, palestras para o público geral e discussões para aqueles que quisessem explorar determinados tópicos mais a fundo.
Enquanto milhares compareciam às palestras de domingo na prefeitura em Cinnamon Gardens, as discussões atraíam apenas uma modesta platéia de trezentas a quatrocentas pessoas dedicadas, a maioria delas sentada no chão. Poucos europeus e alguns dos idosos sentavam em cadeiras ao fundo e ao longo das laterais do salão.
Numa das discussões de quinta-feira à noite houve uma mudança. A primeira fileira de cadeiras estava reservada. Gordon Pearce me disse que haviam sido tomadas providências para que um dos membros de liderança da oposição no parlamento do Sri Lanka – Dr. N. M. Perera, advogado de corte1 e comunista recentemente vindo de um curso de aprimoramento em Moscow – ocupasse essa posição privilegiada. As demais poltronas estavam destinadas aos membros da oposição.
Acontecera que o jurista havia visto no jornal da manhã de segunda-feira, The Daily News, a reportagem de página inteira a respeito do encontro conduzido por Krishnamurti na noite anterior. Ele ficara profundamente impressionado pelo fato de que a prefeitura havia estado lotada, e de que amplificadores haviam sido dispostos do lado de fora de modo que as centenas de pessoas que não haviam conseguido entrar pudessem sentar-se no gramado e ouvir a palestra. Nenhum encontro político recente havia sido capaz de atrair tamanho número de pessoas ou sido foco de uma cobertura tão ampla por parte da imprensa. Ele então decidira que ele e seus colegas de partido deveriam comparecer a um encontro para ver o que havia de tão especial a respeito do homem e descobrir que mensagem ele transmitia para que se justificasse um número tão magnífico de ouvintes e tanta aclamação. Assim, ele contatou Gordon Pearce e perguntou onde e quando o próximo encontro se daria, e as providências especiais foram tomadas. Pouco antes de onze e meia, onze parlamentares chegaram e tomaram seus lugares. Todos os olhares estavam dirigidos para eles.
Pouco depois Krishnamurti entrou em silêncio, tomou seu lugar sobre uma plataforma baixa e vagarosamente observou a audiência. “O que gostariam de discutir?”, ele perguntou. Todos aguardaram. Então, Dr. Perera pôs-se de pé. Disse que gostaria de discutir a estrutura da sociedade e da coesão social, e que um tal debate deveria incluir uma compreensão dos princípios básicos do comunismo. Ele falou por alguns minutos sobre a lógica do controle do estado como a autoridade suprema, e a proposição de que aqueles que executam o trabalho devem receber diretamente o lucro dele advindo.
Como ninguém mais propôs qualquer assunto ou questão para ser discutida, ficou claro que aquele era um homem importante. Não apenas ele sabia disso, mas cada cidadão ceilonês presente o havia reconhecido e percebido a importância do desafio. Krishnamurti perguntou se nós gostaríamos de discutir aquilo.
Ninguém falou, nenhum outro assunto foi proposto. Obviamente todos estavam interessados em ouvir qual seria a resposta de Krishnamurti. Ele sorriu. “Bem, vamos começar.”. O jurista, que havia continuado de pé, deu prosseguimento a seu tema político. Falou de maneira abrangente a respeito dos preceitos básicos do comunismo, sobre uso comunitário e posse de bens e propriedade, e sobre o papel do trabalho. Era uma clara exposição da filosofia e dialética comunista. Quando terminou e se sentou, eu imaginei como Krishnamurti iria lidar com a proposição de que o Estado era tudo, e o indivíduo, subserviente à todo-poderosa autoridade central.
Ele não se opôs ao que havia sido dito. Quando falou, foi como se Krishnamurti houvesse deixado seu lugar sobre a plataforma, de frente para o advogado, e cruzado para o outro lado, para enxergar a condição humana a partir do ponto de vista do comunista e através de seus olhos. Não havia qualquer senso de confronto, apenas um exame conjunto da realidade por trás da retórica. À medida que o diálogo se desenvolvia, tornou-se uma penetrante investigação sobre como a mente humana, condicionada como é, seria recondicionada para aceitar a doutrina totalitária, e se reeducar a raça resolveria os problemas que atormentam os seres humanos, não importando onde eles vivam ou sob qual sistema social estejam.
Havia mútua investigação dos caminhos através dos quais a filosofia comunista de fato operava, e dos meios utilizados para se lidar com conflitos. E, basicamente, questionava-se se remodelar, redefinir os padrões do pensamento e do comportamento humanos de fato libertaria o indivíduo ou a coletividade do ego, da competição, do conflito. Depois de aproximadamente meia hora, Dr. Perera ainda ressaltava a necessidade do controle totalitário, afirmando que todos deveriam caminhar de acordo com a política escolhida, e ser levados a aceitar.
Nesse ponto, Krishnamurti recuou. “O que acontece”, perguntou ele, “quando eu, como um indivíduo, sinto que não posso caminhar de acordo com a decisão do comando supremo? E se eu não aceitar?”.
“Nós tentaríamos convencê-lo de que a divergência individual, talvez válida antes de uma decisão ser tomada, não poderia ser tolerada depois. Todos têm de participar.”
“Você quer dizer obedecer?”
“Sim.”
“E se eu ainda assim não pudesse ou não estivesse disposto a concordar?”
“Nós teríamos de lhe mostrar o erro de suas escolhas.”
“E como vocês fariam isso?”
“Persuadindo você de que, na prática, a filosofia do estado e a lei devem ser enaltecidas a todo momento e a qualquer custo.”
“E se uma pessoa ainda assim mantém que alguma lei ou regulamento é falso, o que acontece?”
“Nós provavelmente iríamos encarcerá-la de modo que ela não fosse mais uma influência desintegradora.”
De modo extremamente simples e direto, Krishnamurti disse: “Eu sou essa pessoa.”. Consternação! Subitamente, confronto total. Uma descarga elétrica havia penetrado a sala – a atmosfera estava carregada.
O advogado falou cuidadosamente, calmamente: “Nós o poríamos numa cela e o manteríamos lá pelo tempo que fosse necessário para modificar sua mente. Você seria tratado como um prisioneiro político.”
Krishanmurti respondeu: “Poderia haver outros que sentissem e pensassem como eu. Quando eles descobrissem o que havia acontecido comigo, poderiam se tornar mais avessos à sua autoridade. Isso é o que aconteceria, e um movimento reacionário teria começado.”
Nem Dr. Perera nem seus colegas de partido queriam continuar com aquele diálogo perigosamente explícito. Alguns já demonstravam nervosismo. Krishnaji continuou: “Eu sou esse homem. Recuso-me a ser silenciado. Falarei a qualquer um que esteja disposto a ouvir. O que você faz comigo?” Não havia escapatória para a questão.
“Afasto você.”
“Me liquida?”
“Provavelmente. Não lhe seria permitido contaminar os outros.”
“Provavelmente?”
“Você seria eliminado.”
Após uma longa pausa, Krishnamurti disse: “E dessa forma, o senhor teria feito de mim um mártir!”. Não havia modo de evitar as conclusões. “E então?”
Krishnamurti esperou, e então aos poucos recuou no curso do diálogo. Falou sobre inter-relacionamento, sobre a destruição da vida por uma crença, por algum ideal de futuro, algum projeto mesquinho, sobre a destrutividade dos ideais e sobre a imposição de fórmulas sobre os seres vivos. Abordou a necessidade não de alterações no meio social, por mais necessárias que sejam, mas de transformação interior. Quando terminou, o encontro havia chegado ao fim. Não havia de fato mais nada a ser dito. Estávamos numa envolvente comunhão. Então Dr. Perera levantou-se e, vagarosamente, deliberadamente, foi traçando seu caminho através da multidão que encarava Krishnamurti. Todos se moveram um pouco para abrir passagem para ele. Ele andou até Krishnaji, que agora já havia levantado e estava observando, aguardando.
Pisando na plataforma, o jurista abriu os braços e envolveu Krishnaji. Permaneceram lá por alguns momentos, nos braços um do outro. Então, sem uma palavra, ele retornou a seus colegas e a audiência começou a se movimentar. O encontro estava terminado.
The Transparent Mind – a Journey with Krishnamurti, pp. 21-25 © 1999 by Donald Ingram Smith
1 – Termo usado na Inglaterra para designar um advogado altamente qualificado, pertencente à “Bar”. No sistema legal inglês, os advogados comuns apenas preparam as causas, sendo permitido exclusivamente ao “Advogado de Corte” apresentá-las perante o juiz num tribunal.